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..........Ele saía do escritório várias vezes durante o expediente e caminhava até o bar, numa esquina da mesma calçada. Entrava, pedia café; mas, tão só para espreitar disfarçadamente a balconista da loja no outro lado da rua. Havia um seu desejo de aproximar-se, desejo de olhar nos olhos dela, de sentir o tecido das roupas e dos lençóis que ela sentia, de admirá-la bem de perto, de sorrir-lhe, vê-la de frente, de costas e de perfil; e olhar novamente, intensamente. Talvez, tocar-lhe casualmente as mãos, ser compreendido... Mas resignava-se. Receava, duvidava e temia.
..........Era assim que pensava o homem, maduro e bem casado. Contentava-se no atravessar da rua, com os olhos apenas, enquanto vagarosamente tomava o seu café e observava os gestos dela: um andar até a vitrine, um giro de corpo, o sorriso, as mãos e os seios, os quadris de moça bonita. E o olhar que ela jogava de lá errava os olhos dele, o alvo, e deixava-lhe a sensação de se errar deliberadamente e por muito pouco.
..........Caminhava até o bar e não prestava atenção no percurso. A visão se fixava apenas na calçada oposta, aguardando o exato momento de disparar os olhos na direção dela. Sua mira, também intencionalmente torta, alçava um despretensioso "oi", camuflado à meia boca, pois intuía haver dela alguma incerteza em responder. Talvez, a mesma que lhe impunha o receio de cumprimentá-la direta e abertamente.
..........Contudo, a insípida rotina desse "oi" quebrou-se inesperadamente. Um olhar (o dela!) colidiu de frente com o dele. E sentiu-se denunciado. Provavelmente por um gesto infantil, adolescente... até ridículo para sua idade; ou nada disso, apenas por um ligeiro rubor, só que visto lá do outro lado da rua... Surpresa maior ainda: na seqüência, um aceno bem sorridente e espalmado também o atingiu em cheio! Foi impossível conter aquele seu "oi" atrofiado e esquizofrênico, que então lhe saiu bem gostoso e de boca inteira.
..........Ainda assim preferiu manter-se na margem de cá e, rindo-se, empreender uma fuga covarde pelos flancos da calçada.
..........E novamente a rotina, apesar desse avanço. Não se ia nem para frente nem para trás. Embora desejasse, ele não se permitia vadear o leito da rua, saltando pelas listras da faixa de pedestres e se mantinha sob o escudo da aparência "desinteressada", a despeito dos desejos que nele gostosamente se aqueciam cada vez mais. E ela parecia inarredável, também não indo além de lhe dar, unicamente, a impressão de que estivesse olhando para a rua como se ele fosse "só mais alguém" a passar na calçada oposta; a impressão de desconhecer as sutilezas daquele jogo de "procurar-achar-dissimular" ou de "esperar-ver-insinuar".
..........Numa tarde, ele caminhou resolutamente até o bar e proibiu que os olhos sequer pensassem em atravessar a rua. Queria acabar com aquilo de uma vez por todas! Entrou no bar e fingiu distração; mas sentiu que ela estava lá, olhando-o como se à espera de algo mais que indiferença tola; também sentiu-lhe a inquietação. Se voltasse os olhos, até que a veria muito contrariada por não ter conseguido insinuar-lhe alguma coisa. E ele se manteve de costas para a rua, olhando para o vidro da estufa dos salgados, mesmo sem ter apetite. Ali, parado, ficou olhando sem ver até que as pupilas se dilataram ante a imagem refletida no vidro.
..........Que descoberta! Como se olhasse para um espelho, via nitidamente a porta do bar; num segundo plano, o seu rubicão, diabolicamente ensolarado, nenhum movimento de carros e pedestres, a fachada da loja, as prateleiras, roupas, o balcão e... ela!
..........Uma nova dimensão fora aberta e nela o mergulho seria profundo.
..........Mas, não se passaram nem dez segundos. Ela, já deixando a loja, atravessou a rua e foi saindo da imagem, crescendo na direção do mundo exterior, o dele. Quando a soleira foi transposta, ele sentiu novamente rubor nas faces. A pulsação acelerou-se fortemente, na garganta, e ele recuou; tornaria rapidamente à antiga estratégia de aparentar indiferença, com ares de "só mais alguém" à procura de alguma coisa à frente sobre um balcão qualquer. Ela parou bem ao seu lado e olhou para a mesma estufa, meneando a cabeça lá e cá, inclinando-se e chegando mais perto dele, também procurando algo à frente, e parou. As sobrancelhas dela se ergueram como se fossem denunciar alguma coisa percebida com total surpresa. E por alguns instantes ela ficou assim, ali, paralisada.
..........O pavor tomou conta do voyeur. Fora descoberto! Apanhado qual um espião amador! O que ela iria dizer ali, em público, na frente de pessoas estranhas?! Certamente, o fuzilaria com rajadas de "Seu sem-vergonha!!", "Seu maluco!", "Tarado!!", "Não se enxerga não?!". Ou chamaria polícia e o acusaria de assédio?? Talvez, simplesmente o olhasse com esmagador desprezo, daqueles que se tem por algum verme nojento; e ela teria razão. Era mesmo um verme idiota, incapaz de pensar numa saída de emergência ou numa desculpa sincera. Até poderia sair correndo, mas... como? para onde? era apenas alguém imóvel, aterrorizado com a possibilidade de um escândalo!
..........Então, ela falou:
..........— Lê... — era esse o apelido do dono do bar — embrulha uma esfirra... É pra minha cunhada, tá?
..........Ele gargalhou no seu interior, a escarnecer nervosamente de certos temores "ridículos" enquanto o raciocínio se normalizava: Humm, vejamos... bem... ela falou "cunhada"? Sim, falou c-u-n-h-a-d-a. Mas... ela seria casada? Estaria se referindo a um irmão? Bem, ele fez uma cara qualquer, própria de fila de ponto de ônibus, ou de balcão de bar, ao mesmo tempo em que dava uma rápida e casual olhadinha para ela, fechando o foco diretamente no dedo anular da mão esquerda... Porém, nada costumeiramente relevante encontrou ali.
..........Foi mais uma imprudência. Fatal. Ela devolveu de imediato a casualidade da "rápida olhadinha", com intensa malicia nos olhos, sádicos até, e ainda disse um "Oi, tudo bem?" repleto de sorrisos inocentes...
..........Ela pegou o pacotinho e com três quartos da boca para ele, o resto para o dono do bar, disse: "Tchaau...", desse jeito mesmo, assim esticadinho, virando-se e acrescentando uma balançada de cabelos no "...u", para deixar ali um pouco do seu perfume.
..........20h00min.
..........Ele podia ainda sentir a plenitude daquela fragrância, como se ela estivesse bem ali, ao seu lado, sob o chuveiro. Nem a água fria, nem o pior sabonete encontrado, nem o paladar amargo da bucha ensaboada davam conta de retirar-lhe o ardor do corpo, confundir-lhe o olfato e subjugar os sentidos que se amotinavam na pele. Já provara o perfume de quantas misturas, mas a dela era inebriante, era atordoante, era insidiosa, era cruel, era venenosa, era feitiçaria das boas; era um perfume daqueles que só se sente de muito perto, quando não há mais retorno ou fuga. Era cheiro que instilava paixão, o desejo de cometer um profundo e maravilhoso e pecado. Ensaboava e ensaboava os cabelos... Os cabelos! Ah! Que farta loucura rebelde e negra, convidando-o a emaranhar-se na perdição de suas trevas! Uma prisão de alma... a sua, bem ali, a se amarrar por aqueles milhares de fios de seda. Mais água fria e a espuma escorria pelo corpo... A pele morena, cúmplice daqueles olhos verdes e dos lábios vermelho-sangue. Queria beber daqueles lábios, passeando com a língua pelas suas bordas macias; corpo esguio e de movimento fugaz, de fina caça, cujo único destino sempre será o de instigar a voracidade de presas desejosas da melhor carne, do melhor sabor dos seios, dos quadris e coxas, de todas as entranhas...
..........Ainda enxergava ao seu lado aqueles braços delgados, as mãos finas, como se chamassem a um animal selvagem para o desafio de enfrentar o carinho que certamente irá dominá-lo para sempre. O andar sutil... como o de quem aprendeu que a sensualidade não deve ser escondida, mas apresentada a todos com requintes de maldade, com provocação de volúpia, como a pior das torturas: aquela que fere a alma, tanto quanto uma inapelável sentença de eterno degredo, e a atira o homem longe de sua razão.
..........Insensível a tanta água gelada, ele ainda permaneceria sob a ducha, nu, com o seu desejo dissolvendo-lhe o sangue, cozendo a pele e a imaginação com todos os tipos de sonhos que se encontrariam nela; sonhos que estariam além do que fora visto, longe daquela rua, muito além daquele balcão, sem aquelas roupas, no cheiro dela e nos delírios oferecidos por aquele corpo, inteiramente nu...
..........Ainda tentou lutar contra a destruição de seus princípios, mas era tarde demais... não conseguiu. Ele estava com fome e com vontade mesmo de lutar, mas por outros motivos; estava com o desejo de morder, de tomar, de possuir a volúpia daquela fêmea, de um salto só e sem planejar qualquer travessia; simplesmente, avançar e tomar. A sua fuga estaria nela. A consciência já lhe era inútil e não mais poderia retomar o seu cotidiano.
..........Cheirando desesperadamente aquele sabonete horroroso, ele tentava e tentava livrar-se, mas estava perdido. Enfeitiçado. Estava enclausurado naquele sonho, soterrado sob seus próprios escombros e toneladas de desejo que ainda viriam. A visão escurecida e envenenada de morte. A ele, só restava o instinto e não poderia abandonar a presa. Nem queria verdadeiramente abandoná-la!
..........Porém, a sua verdade era oposta ao sonho, como a calçada e a loja. Era trágica e também estranhamente cômica, mas naturalmente feliz. Ele, o caçador, fora caçado por uma serpente esguia, que o encantara, que o enlaçara e o envenenara. Ela o atingira e ele não podia... nem queria... fugir.
..........Fora caçado sim, mas como se caça a um velho animal. Impiedosamente. Como se caça a um velho lobo, fraco e doente, e a quem restaria apenas um último uivar, obediente ao chamado da sua morte.

josué do prado filho
o uivo do lobo