©allen jones

 

 

 

 

 

 

Quase-Hais

 

 

 

 

 

Manhã

 

O menino, desabalado, trouxe o pão.

A avó prepara o café, cantarolando.

O avô escuta o trabalho do beija-flor.

 

 

 

 

 

Menina na praia

 

Ondas rebentam e o sal na pele

O céu e gaivotas e búzios aqui

A menina larga-se na areia e lê a nuvem!

 

 

 

 

 

Mulher 10. Minisshopping

 

Ela caminha, levíssima. Minissaia branca.

Verde o busto. Cabelos loiros, luz pura!

A bolsa hipotenusa-lhe o dorso suave. Tatuagem.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Mais luz no mato

 

A poesia não quer saber do dinheiro

O dinheiro dá chutes na poesia

O poema não concebe a moeda

A moeda nem repara no poema

No ParkShopping, letras são fantasmas

Livros são miasmas

Cordas cósmicas

Nadas

 

Creio haver mais luz

Na primavera no mato

Que na biblioteca do Ceub1

Vizinha incômoda da comercial avenida W32

 

Os versos ditos à meia-noite

Na Chapada3

No Éden Alto Paraíso

Retinem no DF palidamente

Como seres atormentados

À beira de leitos

No Hospital Regional da Asa Norte

O mal de Hansen assombra

 

Os versos no peito do poeta

Ora aço

Ora frágeis pétalas devassadas

Tais versos força não têm no átrio metálico

do Banco de Boston do Setor Comercial Sul

 

Investiga a Abin se a menina tatuada carrega estrofes?

Com o que assaltaria ela os homens pálidos

Que fecham negócios no Ministério dos Transportes?

 

Ah o poema a palavra o sonho a pétala a flor

Tecem apenas nos sonhos

Suas teias e mormaços sua paz!

 

 

1 Centro universitário em Brasília
2 Avenida na Asa Norte, em Brasília
3 Chapada dos Veadeiros, em Alto Paraíso/GO

 

 

 

 

 

Ela, virginal,  mulher de Vinci

 

Ela habita as serras

esconde-se na viração, no sal e na lua

Ela vem do mar

 

Canta canções

toca berimbau

 

Mas decerto nunca ouviu o sax do Grover Washington, Jr.

 

Oh! ela escreve histórias de amor e dor

Delira com ikebanas

e passeia no fim da tarde mirando as vagas

Os raios coloridos e as lágrimas na alma dela!

Os pés calcando paralelepípedos angulares.

Os solares fios dos cabelos de fogo!

 

Ela tem 22

e sonha caudalosos sonhos

de enredos estranhos:

ora é dia, ora é noite,

ora vestidos alvos,

ora a alegria do azul, do verde, do amarelo:

carnaval de um espírito bem-te-vi:

efusiva festa de belos vagalumes!:

isso tudo ela!

 

Sempre tem consigo um velho livro

capa vermelha, roto, edição 1954

traduzido por Raquel de Queiroz

onde os olhos desenham letras

e extraem, com suave afeto, 

a partir da tipografia anciana (um parto isso!),

a história do amor humilhado e ofendido

de Natasha e Ivan.

 

Lê ao pôr-do-sol

(e eu nem sei o nome dela!)

 

Ela também usa a saia mais linda do mundo,

enflorada, delicada, translúcida!

 

Ela que não perde a Ana

inebria-se, ri, cora e chora quando a lê:

“Lemos poemas para os passarinhos,

ou para as belas mulheres,

ou para o ser que amamos”

 

Tem dias que toma banho na cachoeira

tem dias que faz doce de caju

e se lambuza toda

e se mira no espelho da arte feita!

 

Quem é ela?

eu escrevo para ela

eu quero escrever um poema longo para ela;

mas, quem é ela?

qual o nome dela?

sei que tem belos olhos angélicos

virá em janeiro

ou quando a chuva despencar

quando virá?

quando?

 

Eita, que soprarei timbres doces do Grover nesse dia!

 

Dedilharei, é certo! (se a incerteza não aviltar este verso, por certo também!),

um longo poema para ela!

contudo, céus!, em verdade nem mesmo a cor dos olhos conheço!

 

(Estariam os ikebanas que elabora,

com a inspiração invulgar e a leveza fádica dos querubins,

expostos, agora, em alguma galeria

de distritos e comarcas malgovernados

de um vasto país latino-americano

carente de homens e mulheres que amem e defendam sua República

dos senadores de visão infame,

da tirania pérfida dos tribunais,

das garras inclementes da iníqua águia

e da obtusa pulha da mídia?)

 

E vai-se ela, virginal, mulher de Vinci

e quem sabe de outras e outras vilas mais belas

 

O poeta, então, em nuvioso desalento, parece render-se,

balbuciando Simone Andrade:

"Olha lá a sair

pelos poros, pêlos.

A escapar por entre os dedos

na toada dum feitiço

O corpo por todas as extremidades:

refugos.

Olha lá vagarinho

a descer o morro.

Olha lá sumindo:

cerração".)

 

 
 
 
 

O fumo malamado

 

evola tanto

o fumo

seu cheiro ébrio

entre os velhos cruzados

(rui barbosa

e oswaldo cruz

franzem sempre o cenho

e entopem

seus narizes:

o primeiro com pérolas

da antepenúltima flor do Lácio;

o outro, com toda a verve de Hipócrates

residia aqui a inflação?

fumavam, o rui e o cruz?)

que o lanço

nos livros velhos

jornais

traças

baratinhas

naftalinas

alfarrábios luminosos.

 

e certamente

os bichinhos se excitam:

pois, sim! vejo

certas pulgas de jornal

bêbadas do olor

que, louco, emana

do rolo de fumo

barreirense

só letra na “Ilustrada” de 16.11.88,

onde a pena de sousândrade mora, sóbria.

 

 

 

 

 

P-U-T-A-S

 

p-u-t-a-s

e outras milongas ditas

noite e dia

aqui

nestacademia

rota farrapo puro

 

por certos escritoresescrotoswritersescrivães

depalavrasvãsvagas

sem lume nem

voz: roucas sílabas

 

onde o afeto no lombo da tez da mágica

outrora pálida

palábora palávrora?

arvora

ares

ais!

putas?

deixem-nas em paz!

gregório: mata a miséria desses infames!

macera esses abjetos homens de versos vis!

fardões e peitos em estufas sem-fim! bah!

(antes abraçar o verso que resvala o céu claríssimo de brasília!)

 

 

 

 

 

Suave fragor

(Canção do corrupto)

 

Vintém por vintém

Vai o esquálido homem recolhendo petrechos dalma

Perdendo infâncias, furtando memórias

Amando coisas: retalhando a si

 

Escondendo anzóis e peixes que pescara

E goiabas ainda maduras

Em urnas rotas

Em sótãos soturnos

 

Sem bem nem nuvem

Vai o homem

Ansiando céus e luas

Em vilas alheias à poesia

(Em sítios estranhos à lira)

 

Vai, ancho, manco:

Tem ouro e árias especiais da Índia,

Mas o suave fragor das asas

Duma abelha egressa de girassóis

Em seu ouvido não mora

 

 

 

 

 

Hastes metálicas no corpo débil

 

A Poesia deve escancarar

A alma que viceja nas organelas citoplasmáticas da

jovem drogada da periferia de Brasília!]

 

Mostrá-la de quatro, esquartejada,

Combalida, alcoolizada, às quatro da manhã!

 

Enfraquecida, segunda-feira, na porta da padaria,

Em busca do emprego derradeiro,

Quando ouvirá impropérios sem-fim

De meninos e meninas bem-nutridos

E urdirá maléficos planos de explodir com as estruturas

Com o salário

Com a família

Com a ausência do fumo!

 

A Poesia sem Goethe

Sem Zeus

Sem lua nem sóis

A Poesia da frágil menina de 14 anos

Que nem pão nem leite nem amor dá para o filho rebentado há

pouco do ventre!]

 

A Poesia do dia, da noite, da madrugada feérica

A Poesia acesa, a Poesia no metrô, no ônibus, no bar do beco

sinistro!]

Sacolejando o coração e o ventre que parece querer parir de novo!

A Poesia do alfarrábio lido na chácara da patroa gorda,

Sábado à tarde, barulho de córregos e pássaros goianos

Ninando o aço da dor!

A Poesia: hastes metálicas no corpo débil!

 

 

 

 

 

Hálitos e miríades

 

Sabes como agradar seu bem-querer?

Meu coração se contenta, se aquece

Com muito pouco, pouco mesmo

Nesgas de teu céu em minha lua

Raspas de tuas nuvens à esmo

Fatias finas de nós, andejos

Sussuros e miríades

De hálitos após beijos

E constelações de hamadríades

Quando nos amamos, benfazejos.

 

 

 

 

 

E voa o pardal em mim

 

a poesia mora em mim

a poesia viceja brota pula

 

quando o riso irrompe

a poesia lateja em mim

 

quando o verde quando o mar azul

quando lua e sol  no fitar dos olhos

a poesia lustra a pedra em mim

amolece o granito

e voa o pardal em mim

 

 

 

 

 

Quando um pássaro brinca na grama

Todas as imponderabilidades

Incongruências

Nervuras

Todos os percalços da alma

Os desenhos opacos

Os ocres traços

Os passos tíbios

 

O débil olhar

 

Tudo tudo e tudo o mais

Vai-se embora

Quando um pássaro brinca na grama, levita, saltita,

 

E é visto.

 

Com renovado vôo, a ave ala, para retribuir a lembrança.

 

E vai-se embora.

(Furto de íris e flores de olhos sinuosos.)

 

 

 

 

 

O amor, na serra*

 

 

Era princípio de manhã. Entre lua e sol o mundo.

A maré baixa. Pássaros raros. O vento leve.

Então, suspira ela, evadindo-se de eventual inoportuno enfado: "Como ser triste com tanta explosão de luz, cor e mistério, Deus meu!?".

A noite, após o caudaloso amor feito, havia sido branda. Nem minúsculo fio da inquietação que a toma na cidade.

Sim, macia e fácil a noite. A clara luz do dia agora a banhar o corpo dele, que dorme.

Salta da cama e percorre a varanda onde crisântemos teimam em manter olhos-pétalas abertos — e as violetas despontam! Pensa lerdamente nas múltiplas visões, nos traços malriscados da madrugada epíloga, nos desenhos acima do mar e dentro dele, principalmente. Vira, da janela, estrelas e o hálito do oceano cingindo-as. Suspira, molemente, e caminha até a praia. Gostava de ficar horas sorvendo o movimento das ondas, o fluxo e o refluxo, o serpenteio delas. A areia, o mar meio verde-escuro, meio negroalvo.

 

***

 

De volta à casa. Os pássaros, mirados do alpendre, são borboletas ou flores novas na primavera. Adejam sobre os telhados úmidos do orvalho.

Ele dorme, ainda.

Ela, vivacíssima, passeia pela varanda e se lembra da infância. Na noite junina de aluá e batata assada ao pé do angico feito fogueira, ela era um relâmpago, um destempero de lenho raro em brasa, tal o contentamento, e os passos, e os saltos, e a alegria da dança.

O pensamento se perde. A manhã com brisas. Senta-se na velha cadeira; balança; os ruídos lembravam a árvore onde ela subia com o amigo de infância, quando chupavam laranjas verdes, até enfraquecer o esmalte noviço dos dentes.

Pensou, em seguida, que era tempo de ler um capítulo de "A la Recherche...". Depois viria a obsessiva vontade de sentir o poema nos olhos de alguém — estando ao fundo o mato infinito, o bosque tomado por mangueiras, onde ela e Adriana fumaram e rolaram nos seixos macios.

 

***

 

Mas um sabiá, esquivando-se de um gavião-de-penacho, a faz desviar o pensamento para um poema do namorado. E daí para o recordar os afagos e as carícias demoradas, um salto. Como tinha sido bom. Como é bom! As mãos fortes do homem que ama, a voz viril — o urro, o espasmo dela, os lamentos que varavam as lonjuras das vilas perdidas da Amazônia, acima dos rios e pântanos, acima dos trágicos odores da Zona Franca. Ele dorme. Inebria-se ela, no brando recordar: o vai-vem, o gozo prolongado, o sorriso dele.

 

***

 

Agora feita mulher, quase aos trinta, na varanda.

As palmeiras que o vento tremula. O verde delas evoca... evoca, engano vil!, não era verde a serra de penedos salientes; não, não era verde, quando esteve com o primo na perigosa estrada do aeroporto, íngreme como a avenida celestial apocalíptica. Fazia um calor insuportável. Os bancos quentes do carro, a alavanca dourada do câmbio roçando-lhe as coxas, por dentro, enquanto ele brincava com as nádegas que ela oferecia a ele e ao vento áspero que açoitava qualquer forma viva da caatinga — em silêncio, fora de si, o escarlate infinito das orelhas invadia os peitos em perigosa precipitação de delírios, para, após invejáveis acrobacias no colo virgem, possuir toda a complexa engenharia daquele corpo vigoroso que brotava nela; ela lembra, sim, ofegando ais e tremendo toda a carne, do movimento do próprio desejo, afogueado, em cada nervura dos membros, do abdômen e do sexo expectante. Calor. Arbustos secos. Chamas! Lagartos e joaninhas áridas despiam-se também, por certo, perto dali, emulados pelo frescor do pranto dela, embevecida com o enlace, na alvura dos dezoito anos. Na hora do gozo fecundo, um avião sobrevoou as pedras seculares, varou nuvens inóspitas, prenhes de águas raras, e se foi para o Rio. Ele, moço viçoso; ela até então eternidade de delírios e vastidões de regozijos na solidão das noites sob os caibros da casa velha. Por certo, vivenciaram, naquela tarde de grasnidos de corujas assustadas e algazarra de preás no coito, o momento mais lúdico de toda existência deles.

 

 

*Barreiras, Bahia, 1986. A serra, íngreme, evocava histórias da segunda guerra. O fusca amarelo, à segunda marcha, subia. No meio do caminho, eu e ela descobríamos o reino mágico dos encantos, a glória do encontro.


 

 
 

 
Lafaiete Luiz do Nascimento fez crônicas para o rádio, em Barreiras (BA), entre 15 e 16 anos. Publicou as coletâneas Barreiras: um salto poético e Nova safra, novas folhas; a novela Anantha; e, com Clerbet Luiz, seu irmão, o contundente Rodeios e interiores, com poemas e letras de música. Edita o Quase hai.