Lucidez profana

 

Para todos os artistas

 

Deixe esse homem nascer em paz

pois esse homem traz na natureza

a essência de fluir toda a beleza

que os homens tolos nem percebem mais.

 

Deixe esse homem crescer em paz

pois esse homem traz na consciência

a lucidez profana da inocência

que a gente grande não conhece mais.

 

Deixe esse homem viver em paz

pois esse homem traz nas mãos atadas

o mágico poder próprio das fadas

que os nossos filhos já não trazem mais.

 

Deixe esse homem morrer em paz

pois esse homem traz na luta e na conquista

a alma agonizante do artista

que a sua vida não agüenta mais.

 

 

 

 

 

 

A menina

 

Eu vi a menina

no meio do mato

olhar para um lado

olhar para o outro

tirar a calcinha

e sem-vergoinha

bem abaixadinha

fazer cocozinho.

 

Eu vi a menina

no meio do mato

olhar para um lado

olhar para o outro

pegar a folhinha

e assustadinha

bem engraçadinha

limpar a bundinha.

 

Eu vi a menina

no meio do mato

olhar para um lado

olhar para o outro

vestir a calcinha

sorrir bonitinha

e apressadinha

sair por aí.

 

 

 

 

 

 

Réquiem para um amor

 

Desde o momento em que eu lhe vi morrendo,

apercebi-me: estava lhe perdendo.

Olhei pro tempo, andei léguas pra trás.

A vida veio inteira em minha mente.

Um filme surrealista, tocha ardente,

como um vulcão, uma fera voraz.

Desejei ser a autora do destino.

Vi-me menina, como o Deus Menino,

nos braços da Senhora Mãe donzela.

Ou era uma criança na janela,

olhando os "mascarados" na avenida,

todos querendo se esconder da vida.

 

A vida, então, pra mim era um brinquedo,

eu não entendia porque tanto medo.

O mesmo medo que me assombra agora,

ao ver você saindo do seu corpo.

Espírito de luz num corpo morto,

querer ficar, mas tendo que ir embora.

A dor maior era lhe ver calada,

sangrando a vida em plena madrugada.

Vi-me sozinha. Não entendi mais nada.

E a morte veio como erva daninha,

matando tudo. E eu ali, parada.

 

Que gosto amargo, que cansaço imenso.

Você virando um anjo em minha frente.

Deixando de ser mãe e de ser gente,

agonizando no extertor final.

Que sensação sinistra, ver seu funeral!

Loucura, ver a terra lhe cobrindo,

e eu lhe pedindo pra não ir embora.

Rezando, mesmo sem saber rezar,

buscando alguma força pra me dar.

Vi Deus virar Diabo aquela hora!

 

A casa parecia um templo antigo,

mal assombrado, sem qualquer amigo.

Uma cena delirante, teatral.

E eu fui me dando conta, de repente,

que eu já não era eu, eu era alguém.

Sem pai, sem mãe, um animal sem vida.

Um cão lambendo a própria ferida.

Sentei no chão, chorei amargamente.

E desejei ser terra e ser semente.

Fazer você voltar, sobrevivente.

 

Você saiu de mim como uma ladra.

Silenciosa, cabisbaixa, errante.

E me deixou sozinha e desarmada,

como uma marginal principiante.

Você roubou meus últimos brinquedos.

Você levou todos os meus segredos.

O meu maiô de elástico vermelho.

O meu batom, o meu primeiro espelho.

A bicicleta, o álbum de retratos.

Meus quinze anos, meus sapatos altos.

Meus carnavais e minhas fantasias.

A minha serpentina, o meu confete.

O meu Colégio Santa Bernadete,

minhas colegas, minhas alegrias.

Levou minhas cigarras, meus oitis,

a minha Madragoa, os bem-te-vis,

levou minha Avenida Beira-Mar.

Levou Jauá, levou meus veraneios,

o barco de painho e meus passeios.

Levou meu São João, meu milho verde.

Meus doces sobre a mesa, meus natais.

O meu acordeon, o meu piano,

os meus concertos e os meus festivais.

Me diga mãe, o que é que eu faço agora,

se sem você eu já nem sonho mais?

 

Você me levou tudo mãe, até minh’alma!

Em que ternura eu vou buscar a calma?

Em que calor eu vou guardar meu frio,

se até meu coração ficou vazio?

Em qual abraço eu vou guardar meus medos,

se hoje estou em todos os degredos,

se fui deixada ao sabor do vento,

amargurando a cara do meu tempo,

mortificando a dor todo o momento?

 

Responda, mãe, de onde está agora.

Dê-me o sinal que eu lhe pedi outrora.

Se não existe nada além da morte,

entrego a minha vida à própria sorte.

Responda mãe, o que eu pedi um dia,

em nome da esperança que eu perdi,

em nome do poeta e da poesia.

Por cada ideal, cada utopia,

faça os meus versos ter algum sentido,

faça vibrar o eco universal.

Atenda mãe, meu último pedido.

Responda mãe, num gesto maternal.

Valeu ou não, um dia ter nascido?

Valeu ou não, um dia ter vivido?

A morte é o começo, o meio ou o final?

 

 

 

(Do livro Lucidez Profana)

 

 

 

Exército de anjos

 

Pequenos, barrigudinhos

Olhares tristes, mansinhos

Sorrisos amarelados

Perambulam nas esquinas

Frágeis como passarinhos

Os meninos e as meninas

Filhos das filhas das ruas

Donos dos bancos das praças

Pés-de-vento, pés descalços

Desamados, destemidos

Perseguem-lhes os cães de raça.

 

Vira-latas das esquinas

Frágeis aves de rapina

Armados de pedra e pau

Os meninos e as meninas

Pastores das alvoradas

Atravessam madrugadas

Sempre em estado de graça

Adormecem ao relento

Parecem donos do tempo

Perseguem-lhes os cães de caça.

 

Borboletas sob o sol

Vaga-lumes sob a lua

Sem presente e sem porvir

Quebram cercas, pulam muros

Sem saber pra onde ir

Os meninos e as meninas

Entre ódios e branduras

Guerrilheiros de almas puras

Maltrapilhos, quase nus

Têm um coração que clama

Uma alma que reclama

São todos anjos da terra

Essas crianças de luz.

 

 

 

 

 

 

Carta de alforria

 

Eu não queria carregar os meus poemas,

com as minhas próprias mãos.

E levá-los como o faço,

tímida e constrangida,

ao encontro dos homens.

 

Queria que os meus poemas voassem

leves, soltos, libertos por aí.

E com suas próprias asas, atravessassem

o tempo, ganhassem o mundo.

 

Poemas atemporais que invadissem corações.

 

Por que será que os meus poemas,

cafusos, mamelucos, mulatos, caboclos,

dependem tanto assim de mim?

 

Será que esses meus poemas

ainda vivem nas senzalas?

 

Tristes poemas cativos!

Nem percebem que têm o destino dos pássaros.

 

 

 

 

 

 

Poética

 

Poemar é ser abelha,

borboleta, passarinho.

De noite, dormir no ninho.

Madrugada, versejar.

De dia, voar, voar...

Aventurar-se aos auspícios.

Nem que tenha que fazer

o maldito cocozinho

na cabeça do Vinicius.

 

 

 

(Do livro Exército de Anjos)

 

 

 

Poema inútil

 

Não sei o que fazer para chover-te as terras.

Nem sei, ao menos, amparar-te as dores.

Eu bem quisera serenar em tuas serras

e orvalhar-te inteiramente os vales.

Mas… a lágrima que tenho é pouca.

O meu coração nem sangra mais.

 

Se as minhas mãos fossem pétalas,

nelas eu guardaria para ti os doces rios.

Se fossem conchas, por ti guardaria os mares.

Mas… as minhas mãos são frágeis

e meus dedos enrijecidos e débeis.

Trêmulas, as minhas mãos só sabem versejar!

 

Mãos inúteis, essas minhas, que nunca souberam arar.

 

 

 

 

 

 

Ritual sagrado de vida e morte

 

Aqui e alí, eu continuo a nascer.

E vos convido a participar desse sagrado ritual,

onde efêmera e impermanentemente sou lua e sol.

E em que oníricas fadas rodopiam evanescentes.

Aqui não tem tempo. Nem muros de pedras.

Trazeis libertas as almas e serenos os corações.

E alguns perfumados incensos e raminhos de alecrim.

Se ao meu lado ficarem, untarei vossos corpos nus

com o óleo das rosas vermelhas do bosque.

Revelar-vos-ei os caminhos secretos das florestas,

e as grutas encantadas, abrigos de delicados morcegos.

Percorreremos rios que escondem serpentes aladas,

e mares que guardam gigantes cavalos-marinhos.

Sobre eles, seguiremos ao encontro de translúcidas medusas.

E comeremos verdes algas e beberemos o roxo vinho musgal.

Submersas, as conchas nos servirão de taças.

Saudaremos felizes os Nagas ressuscitados.

A viagem parecerá longa. Mas... não, nada demora.

Encantados, eis que renasceremos do fundo do mar!

De volta, encontraremos uma frágil criança chorando,

débil folha seca, pendurada nos braços da mãe faminta.

E na terra rachada, um velho sedento sugará o derradeiro cacto.

Nós, renascidos, seremos a chuva, o leite, o mel.

E juntos, despertos, choraremos a vida e a morte.

Até a última gota das nossas salgadas lágrimas.

 

 

 

 

 

 

Dentro de mim

 

O prazer de ter-te assim dentro de mim

É mais que a alegria de viver

É mais que ver o sol parindo o dia

dentro da lua a desaparecer.

 

O prazer de ter-te assim dentro de mim

É mais que o vôo livre do tiê

Mais que o casulo, enfim, desabrochando

Pra borboleta pousar em você.

 

O prazer de ter-te assim dentro de mim

É mais que a chegada em novas terras

Bem mais que receber um abraço amigo

Após as noites de longas esperas.

 

O prazer de ter-te assim dentro de mim

É mais que o frescor da adolescência

É muito mais que o doce do teu mel 

Após gozar o amor em sua essência.

 

Por isso, eu eternizo o ato absoluto

Que une num só corpo o nosso ser

E faço a impermanência do minuto

virar eternidade até morrer.

 

 

 

 

 

 

A santa ceia

 

A mesa sempre farta

e a casa muito cheia.

O eterno ritual da santa ceia,

regado de luxúria e de prazer.

E eu, sem trono e sem coroa de rainha,

Reinando, absoluta, na cozinha.

Enquanto eles se matam de comer.

 

 

 

 

 

 

Mas qui país é esse, o meu país?

 

Mas qui país é esse, o meu país,

amada terra adonde eu nasci?

Aqui cresci, desabrochei, madureci,

e assuntei di amá um belo home.

Dei di casá, engravidei, pari.

E adesde antonce, como um bacuri,

bebi meu leite pra não passá fome!

 

Mas qui país é esse, o meu país,

adonde eu truxe ao mundo meus três filho?

Assunte, é tudo arte, tudo artista!

Dois macho criadô e tocadô,

qui canta como os anjo do Sinhô.

E uma competente palavrista,

qui lavra as letra como os inscritô.

 

Mas qui país é esse, o meu país,

qui nunca pára de arvorecê?

Adonde o vento baila vagarinho,

e uma montanha, grávida da lua,

se curva nua e deixa o sol nascê.

E um zabelê, voando bem mansinho,

faz o seu ninho dentro do meu sê.

 

Mas qui país é esse, o meu país,

di céu azul e sol vermelho em braza?

Di chão rachado e campo averdejante.

Uns tem palácio. Outros, nem tem casa!

São tantos rio correndo até o mar!

Florestas com Saci cambaleante,

desertos ressecando inté matá.

 

Mas qui país é esse, o meu país,

donde o povo já nasce na canção?

Donde se bebe pinga e sucupira,

e os forguedo atiça os coração.

Terra di moças linda e atrevida,

qui mostra os peito pra fazê a vida

com os home cortejado nos salão.

 

Mas qui país é esse, o meu país,

berço de tantas civilização?

Índio, africano e ôropeu feliz.

Macaco, bem-te-vi e vira-lata.

Preto com branca e loura com negão,

tingindo a natureza de mulata,

no mesmo pote de misturação.

 

Mas qui país é esse, o meu país,

qui diz qui faz o qui não faz, mas diz?

Qui deixa as criançada sem brinquedo

e os adolescente sem enredo.

Enquanto os mais antigo, a suspirá,

tem esperança di inda tê futuro,

e vai seguindo a vida ao Deus dará.

 

Mas qui país é esse, o meu país,

tão grande, tão garboso e tão servil?

Terra de povo bravo e inteligente,

di presidente herói e varonil.

É o paraíso adonde Adão e Eva,

nos gosto da serpente, fez a gente.

E um vingadô denominô Brasil!

 

 

 

 

 

 

Karma

 

Entre o nó na garganta e a dor no peito,

la vou eu, titubeante passageira.

Nau sem destino, pátria sem fronteira.

Inexplicavelmente, brasileira.

 

 

 

(Do livro inédito, Fado brasileiro)

 

(imagens ©jaroslav)

 

Kátia Drummond (Kátia Alves Dias Mattos Drummond). Brasileira, de Salvador-BA, radicada em Sintra, Portugal. Casada com o designer gráfico e artista plástico Cláudio Paulo. Mãe de Brisa Drummond (publicitária/escritora, na Suécia), de Sávio Drummond (biólogo, poeta, músico/baixista), e de André Bernard (violonista, arranjador, compositor e cantor). Filha de artistas, descende do poeta Antônio de Castro Alves, dos escritores Ariovaldo Matos e Almir Matos, e do filósofo marxista, Giocondo Gerbase Dias. Socióloga, formada pela Universidade Federal da Bahia–UFBA. Morou em Bruxelas, Londres e Paris, onde estudou e trabalhou. PHD em Ciências Sociais. Especialista em Sociologia Urbana. Doutora em Comunicação e Marketing. Especialista em Planejamento e Estratégia em Marketing. Foi pianista clássica, tendo passado pelo Instituto de Música da Bahia e pelo Seminário de Música da Bahia. Venceu vários festivais musicais, no Brasil e fora, com peças como: "Rancho Pra Quem Vem de Fora", "Anjo-Àtoa", "Encontro", "Paris em Mim". Em Paris, estudou e cantou na Discophage/Rue des Écoles, em parceria com Marcelo, violonista e cantor do Quinteto Violado. Tem várias obras publicadas, inclusive, técnicas, destacando-se, entre elas, Lucidez Profana (Poemas. Selo Editorial Letras da Bahia); Exército de Anjos (Poemas. Selo Editorial Letras da Bahia); Lotus Vermelho (Poemas, com apresentação do Lama Padma Samten. Alusão ao Budismo Tibetano do qual é seguidora).