CORTANDO O PORTUGUÊS

 

 

Quem disse que só letrados fazem poesia? E poesia com estilo, com o estilo das roupas da alfaiataria do seu Eleutério, no interior do Brasil. Eu passava pelo povoado onde ele mora quando a originalidade da poesia me chamou a atenção.

 

Estava escrita na platibanda da alfaiataria, em letras grandes. A parede azul, quase um azul celeste, descorada pelo tempo. Com certeza já fora mais firme. No entanto a chuva e o sol aproximaram a pintura de um tom poético. As letras vermelhas também já não tinham o sangue de  outrora, perdiam vida. Desmaiavam. Mas ainda assim havia poesia por todo lado. Até o povoado tem um nome interessante: Lavras.

 

Pois bem, a publicidade na parede chamou-me a atenção e entrei no pequeno cômodo, quase ao final da única e curta rua, espremido entre duas construções não mais garbosas. A porta de madeira, larga, também velha, carcomida pelo tempo e os cupins estava completamente escancarada. Sobre um velho balcão de ipê — me disse ele depois — fazendas, linhas e agulhas teciam a costura poética de seu Eleutério e as roupas de versos de seus clientes. Ao fundo, uma velha máquina Singer. Alguns cabides no lado oposto sustentavam o sonho de elegância de muitos que buscavam o seu trabalho.

 

— Bom dia!

 

— Bom dia! — retribuiu.

 

Vi em seus olhos um brilho que não existia nas coisas ali. Por trás dos óculos, remendados com materiais diversos, havia uma dignidade de artífice. Brilharam ainda mais quando me viu entrar, suponho. Talvez porque me imaginou um cliente.

 

— Quer um terno de roupa? — perguntou.

 

— Gostaria muito, mas agora não!

 

Senti que o desapontei um tanto.

 

— Estou só de passagem — justifiquei.

 

— Ahn! — engrolou a língua e voltou ao trabalho de alinhavar a barra de uma perna de calça, sentado sem camisa diante da velha Singer.

 

— Fiquei curioso, por isso entrei! — disse.

 

Ele voltou-se. Agora ele curioso.

 

— Curiosidade? Com quê? — disse desconfiado.

 

— É que vi ali na parede o nome da alfaiataria. Gostei.

 

Ele abriu um sorriso feliz e agradecido.

 

— O senhor não é o primeiro que me diz isso.

 

— Jura?

 

Ele balançou a cabeça, satisfeito, e com a seriedade de quem não mente.

 

— Sabe que é uma poesia?

 

   "Tizora di oro.

   Moldi e roupa

   Qui acenta,

   Duis pé a venta".

 

  Agora é o senhor quem diz. Muita gente me disse que achava bonito – acudiu com  a simplicidade da gente do interior.

 

— Mas é uma poesia. Muito bela e com humor.

 

Ele abriu-se, completamente.

 

— Sabe, sou pernambucano. Já fiz alguns versos. Sou repentista. Precisava dum nome pra alfaiataria e botei isso em cima. Parece que ficou bom. Quem não faz roupa, faz como o senhor: vem aqui elogiar.

 

A conversa rendeu. E se eu não fosse embora, íamos alinhavá-la horas a fio. Mas antes de eu ir ainda me disse:

 

— Antigamente em minha cidade, Sertânia, tinha um trem que passava no meio da rua. E como o povo lá era repentista, todo ele, botou-se uma placa alertando:

 

"No meio da rua passa

O trem. Cuidado

Quando ele vem".

 

Dei-lhe um abraço e fui embora. Também feliz.

 

 

 

 

ZÉ RELÓGIO

 

Zé Relógio tinha hábitos peculiares. Quem não o desejava entre os loucos dizia que ele era muito esquisito (mas o pronome e o adjetivo eram apenas uma maneira diferente de chamá-lo de louco). Mas de fato ele era bem diferente dos demais moradores da pequena Salto — um povoado perdido numa árida planície andina, cuja existência era garantida pela exploração de salitre para as fábricas de munição da metrópole. Era um tempo de muitas guerras, as colônias espanholas lutavam pela libertação do domínio da metrópole e os heróis eram tão abundantes quanto os loucos. As ruas e os cemitérios também se enchiam de patriotas mortos. Por ser um povoado estratégico pela exploração de salitre e pela proximidade das montanhas, esconderijo ideal para os patriotas, Salto viu-se durante a guerra de libertação assediada por ambas as forças envolvidas na luta. A excentricidade que distinguia Zé Relógio do seu povo de ascendência  indígena, paciente e  taciturno, não  fosse demasiado insólita passaria despercebida num tempo de acontecimentos inusitados. Estava no próprio apelido a razão de sua fama: ele carregava sempre às costas um grande carrilhão inglês num tempo em que os demais homens portavam fuzis.

 

Mas em Salto todos condescendiam com Zé Relógio. Pelas ruas poeirentas ele seguia infatigável dia e noite; o corpo curvado para diante suportava o pesado móvel enquanto ele dizia a plenos pulmões, com a força de um pregoeiro que tenta forçar o melhor lance para a sua prenda: "Arrependei-vos, ó infiéis, o fim do mundo está próximo; a hora está chegando. Quem não se arrepender agora depois será tarde demais!".

 

A sua confusa crença religiosa, uma mescla de imagens e idéias indígenas e cristãs, aprendida com os catequizadores jesuítas, previa que na hora do fim do mundo o seu relógio deixaria de funcionar, ditando o fatal momento da destruição. Pouco tempo antes — ele descansava o relógio no chão, e com ar grave próximo da ira no rosto e os olhos esgazeados, buscava no relógio e no céu, para onde olhava alternadamente, sinais do apocalipse que corroborassem sua teoria — fatos estranhos acontecerão como sinal do que está por vir. E ele enumerava cada estigma com voz incomum para um velho índio, cuja raça é silenciosa e desconfiada: "o dia vai virar noite, as mulheres honestas vão fornicar, os animais surpreendentemente passarão a falar e os homens se desentenderão entre si, gerando muitas mortes e dor". Esse último augúrio, apostava Zé Relógio, já estava em marcha. "Depois disso é o fim!", dizia persuadido.

 

O seu relógio deixaria de funcionar na hora exata nem mais, nem menos!

 

Zé Relógio não descendia de família de artífices construtores de relógios tampouco tinha amor ao instrumento. Na miserável Salto, é bom que se diga, possuir qualquer tipo de  relógio era quase ostentação. Os velhos se orientavam pelo sol, pela lua ou pelas estrelas, e quando careciam de prever algo mais remotamente se valiam das estações chuvosa e seca para delimitar o tempo. Era uma marcação imprecisa, mas a vida que levavam não exigia rigor. Conheceram a preocupação exacerbada das medidas exatas com os europeus, e nem o convívio de vários séculos eliminou o desconforto de acharem esse hábito muito estranho. O carrilhão, que parecia pregado às suas costas, fora resgatado de um navio inglês naufragado nas costas chilenas com um carregamento de relógios para a colônia. Uma tormenta o jogara contra os arrecifes bem próximo da costa, matando a tripulação. Pescadores resgataram quase todas as peças e a partir daí teve início uma estranha seita cujo símbolo era o relógio.

 

Diziam os sectários sob o comando de frei Anacleto, velho religioso espanhol proscrito da ordem franciscana, que os relógios foram presentes de Deus que queria seus filhos preparados para a hora final. Todos deviam dali em diante carregar ininterruptamente o seu relógio para saber o exato momento do final dos tempos. Nessa hora, não se preocupassem, os relógios deixariam de funcionar e o mundo seria consumido por grande hecatombe. Era uma seita mórbida, afinal não tinha serventia apenas saber a hora exata do fim e não poder antecipar-se para evitar que ele acontecesse. Consumiam-se à espera da hora que nunca chegava, não sendo à-toa que todos admitiam e praticavam a flagelação. Em romaria assustavam o povo pelas ruas de Salto ou pelas montanhas quando procuravam amealhar entre indígenas supersticiosos mais adeptos para a causa. Os sons do mecanismo de uma vintena de relógios de tamanhos desiguais pressagiavam desgraça ao povo de Salto; quando frei Anacleto e seus seguidores apareciam em qualquer ponta de rua, os moradores fechavam as portas e janelas de suas casas a espera de que passassem salmodiando litanias ou praguejando e excomungando em altos brados a população recalcitrante, chamada 'infiel' com todas as letras.

 

Zé Relógio carregava o maior dentre todos os relógios; e o tamanho em seu caso não era distinção de posto. Os demais membros da seita, em busca do fardo eterno mais leve de carregar, ligeiro botaram mãos sobre os menores relógios. Para ele sobrou o carrilhão inglês — recusado por todos mesmo com a exortação de frei Anacleto garantindo privilégios na eternidade a quem o jogasse às costas —, cuja caixa e pedestal eram tauxiadas em pesado carvalho inglês. Dera grande trabalho resgatá-lo dos porões do 'Edimburgh' e um pescador, hábil no mergulho, quase perecera na execução da tarefa. Tinha quase a altura de Zé Relógio, mas os braços fortes e a memória fraca do mestiço se harmonizaram com perfeição, e ele rejubilou ao 'receber a distinção divina de carregar sobre o lombo o imenso relógio' nas palavras de frei Anacleto, quase com certeza ditas para encorajá-lo.

 

Entretanto, o pesado carrilhão fora a salvação de  Zé Relógio. Ele andava sempre à retaguarda do séqüito, vagaroso e curvado ao peso expiatório. Quando as forças coloniais chegaram a Salto para tentar sufocar o levante, deram de cara com frei Anacleto e o séqüito de maltrapilhos. Sem entender quem era aquela gente, pensando tratar-se de patriotas que lhes tramavam ardis, fuzilaram impiedosamente o grupo. Salvou-se Zé Relógio porque vinha cansado e distante, e quando chegou ao local do massacre o mal entendido já estava desfeito. Desde então a cabeça de Zé Relógio desregulou de vez. Não pôde sequer aliviar o pesado fardo; as balas das forças coloniais haviam inutilizado todos os relógios.

 

Ele passou a pregar solitário e ainda com mais sectarismo que frei Anacleto. Na realidade não pregava, apenas representava um teatro que decorara durante os anos em que fora seguidor do velho frei.

 

As forças coloniais foram vencidas e o relógio de Zé Relógio não parava de marcar as horas. A excelência inglesa atestava uma vez mais a sua fama na máquina incrivelmente precisa. Não permitir o ilícito da intervenção humana nos desígnios divinos, era preocupação constante  de Zé Relógio e só por isso ele alimentava regularmente a corda do mecanismo, voltando a mão para as costas. Tinha a certeza de que na hora certa a máquina ia parar.

 

Incrivelmente o carrilhão atestou o fim.

 

Mas o fim da vida de Zé Relógio e não o fim dos tempos. E toda Salto presenciou o fatídico acontecimento. Foi durante a parada militar em comemoração ao sexto aniversário da independência. A tropa perfilava-se em seu uniforme de gala na Praça das Armas à sombra das amendoeiras em um dia com sol vacilante que ora escondia-se, ora aparecia de detrás de grandes nuvens. A população emocionada acompanhava o toque dos clarins e o rufar dos tambores, acenando bandeirolas e flâmulas com as cores nacionais. Lembrava-se ainda da recente guerra de libertação e dos patriotas mortos. O alcaide nomeava-os um a um, arrancando aplausos e lágrimas. Zé Relógio estava entre a multidão. Carrilhão às costas, presenciava mudo o espetáculo e as evoluções da tropa no grande pátio de areia. Os exercícios demoraram toda a manhã, e empertigado ele se manteve sem descansar no chão o relógio. Aliás, havia cinco anos justos que ninguém o via descansar o peso das costas. Parecia já não mais senti-lo. Era como uma parte de seu corpo, talvez uma grande corcunda que a decepção da vida e os anos de sofrimento lhe avolumaram.

 

Após um toque longo de clarim, cheio de melancolia, e um rufar marcial de tambores, um breve silêncio cobriu a praça. O baque surdo do carrilhão ao chão, vibrando sons diferentes atraiu as vistas de todos os que se encontravam no local. Zé Relógio, enfim, desabara com o peso do grande relógio. Caíra imóvel, de lado, com o braço esquerdo estendido reto para diante e o outro curvado em noventa graus, sustentando a cabeça.

 

Houve corre-corre e um grande círculo fê-lo sumir das vistas de quem estava mais longe. Tentaram reanimá-lo, mas estava morto; o relógio marcava meio-dia pontualmente, e estava parado. O alcaide tentou separar Zé Relógio do carrilhão, mas era impossível: estavam unidos firmemente. Rasgaram sua grande bata de algodão e ficaram estarrecidos com o que viram. Uma estranha e inexplicável simbiose unia os dois: o corpo de Zé Relógio lançara ao relógio pele, músculos, veias e tendões, que aos poucos cobriam a madeira, e o carvalho tauxiado do carrilhão entranhara nas costas do velho índio finas raízes. Faltava apenas examinar se seu coração havia batido no mecanismo do relógio.

 
 
 
 

 

COSTURANDO POESIA

 

A linha d'água

não costura

com agulha.

Se o homem a toca,

Rompe a linha

E mergulha.

 

 

 

 

 

 

O IMPENSANTE INAMOVÍVEL

 

Sem-

Pé-

Nem-

Cabeça

Não pensou

Em como

Sair do lugar.

 

 

 

 

 

 

O MEDO DO ANJO EM NOSSO CÉU

 

Um anjo com asas

Veio me avisar

Que agora tem medo

De voar.

E em meio

A tanta violência

Pede clemência.

Nem mais no céu

está seguro.

Pois mesmo que

Não persigam anjos,

Que a morte

Não lhe tenha sido urdida,

Ainda há o risco

De uma bala perdida.

 

 

 

 

 

 

AVIÃO REAIS

 

O

Porto

Nista

Como

É

Me deixou

A ver

Navios.

A

Vião

Reais

Em meu bolso

E depois

De me limpar

decolou

para outro lugar

Sem deixar pista.

 

 

 

 

 

 

PÊNDULO

 

Quando vacilo

É porque

Oscilo

Entre o sim e o não.

 

 

 

 

 

 

BEIJO POLIGLOTA

 

Beijei

Porque

kiss   

 

 

 

 

 

(imagens ©pete gardner)

 

 
 
 
 
 

jjLeandro (Carolina-MA, 1960). Jornalista, escritor. Autor do livro de poesia Quase ave, com o qual venceu, em 2002, o Prêmio Nacional Cora Coralina, do governo de Goiás, para poetas inéditos. Tem trabalhos publicados em vários sites na internet e livros prontos para publicação. É casado, pai de dois filhos e vive em Araguaína-TO. Escreve o blogue jjLeandro.