©ramzi mostafa
José Nêumanne Pinto nasceu em Uiraúna, no sertão da Paraíba, a 18 de maio de 1951. Casado, tem três filhos e, desde 04 de agosto de 2002, é o avô orgulhoso de Pedro de Oliveira Pinto. Além de poeta, escritor, jornalista e Flamengo até morrer.

Recebeu o Prêmio Esso de Jornalismo Econômico (com Maria Inês Caravaggi) em 1975, pela série "Perfil do Operário Brasileiro Hoje" (Jornal do Brasil) e o Troféu Imprensa de Reportagem Esportiva (com Paulo Mattiussi) em 1975, pela reportagem "Éder Jofre e o Boxe Brasileiro" (Jornal do Brasil).

Livros Publicados: Mengele, a Natureza do Mal — Romance-reportagem. São Paulo: EMW Editores, 1985; As Tábuas do Sol — Poemas. João Pessoa: Secretaria da Cultura do Estado da Paraíba, 1986; Erundina, a Mulher que Veio com a Chuva — Perfil biográfico. Rio de Janeiro: Editora Espaço e Tempo, 1989; Atrás do Palanque — Bastidores da Eleição Presidencial de 1989 — Reportagem. São Paulo: Editora Siciliano, 1989; Reféns do Passado — Coletânea de artigos e ensaios políticos. São Paulo: Editora Siciliano, 1992; A República na Lama — Uma Tragédia Brasileira — Reportagem. São Paulo: Geração Editorial, 1992; Barcelona, Borborema — Poesia. São Paulo: Geração Editorial, 1992; Veneno na Veia — Romance policial. São Paulo: Editora Siciliano, 1995; Solos do Silêncio — Poesia reunida. São Paulo: Geração Editorial, 1996; As Fugas do Sol — CD do CPC-Umes, São Paulo, 1999, com música original do maestro Marcus Vinicius de Andrade.

Em Co-autoria: Partidos e Políticos. Rio de Janeiro: Editora JB, 1986; A Constituição que Nós Queremos. Rio de Janeiro: Editora Salamandra, 1988; Jornalismo é... São Paulo: Zenon, Associação Brasileira de Anunciantes e Associação Brasileira de Imprensa, 1997.

Antologia: Selecionou e apresentou a antologia Os Cem Melhores Poetas Brasileiros do Século, para a Geração Editorial, 2001.

Legado


Não terás ouro de tolo
nem a tuas mãos chegarão
a pepita de um garimpo
de um igarapé ianomami
que orne um santo que seja
de um altar qualquer
num dos templos barrocos
de São Salvador, Bahia;
nem as minas de prata
do romance de Alencar,
que li sonhando,
ainda só infante.
Nem sequer um níquel
de moeda sem valor,
troco de esmolas
jogada à sorte
no pátío dos profetas
moldados pelo mulato
em Congonhas do Campo,
ermo sertão das gerais.

Tua herança será de chumbo, sim,
mas o trocado em tiros
nesta guerra de palavras,
Canudos sem conselhos:
terás uma arca de letras
de finas bordas
e grosseiros rombos,
vagas na aparência,
mas de pétrea rigidez
(as pedras da calçada).

Meu testamento conterá
a rija esclerose
das veias que transmitem
esta garapa de cana,
esta rapadura batida,
sangue de escravos,
emborcados nos porões
dos navios negreiros
que Castro Alves glosou
— com glóbulos feito foices
e sua espessa expressão
de um rubro escuro,
negro ou quase preto.

Haverá também entre os haveres
meu coração combalido
de tantos combates
de amor, cansaço e fé,
esperança, dor, ilusão;
tenras rendas de bilro
de rendeiras do Ceará
que te ensinam a namorar;
e todas as trilhas capazes
de te entregar à solidão.

Ah, na certa terás dívidas a pagar:
amigos que esqueci
e inimigos que não se esquece;
tocaias que desarmei
e velórios a que faltei;
festas barradas no meio,
brutos sem compaixão
e lutos sem remissão.
Lucros e perdas haverá,
umas, de mel deglutido
outros, afetos a vomitar.

Talvez os olhos míopes
de eu só ter lido o inútil
e o colesterol elevado,
a cobrar os serviços
dos feijões com carne seca
de refeições de paxá.
Quem sabe ouvidos cansados
pelas canções que ouvi
e passos retardados
por rixas que não lutei
ou barreiras que não saltei.

Perdoa, Pedro,
o País que te largo:
esta infame e sublime
tradição de traições,
estas taras de gerações;
a brasa morna
das charqueadas;
e a poeira seca
das vaquejadas.
Por este saldo devedor
pagarás conta de peso
com sangue, suor e cachaça.

Mas aproveita o que puderes
das histórias de cantador,
ainda as que eu não contar;
dos poemas de amor,
até os que eu não fizer;
e das portas do mundo,
mesmo as que eu não abrir.

Viver é se perder e achar,
ou melhor, é se achar e perder.
A vida é pena a cumprir,
remorso a carpir,
mesmice e castigo,
e mais ainda: é susto,
canto e mistério,
miséria, pranto,
capricho e sedução
— a vida é séria,
a vida é vil,
a vida é vã,
qual telha vã.

Segue a trilha oculta,
vai ao pote seco,
solta a voz travada.
Pois num lugar incerto,
num sítio tosco,
na Estação Finlândia
ou no Taj Mahal,
serei teu ouvinte atento.

Os Dez Mandamentos da Bárbarie


"Todo este povo, no meio do qual estás, verá a obra de
Iahweh, porque coisa terrível é o que vou fazer contigo".
..........................................................Êxodo, 34, 10

"La rabia
se volvió filósofa,
su baba ha cubierto al planeta"
Octavio Paz, Nocturno de San Ildefonso

"And I'll stand o'er your grave
'til I'm sure that you're dead"
Bob Dylan, Masters of War



Furarei teus olhos para que não vejas o Inferno
e te explodirei os tímpanos para não ouvires indecências.
Arrancarei teu coração porque o amor é porco
e pisarei em teu calo porque a dor redime.
Vou te marcar a ferro para que sempre te reconheça
e queimarei teu corpo para que ele não ocupe meu espaço.
Prometo não descansar enquanto o vento não soprar tuas cinzas.
Minha sarça vai arder e jogarei incenso na fogueira,
minha reza é brava, meu corpo está fechado
e a baba de minha alma vai envenenar o universo.

Martelo Mineiro


A falta de pão é a nossa verdade,
a lei é feita por punhais de aço,
luar de prata é nossa riqueza,
sou lá do sertão, pátria do cangaço,
zabumba bate no meio da noite,
ruas desertas, sem brisa, mormaço.

Justiça foge no meio do mato,
a fome aqui é cuspida e cantada,
estrelas se apagam no vão do espaço,
sóis que se perdem no leito da estrada,
as cordas da terna viola
são nervos tensos da terra sem nada.

Vejo esqueletos à face da luz,
um bode tira alimento da dor,
com sangue vermelho traço o caminho,
do verde da chuva tiro o calor,
creio na vida tal como ela é:
morte com fé, não como temor.

©ramzi mostafa
... E Sobre Esta Pedra...

Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja

Em ti, Pedro, celebro
o cérebro dos sábios
e a alma dos dementes;
a vida, enfim,
e tudo o que nela há
de sórdido e sublime,
de sagrado e profano,
de plástico e clássico,
de inefável e medonho.

Em ti, Pedro, celebro
a vida que não tive
e a que não terás;
as penas de teu avô jornalista,
e as barbas de teu avô sebastianista;
teu pai moreno
e tua mãe branquinha;
tua avó que ensina
e tua avó que cura;
teus bisavós, tuas tias, teus primos,
o núcleo da família,
múltiplo e irreversível.

Em ti, Pedro, celebro
os bichos de nuvens
e os castelos de areia;
as maldades da infância
e os achaques da velhice.
Celebro o pó de que vieste
e o pó ao qual voltarei,
as cinzas de fênix
e as pirâmides sobre o Nilo.

Em ti, Pedro, celebro,
a biografia dos santos
e o suor das prostitutas;
o incenso dos altares
e o esperma dos prostíbulos;
as ratazanas de esgoto
e os ratos de biblioteca;
os sóis de maio e o luar de agosto;
o pássaro que voa
e o tiro que o abate.

Em ti, Pedro, celebro,
o perfume dos bosques
e o hálito dos rouxinóis;
o canto da mulher que fia
e o pranto da mulher que perde.
Em ti celebro o tear, a teia, o pote;
a aranha que tece
e a fera que fere;
a pele do tigre
e os braços do polvo.

Em ti, Pedro, celebro,
o mundo que não vejo
e o que não construí:
os muros erguidos
pelos heróis de guerra
e o sono sem repouso
dos guerreiros
após as batalhas perdidas,
sementes que brotam.

Em ti, Pedro, celebro
o sonho dos insanos,
o pesadelo dos normais
e a obra dos vadios,
que teus olhos abertos
hão-de ver
e teus dedos longos
hão-de tocar
e tuas pernas finas
hão-de dançar
e tua boca linda
há-de narrar:
o mundo a teus pés
— a nossa trilha
— a caminhada comum
— o nosso passo.

Em ti, Pedro, celebro
o medo e o espanto,
o susto e o justo,
o casto e o pecador.
celebro, enfim, a sorte.
Celebro, ainda, o sim,
pois sem sim
não há tropeço
e também celebro o fim,
pois sem fim
não há começo.

Mas, Pedro, tu és meio:
a pedra no caminho;
o seixo no eixo
da máquina do mundo;
e o lance de dados
do monólito
jogado no infinito.
Seis Quartetos em Si


Este poema vai para João Gilberto, Gilberto Gil e Carlos Vogt

O poeta é um traidor...
(apud Pessoa)


A poesia
é o lugar comum,
onde o poeta
ri de si mesmo.

A poesia
é um pilar incomum,
onde o poeta
cisma consigo mesmo.

A poesia
é um berço sem grades,
de onde o poeta
sai para si mesmo.

A poesia
é um buraco negro,
onde o poeta
trai a si mesmo.

A poesia
é um salto sem rede,
onde o poeta
cai sobre si mesmo.

A poesia
é um caixão sem tampa,
onde o poeta
encerra os seus mesmos.