MAMÃE!!!

 

 

Era dia de pagamento. Cheguei ao banco e me dirigi ao guichê onde se lia PENSIONISTAS E APOSENTADOS. Meus magros proventos de professora me esperavam. Na fila, notei quando  o moço passou a me olhar com insistência. Pensei comigo que talvez ele fosse pensionista, coitadinho. Teria perdido os pais? Ou a esposa, que sabe? Instintivamente levei a mão aos cabelos, dando uma ajeitada, e disfarçadamente me olhei no vidro do guichê. Tudo em ordem. Eu nem parecia uma aposentada. Ele estava a um canto, só olhando, e para mim. Então talvez fosse um funcionário do banco, ou estivesse acompanhando a mãe velhinha. A moça do caixa me estendia a mão com alguma coisa, enquanto eu  lembrava que talvez fosse conveniente passar mais um pouco de batom.

— Senhora! — ouvi a voz com certa impaciência.

Claro, o dinheiro. Recebi o maço de notas, consciente do olhar do moço, que não me abandonava.  Flertei com ele, flertamos um bom tempo, enquanto eu fingia demorar em contar as notas. Ainda bem que escolhera ser funcionária pública. O dinheiro que agora entrava não era muito, mas também não era a miséria que um aposentado comum recebe. Saí de frente do guichê, procurando imprimir uma certa sensualidade no andar. Isso pareceu encorajá-lo  pois veio em minha direção. Retardei o passo para dar-lhe tempo. Já bem próximo, abriu um largo sorriso e exclamou, numa voz infelizmente bastante audível:

— Mamãe!

Olhei em volta e não vi nenhuma das senhoras que aguardavam na interminável fila responderem ao chamamento. Então, só podia ser comigo mesma. A essa altura, ele me alcançou e passou os braços em torno dos meus ombros, um delicioso cheiro de lavanda cara se desprendendo de seu corpo jovem e rijo.

— Mamãe! Exclamou novamente, e para meu espanto, continuou num tom entre surpreso e magoado. — Não está me reconhecendo?

Olhei-o melhor. Não, claro que não podia ser. A idéia louca cruzou meu cérebro, como  num terrível pesadelo: será que o mau passo de tantas décadas atrás, resolvido mediante a intervenção de uma curiosa não teria dado certo e se transformara nesse maravilhoso ser, que me chamava sem nenhum sinal de recriminação de mamãe?

Impossível, definitivamente impossível. Falei em tom determinado:

— Desculpe, mas você não é meu filho.

— Ora, é claro que sou.

— Quer saber mais do que eu, que sou a mãe?

— Então, confessa que é a minha.

— Sua, não. Das minhas três filhas, por sinal bem mais novas que você.

— Mas poderia ser minha mãe.

— Eu ou qualquer uma dessas senhoras que estão aqui.

A história, além de confusa, era indelicada pois me fazia lembrar que eu tinha idade bastante para ser mãe de marmanjo.

— Acontece que tenho provas de que a senhora é minha verdadeira mãe.

E sacou uma foto do bolso, que segurou bem embaixo do meu nariz. Cada vez mais vexada, afastei seu braço até o máximo do comprimento. Se achava que eu era sua mãe, será que não desconfiava que eu já não enxergava de perto? Ainda assim, não consegui distinguir as figuras da foto. Num ato de coragem, tirei da bolsa meus óculos para curta distância e olhei a foto. Eu e ele sorríamos para a câmara, a Torre Eiffel fazendo fundo.

— Mas eu nunca estive em Paris!

Olhou-me com ar consternado:

— Claro que esteve. Foi logo depois que papai...

Minha voz tornou-se perigosamente belicosa:

— Que papai o quê?

— Bem — pigarreou, constrangido — que papai saiu de casa para morar com aquela menina.

— Moço, você está completamente louco. Estou casada há mais de vinte cinco anos com o mesmo marido, que nunca me deixou por ninguém. Nossas filhas moram conosco, somos uma família feliz e a única viagem internacional que fiz foi para Buenos Aires, isso sem contar umas compras em Foz do Iguaçu, que não chega bem a ser viagem. Para Paris, nunca.

— Ah é? E o que me diz da foto?

— Sei lá, uma sósia talvez. Vamos ver: como é o nome da sua mãe.

— Angelina. Angelina Torres de Moraes.

Estranho. Meu nome.

— Não pode ser. Alguma coisa de muito errado está acontecendo e acho que sua aparição repentina é, no mínimo, suspeita.

— Concorda que você e minha mãe têm o mesmo nome?

— Homônimas. E daí?

— Concorda que você e a mulher da foto são idênticas?

— Sósias, nada mais do que isso.

— Homônimas e sósias. Não parece coincidência demais?

— Ora, o que você quer dizer...

— Confesse de uma vez. Já chega de me renegar.

Nesse ponto, todos em volta me olhavam, as mulheres com censura, os homens, com curiosidade.

Virei-me para todos e disse bem alto:

— Gente, não sou mãe desse moço, que, aliás, nunca vi antes. Posso provar — e pegando minha carteira na bolsa, exibi as fotos 3x4 das minhas filhas e do meu marido. — Ele deve estar maluco, inventou essa história toda não sei para quê. Fuzilei-o com o olhar. — Afinal, o que você quer de mim?

— Amor materno, só isso.

Seu tom foi tão sincero que quase me condoí. Aliás, ele tinha  belos olhos azuis, cabelos quase negros, fartos e sedosos, ombros largos. A roupa esporte caía-lhe bem, a pele era lisa e bem cuidada, de um bronzeado que indicava que gostava de praia. Filho para mãe alguma botar defeito. Durante essa breve inspeção, a voz melodiosa insistia, insinuante:

— Vamos, Mamãe, deixe que eu a abrace. Assim — e envolveu-me em seus braços, apertando-me contra o corpo musculoso, meu rosto afundando em seu peito.

Nisso, o berro.

— Larga, cafajeste, ladrão de senhoras aposentadas.

Separei-me a contragosto daquele abraço nem um pouco maternal, que me proporcionou instantes do mais puro deleite, e vi o guarda do banco, revólver apontado para o moço. Um pescoção, algemas e o bruto foi empurrando meu jovem.

— Malandro. Quase que ele pega seu dinheiro, senhora. Enquanto forçava o abraço, estava abrindo sua bolsa. Pode ver.

Com efeito, minha bolsa a tiracolo estava aberta, a carteira despontando lá de dentro.

— É sempre nas aposentadas que ele aplica o golpe.

Mais um pescoção.

— Mas desta vez se deu mal. Vai é pro xadrez com esse jeito todo arrumadinho, roupa fina e perfume estrangeiro. Quero ver se depois de um tempo lá volta a amolar velhinhas.

— Ei, ei, ei — protestei — veja lá como fala. Não sou nenhuma velhinha, bem longe disso.

— Desculpe, dona, foi força de expressão.

— Força de expressão ou não, quem está se portando como um cafajeste é o senhor. Além de me ofender, fica batendo no moço.

— Nesse malandro? Mas é isso que ele merece. Especialista em tudo o que é trampolinagem, até se dá o trabalho de montar foto para enrolar a vítima — e já se aprontava para descer-lhe o braço novamente quando meu pretenso assaltante se encolheu todo e me olhou de um jeito que, dentre outras coisas, derreteu meu coração. Fui rápida:

— Aí é que o senhor se engana. O que ele merece — e dei uma piscadela para o belo ladrão — é muito carinho. Pode soltar, é meu filho.

Lancei um olhar desafiador para todos que assistiam a cena. Entrelacei meu braço possessivamente no dele e, bem juntinhos, fomos embora.

Hoje, Raimundo e eu vivemos felizes em Paraty. Para sobrevivermos, tenho minha aposentadoria e também mexo um pouco com artesanato. Abrimos uma banquinha  no Centro Histórico e ele finge pronúncia de peruano, que encanta as compradoras. Vivemos em completa harmonia: dou a ele o que ele quer e ele me dá o que preciso.

Minha família? Deve ir bem, obrigada.

 

 

 

AMANHECER

 

 

Naquele dia, João Ignácio soube que ia  morrer.

Desesperou-se, teve ódio da vida, mais ainda da morte.

Um suor frio escorria-lhe pelas costas, enquanto lia e relia o papel que o sentenciava. Mil pensamentos cruzavam sua mente: poderia ter havido algum engano. E se refizesse o exame? Mas a médica fora enfática, não deixara nenhuma dúvida.

No meio daquele desespero todo, tentou buscar algum sentido para sua vida, mas tudo o que encontrou foi uma avassaladora solidão.

Imediatamente, veio-lhe Daniel à cabeça. Poderia telefonar, com certeza Daniel não ia lhe negar conforto numa hora dessas. Chegou a tirar o fone do gancho, mas o gesto ficou inacabado. Por que estava se enganando? As coisas tinham mudado, não eram mais o que foram, a esperança de reconquistar Daniel era igual à de reconquistar a saúde.

O corpo doía de tanto medo. Pegou a caixa de calmantes, engoliu dois comprimidos com uma dose de uísque, aquele uísque estrangeiro que guardava para ocasiões muito especiais — a última vez que bebera foi quando se despediram. A lembrança doeu tanto ou mais que o medo. Encheu o copo novamente. Melhor acabar a garrafa logo, nem que bebesse sozinho. Afinal, a morte era uma ocasião muito especial mesmo, talvez a mais especial que se possa ter nessa vida sem nexo.

Continuou chorando pela noite adentro, enquanto fazia um inventário de seus bens e lembrou com ressentimento, que tudo ficaria para os sobrinhos, que só via uma vez por ano, no Natal, quando a irmã convidava para a ceia. Só. Nem lembrava direito das idades deles, muito menos das datas dos aniversários. E pensar que  ficariam com o apartamento e o carro, comprados à prestação com tanto esforço. Pior ainda, ficariam com o anel de noivado que fora de sua mãe, com a colcha que ela mesma bordara para o enxoval, a fotografia onde ela e o pai sorriam contra um fundo desenhado formando uma paisagem marinha, o crucifixo que ela lhe dera na sua primeira comunhão e que tinha sido dado a ela pelos avós, o porta-retratos de prata com a fotografia dele ainda bebê, sentado no colo da mãe.

Acabou pegando num sono atribulado onde apareciam sua mãe, Daniel e a cachorra vira-lata Lady, companheira de sua infância, que morrera se contorcendo de dor.

Acordou banhado em suor, lembrando que aquele era um dia a menos no tempo que lhe restava e quase gritou de desespero.

A idéia ocorreu-lhe como que enviada dos céus.

Claro, aí estava a salvação! Se não a salvação, pelo menos a esperança.

Ligou para a repartição, avisou que não iria trabalhar naquele dia, sentou-se à mesa da sala, espalhou diante de si extratos de banco, escritura do apartamento, carnês de tributos, documentos do carro e começou a somar. Horas depois, deduzidas as dívidas, tinha diante de si uma quantia razoável. Tudo vendido, poderia fazer o tratamento no exterior. Com certeza conseguiriam ao menos  prolongar sua vida.

Mas será que valia a pena? E se sofresse muito? Quanto já não lera sobre os horrores da fase terminal... Não, disse para si, queria viver nem que fosse por um minuto a mais.

Animado pela decisão, naquele mesmo dia começou a tomar as providências. Ligou para sua médica, que indicou um hospital americano, apesar de que poderia afiançar que nada fariam além do tratamento a que seria submetido aqui. Falou com uma amiga, professora de inglês, que redigiu, sob juramento de total sigilo, o telegrama a ser enviado naquele mesmo dia ao hospital indicado. Telefonou para algumas agências de turismo verificando os preços.

Os dias que se seguiram mal deram tempo para João Ignácio pensar na desgraça que se abatera sobre sua cabeça.

A resposta do hospital chegou rápida marcando data para a internação.

João Ignácio tirou férias no serviço, levantou todo o dinheiro que tinha na poupança, teve sorte de conseguir vender o apartamento, o telefone e o carro a bom preço, vendeu alguns objetos de mais valor, mandou pelo correio sua foto de bebê sentado no colo da mãe, aquela na moldura de prata, para o Daniel. Debateu algum tempo se devia ou não mandar junto uma cartinha. Afinal, resolveu enviar apenas um bilhetinho onde se lia, em letra caprichada, a palavra Adeus bem no centro da página.

E assim chegou a véspera da viagem.

Com o passaporte e a passagem na mão, lastimou-se de só então ter pensado em viajar. Por que não fora antes, quando tinha saúde? Tanta excursão, poderia ter conhecido lugares maravilhosos. Lembrou, com mágoa, que não iria realizar seu sonho de ver a cidadezinha no Piemonte de onde vieram seus avós, da qual sabia, ainda pequeno, o nome das ruas e dos vizinhos, divertindo os adultos quando recitava em dialeto, as quadrinhas que o nono lhe ensinava.

Chorando de raiva por tanto tempo desperdiçado, tirou a mala do armário e nela guardou suas melhores roupas, acariciando uma a uma, à medida que dobrava. Traziam-lhe tantas recordações, cada uma daquelas roupas! Festas, risos, encontros e desencontros, amores e decepções, tudo agora lhe parecia um tempo mágico, que deveria ter sido tratado com carinho, com amor mesmo, sem lamentos nem lágrimas.

No dia do embarque, acordou com palpitações.

As horas se recusavam a passar, e à medida que o pânico crescia, pensou em desistir de toda aquela loucura, ficar quieto no seu canto até morrer. Mas já era tarde. Nem casa tinha mais. De seu só restara uma passagem de ida para um país estranho e uma carta da médica, escrita numa língua que não entendia.

Quando chegou ao balcão da companhia aérea, tremia tanto que mal conseguia coordenar os movimentos. Procurou a passagem nos bolsos do paletó, sem conseguir encontrar. Abriu a valise de mão, remexeu lá dentro, tirou alguns itens, não encontrou o que procurava, fechou a valise, viu que deixara coisas para fora, abriu de novo, o coração batendo tão descompassado que pensou que fosse morrer lá mesmo. Finalmente encontrou a passagem, entregando-a à atendente, que o observava com o olhar glacial.

Na hora de passar pela alfândega, sentiu que ia desmaiar. Nada a declarar, a não ser uma vida vazia, sem sentido, mas que ele amava com fervor e que lutaria como louco para preservar até o último minuto.

Entrou no avião. Por sorte, coubera-lhe o assento junto à janela. Queria ver o nascer do sol. Lera em algum lugar que o nascer do sol visto a dez mil metros de altitude é um espetáculo deslumbrante.

Levantaram vôo e João Ignácio foi novamente tomado pelo pânico. Daria tudo para estar em qualquer lugar menos naquele caixão voador. Tentou se acalmar, pensando que mais algumas horas e estaria na segurança de uma cama de hospital, cercado por médicos e enfermeiras, cheios de atenção.

Após o segundo uísque, começou  a relaxar.

É, fizera bem, tomara a decisão acertada, a Ciência faz progressos todo dia, quem sabe não iria ficar curado.

Foi interrompido pela aeromoça, com a bandeja de jantar. Beliscou a comida sem fome. Depois, folheou uma revista, que logo pôs de lado, e ajustou os fones de ouvido, tentando se concentrar no filme. Quando viu que era inútil, que seus pensamentos voavam pelo tempo, dispersos e angustiosos, chamou o comissário de bordo, perguntou a que horas o sol nasceria, acertou seu relógio, já contando com a diferença do fuso e pôs para despertar.

Até que dormiu bem, consideradas as circunstâncias.

Acordou antes mesmo do relógio soar. Ainda não era hora.

Lá fora, noite fechada.

Alguma coisa naquele vôo, o silêncio que reinava dentro do avião, fazia com que se sentisse melhor, uma certeza interior de que tudo acabaria bem.

Então, uma tênue luz irrompeu no céu. Era o primeiro raio de sol anunciando o amanhecer. João Ignácio grudou o rosto na janela, emocionado. Mais e mais, o céu passou a se tingir de cores, a noite se abrindo para dar lugar à chegada do novo dia.

João Ignácio ainda teve tempo de ver o sol nascer.

 

 

 

 

DENTRO DA NOITE

 

 

Da janela, ela espreitava a noite (lá fora, só escuridão). Olhava sem saber o que buscava (lá fora, um cachorro latia, um grilo cantava). Pensava e pensava, nas coisas que vinham acontecendo (lá fora, um carro se aproximava). Perguntava a si mesma se estaria ficando doida (lá fora, o barulho do breque rangendo). Mais cedo ou mais tarde, alguém viria atrás dela (lá fora, os faróis  se apagavam.) Seria ele? (lá fora, o motor silenciava). Por que esse medo, se nada fizera (lá fora, a porta se abria). Quem seria esse homem que tanto a apavorava (lá fora, o vulto de um homem saindo de trás da direção). Nunca, nunca tivera inimigos (lá fora, a porta do carro que se  fechava). Verdade, tivera uma desavença, nem se lembrava com quem (lá fora, o homem começou a andar em direção a casa). Tentou gritar, mas não conseguiu (lá fora, os passos se apressavam). Tentou acender as luzes, que não se acenderam (lá fora, alguma coisa reluzia em meio à escuridão). Tentou alcançar o telefone, mas as pernas não obedeceram (lá fora, o homem galgava os poucos degraus que o separavam da porta de entrada). Quem era esse homem, porque vinha assustá-la? (lá fora, a chave girando na fechadura). Quem é você? Quem é você? (lá fora, a maçaneta girou). Ela quis desmaiar, mas não conseguiu (lá fora, a porta abriu com um estrondo).

— Por favor, eu não fiz nada. Juro, juro...

Aqui dentro, o homem, o estampido, o baque de um corpo, passos fugindo apressados.

E a noite escura a encobrir tudo.

 

 
 

Jeanette Rozsas, advogada e escritora, vem recebendo inúmeros prêmios em concursos literários, inclusive no exterior. Participa de várias antologias e sites de literatura. Publicou com o grupo Contares, do qual é fundadora, as coletâneas Contares, Outros Contares e Contares conta o Natal. Seu livro de contos Feito em silêncio (Ed. Vertente, 1996) obteve segundo lugar no concurso de obras publicadas, promovido pela Academia de Letras de São Lourenço. Em 2003 publicou Autobiografia de um crápula (Ed. Limiar), romance premiado no Concurso Literário Alphonsus de Guimaraens, da Associação dos Magistrados do Brasil/RJ e no Concurso Internacional Cidade de Conselheiro Lafayete-MG. Acaba de lançar, pela editora 7Letras (RJ), o livro de contos Qual é mesmo o caminho de Swann?, dentro da Coleção Rocinante. Tem trabalhos publicados na revista de contos Ficções, nas revistas Bestiário e Literatura, nos jornais Rascunho, de Curitiba, e Diário de Aveiro, de Portugal.