Sobre o cotidiano
tirar o corpo da cama, calçar os chinelos, tomar o café com açúcar, provar um afeto, lamber a colher de mel, aguçar a úlcera lendo as manchetes de jornal, rir da coluna de política, travestir-se para o mundo, enfrentar o trânsito, estacionar o carro, entrar em cena, a performance do trabalho, os risos, os silêncios, as palavra comedidas, o almoço com sobremesa, o café sem aspartame, as reuniões da tarde, os chinelos nos pés à noite, as saudades, o chá mate quente, o barulho dos carros, as árvores dobrando-se na noite de ventos e trovoadas, a cabeça sobre o travesseiro que cochicha sonhos e a vida no ponto a partir do qual, realmente, começa.
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Hoje amanheceu escuro. As janelas da casa estão todas lacradas e os vidros ainda não receberam as ordens para a luz entrar. Tudo está breu. Talvez algum dia eu abandone as palavras. Não vai ser mais meu corte e costura. Talvez um dia eu emudeça como estas janelas nesta manhã. É manhã? Só escuto alguns sons ao longe. Mas, nada adianta. Talvez emudecer seja mais imprescindível que parir palavras.
Das imagens invisíveis
A imagem retida na retina clara delata a fotografia que não postei. Não enviei para o ciberespaço tecnológico, nem compartilhei visualmente com os navegantes virtuais. Os contornos de um castelo às avessas. Com cravos que crispam de um lago verde. Surreais sombras de uma ponte, uma passagem que já não é, um vir a ser de um caminho. Também vejo a sensação de uma cidade suspensa. Verde como o cheiro melancólico da neblina. Um som estrangulado pela névoa. Cravos crispados, que irão ficar gritando em meus ouvidos (como imagem retesada na mente).