A
SALVAÇÃO DO MUNDO
Não
existe num verso nada de útil à salvação do
mundo.
O
poema não tem mais do que uma casa, paredes
caiadas
de
branco, os azulejos a rebaterem o sol contra a
sombra,
dizendo-lhe
o seu lugar. O poema é meu pai em
sofrimento
na
cama do hospital, estas mãos inúteis que lhe
afagam
a
dor, circunstância de lugar, reduz à sombra o sol.
Casa
essencial,
a do poema, memória e salvação de um
homem.
O
mundo é útil de poesia. Todos os versos são
possíveis.
A
MÃE ESTÁ SENTADA NO ALPENDRE
Para
a minha mãe, advérbio de estar
A
mãe está sentada no alpendre a ver os
advérbios
passar:
serenamente, completamente, em paz,
um
advérbio de modo de estar, um orgulho. A
mãe
está
sentada no alpendre olhando em frente o
campo,
o
cemitério, a igreja, o padre celebrando a
missa
e
o seu morto. A mãe vê a serenidade completa da
paz
atravessar-lhe
o corpo e deitar-se sob o mármore,
sob
as lápides, as flores e o ar que as esvoaça. A
mãe
vê
os advérbios passar, levando-lhe a paz. E uma
vez
mais
o padre, na igreja, dizendo: Senhor, dai-nos a
paz.
AOS
AMIGOS
Porque
procuro no poema final e definitivo a face de
Deus,
todos
os versos que escrevi me hão-de condenar ao
inferno.
BRUCE
SPRINGSTEEN
[Secret
Garden]
Todos
temos segredos guardados na alma. Todos
roubámos
selos na loja do senhor Passos para
adornar
a
coleção que agora, anos depois, esquecemos.
Todos
matámos
o periquito quando, distraídos, o
deixámos
fugir
da gaiola e dissemos foi Deus quem o quis
livre,
mãe.
Todos temos um sítio só nosso onde não
permitimos
ninguém: nem aquela que mais amamos,
pela
vergonha que esses segredos trazem. Há
sempre
uma
história que não conseguimos lembrar e que
não
conseguimos
esquecer. Demasiadas verdades
guardadas
junto aos selos e ao fantasma
do
pássaro que ainda hoje nos persegue.
BRIGHT EYES
[Poison Oak]
JRS, In Memorian
Encerro
neste verso a distância que sei do coração
ao
Pacífico.
Deixaste para trás o pó, o sol quente, uma
cascavel
e
um pedaço de rocha sedimentar onde está uma vida
inteira.
Atravessaste
o rio, fugiste para o México. O ar quente de uma
tarde
que
parece para sempre. Hei-de encontrar-te um dia,
Jorge,
no
meio das areias da costa ocidental, sob
Guadalajara.
Porque
agora, mordido que foste pela cascavel,
enterrado
que
foste sob a rocha e o pó da nossa ideia de
viagem,
agora
só me resta chegar sozinho ao fim da minha
vida.
O
APARADOR
A
casa está escondida por entre a
vegetação.
Há
no bosque um limite para a verdade.
Lá
dentro, o aparador tem o pó dos anos.
A
casa na árvore desapareceu. O melhor
sentido
das coisas é a sua memória.
O
CORREDOR
As
aves fecham o ninho aos olhos.
Voam
no corredor, pasmando.
Onde
está a morte, onde em casa?
Ninguém
morreu.
E,
entre as asas escuras, aves canoram
uma
lembrança aflitiva. Desaparecer dói.
MULHER
MODERNA
A
minha Macondo chama-se O Que Foi.
O
meu realismo não tem nada de mágico.
Não
construí casas caiadas antes de um
pântano,
nem
tive nenhum Melquíades como amigo.
Vivo
preso ao passado, tenho mais personagens
do
que a Amazónia tem árvores. Chegam-me
tu,
ele e ele. Posso tentar fazer uma
expedição
para
vos conservar, mas o mais certo é que
o
galeão espanhol esteja mesmo afundado.
*
Confesso
que cheguei tarde. Deram-se vitórias,
derrotas
e heróis, inscrevi na certidão nove
de
Abril de mil novecentos e setenta e
três.
Acabou
a Guerra Fria, os espiões trocaram
de
lado como de beijos entre amantes, tenho
quase
quarenta anos. Perco a vida na segunda
repartição
de finanças, sonho com batalhas
apenas
em filmes de Hollywood, fico sempre
quase.
Procuram-se tempos que procurem
heróis,
mais que salário certo e tratar dos
avós;
mais
do que carimbar mulheres modernas,
ser
um jovem empresário até aos quarenta
e
cinco. Confesso que cheguei tarde, de
nada
me
vale a guerra e o herói que em mim arde.
*
Escrevo
cartas de amor em maiúsculas. Abro
a
lista telefónica, escolho uma qualquer
Verónica,
Matilde
ou Francisca. Comprei os selos, preencho
o
envelope com o endereço roubado à
modernidade.
(Não
mentirei: já houve alturas em que
apontei
números
de telemóvel vindos do facebook e enviei
mensagens
escritas de um número sem assinatura.
Mas
sentia-me invadir a privacidade imediata
da
mulher
moderna. Parei quando obtive a primeira
resposta,
à terceira tentativa.) Envio cartas sem
remetente,
espero sentado no dia seguinte a entrega
pelo
carteiro, resguardado do outro lado do
passeio.
O
que está em maiúsculas não interessa. Só o
olhar
de
espanto quando vêem a carta como uma
promessa.
*
Talvez
tenha uma irmã no Kentucky,
um
cão no meio da planície e as cercas
brancas
onde descansar os olhos.
Talvez
tenha um irmão no Arizona.
Falta-me
quem amar. Os meus pais
morreram
ou matei-os eu.
A
família na aldeia ou em lugar nenhum.
Só
mulheres modernas onde descansar
o
corpo. Se não em Phoenix,
pelo
menos em Nogueiró. Irmãs,
irmãos,
gente mais do que perfeita
para
cá da cancela do meu jardim
ideal.
Para lá de nenhum assim,
talvez
tenha um amor incondicional.
*
Terei
coragem de Pavese para deixar
tudo
preparado e partir? Um diário
com
todas as indicações de que o fim
se
aproxima e a passos muito largos,
a
reunião de toda a poesia num original
devidamente
encapado e pronto a ser
editado
na Einaudi? Trabalhar cansa.
Aceito.
Mas cansa mais não fazer nada.
[Poemas
do livro Instituto de
antropologia. Lisboa: Glaciar, 2013]