camisa 10

 

eu não te conhecia

eu não sabia quem você era

 

você veio do interior

jogou nas divisões de base

 

você entrou no segundo tempo

 

eu estava perdendo de zero

eu sofria com a falta de sorte

eu sofria com as bolas na trave

 

você se aqueceu discretamente

aguardou a permissão do juiz

ignorou a torcida adversária

e entrou de cabeça erguida

 

você dominou um cruzamento na área

deu um lindo drible em seu marcador

driblou o meio de campo e os zagueiros

mandou um chute rasteiro e preciso

no único lugar onde a bola poderia entrar

 

você está na primeira divisão

do campeonato da minha existência

você está no primeiro escalão

do meu sofrido e vermelho coração

 

 

 

 

 

 

cheiro de lua

 

eu não gosto de você

porque o seu sorriso

tem o calor do inferno

 

eu não gosto de você

porque o seu cabelo

tem a maciez do colo de deus

 

eu não gosto de você

porque o seu olhar

tem o brilho da primeira manhã do paraíso

 

eu gosto é do seu cheiro de lua

 

 

 

 

 

 

as 4 estações

 

no verão

te quero nua

grávida de mar

 

na primavera

te quero linda

grávida de flor

 

no outono

te quero toda

grávida de céu

 

no inverno

te quero sempre

grávida de lua

 

 

 

 

 

 

safianas

 

ana júlia

19 anos

libriana

ar

7 de outubro

ouve rock

na primavera da vida

teremos sol

 

ana clara

27 anos

ariana

fogo

14 de abril

ouve samba

no verão da vida

teremos chuva

 

ana luiza

38 anos

virginiana

terra

27 de agosto

ouve jazz

no outono da vida

teremos vento

 

ana maria

69 anos

canceriana

água

13 de julho

ouve bach

no inverno da vida

teremos morte

 

 

 

 

 

 

amor

 

amor não é curso de graduação

amor é coragem

 

amor não é tese de mestrado

amor é criatividade

 

amor não é tese de doutorado

amor é liberdade

 

 

 

 

 

 

adeus

 

seu olhar de adeus

é um defunto amanhecido

naquela hora do velório

onde todos dormem

e somente o morto

respira o cheiro dos cravos

 

o amor espera o atestado de óbito

para ser enterrado

sem esperança de ressurreição

sem lágrimas, missas, rezas

velas, macumbas, sambas

tristezas, poemas e canções

 

 

 

 

 

 

enxofre

 

nem o perfume

 

da chuva azul

da brisa da tarde

do azeite de oliva

do chanel número 5

da coxa da marilyn

do sexo selvagem

do vinho tinto

do quarto de hotel

do esmalte vermelho

do salmão defumado

dos versos vazios

 

vão dissipar o seu cheiro de enxofre

 

 

 

 

 

 

cruz credo

 

não ouse chegar perto

não olhe, nem de longe

trago no bolso esquerdo

um crucifixo de prata

que foi de minha avó

 

tenho sal grosso no alforje

galho de arruda na orelha

e uma espada de são jorge

 

vade-retro, pé de bode

 

"praga de urubu magro

 não mata cavalo gordo"

 

o credo está na ponta da língua 

 

 

 

 

 

 

 

exu de oratório

 

asas ruídas

unhas quebradas

espírito em queda

 

mau agouro

corvo na noite

regressão e desordem

 

foice da morte

não brilha no céu

arde no subterrâneo

 

insulta minhas lágrimas

nunca falta o disfarce

só ama a própria sombra

 

quer matar o meu sorriso

 

 

 

 

 

 

satanás de saia

 

satanás de saia

não quis ser viúva

morreu na praia

 

seu fogo era frio

sua forca era fraca

seu punhal era podre

 

se enforcou no ego

se queimou na vaidade

se matou na maldade

 

não quis envelhecer

antes de apodrecer

belo pasto para os vermes

 

a cruz é um espelho

doentias são as flores

contaminadas pelo abismo

 

 

 

 

 

 

lúcifer no cio

 

seu próximo passo

é retocar o batom

e assassinar

o amor que não existe

 

seu próximo passo

é pintar as unhas

e amputar as pernas

da jovem atleta

que sonha com o ouro

 

seu próximo passo

é usar os brincos

e derrubar do viaduto

o menino pobre

que quer ser guevara

 

seu próximo passo

é escolher a minissaia

e comprar a alma

do último trovador

 

 

 

 

 

 

a dama das trevas

 

sabe dançar a falsa valsa

seu voo é um presságio sombrio

no impulso lúdico caiu da torre

e perdeu a terceira perna

pode andar sem ela com muletas

mas vai sentir muito a sua falta

fala baixinho como uma fada

mas fere fundo como uma bruxa

sua saliva é venenosa e cruel

anda com passo de gazela

para não despertar os cães

deu um salto trapezista

quando o cupido se abaixou

para apanhar a flecha

sabe fingir em alemão

ou sabe-se lá qual idioma

demônio medieval

disfarçada de anjo barroco

pode ser vista ao lado de satã

na divina comédia de dante

ou rezando uma ave-maria

aos pés de nossa senhora do desterro

no altar da igreja do pilar

numa estranha alquimia

entre o sagrado e o profano

vai passar a eternidade

no nono círculo do inferno

ao lado de caim e judas

virgílio vai lhe virar a cara

sua beleza é uma circe que me morde

e me envia em seus latidos

um ganido de socorro

que a fogueira transformou

em cantiga de maldizer

 

 

 

 

 

 

[imagens ©rebecca guay] 

 

Jovino Machado (Formiga-MG, 1963). Poeta. Graduado em Letras (UFMG). Publicou, entre outros, Trint'anos proust'anos (Mazza edições, 1995), Samba (Orobó Edições, 1999), Balacobaco (Orobó Edições, 2002), Fratura Exposta (Anome Livros, 2005), Meu bar, meu lar (Editora Couber Artístico, 2009) e Cor de cadáver (Anome Livros, 2009).

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