b)

 

O vestido florido da mulher sorrindo

tremula lentamente contra o vento

O mesmo vento que derruba as folhas da árvore

ou as leva para perto das palavras de quem vê

Daqui o pássaro dilata a aorta

trazendo até a derradeira artéria

a lentidão com a qual ao fundo se trombosa

o aneurisma das coisas que perturbam

o vestido florido da mulher sorrindo

 

 

Tanto que em qualquer pessoa

ser no entanto e por favor

porque enquanto for

ressoa o corpo

antídoto dor

Na areia atrás do espelho

a barba feita deixa esta ferida

 

Seis e quarenta — o café esfria

 

 

É quando os hematomas vão surgindo

primeiro na treliça do armário embutido

depois no movimento de abrir a janela

Anterior — o tamanho do sol verte

no parapeito em úlcera e carbono

a parte fisiológica do céu

Por dentro o pássaro é pouso

e palavra

 

 

Só o líquido da espera

deixa que o cérebro reparta sem promessa

a cartilagem das orelhas

A mesma de tubarões

num mar a contrapelo

onde de trás pra frente e sobre

o vôo do pássaro se ossifica

suturando a paisagem

 

Embora dentro — aguarrás e bile

 

 

 

 

(De 8 poemas)

 

 
 
 
 

Sete

 

O sal segundos antes

da chuva quando

e ainda

dependura no sobre ou senão

das coisas descalças

E de repente

o abrir da cavidade —

é na função sintática da queda

que se assalta o chão

e suas virtudes

 

 

Prostram-se os dias

e o que neles é de água

Espaço pulmonar de não poder

através e quando

o texto ósseo dos dedos

Lenta e novamente

dobra-se a voz enquanto e embora nela

algo a mais ou a menos se divida

 

O em volta e tangente

ao pé do ouvido te dizer

 

 

Lugar comum da boca

o sulco que estes dedos deixam

Dar e não receber

maiúsculo e mesmo assim

o no entanto dessa água

Promessa que prepara

na iminência de músculos

o motivo remoto do que desce

 

Teu tanto quando toca a extremidade

— areia num dos cantos do papel

 

 

A gravidade posto o peso esquerdo

das palavras

espera por dentro

da altura a areia

Semelhante desenho do oxigênio

o formato

e a direção de pausa —

prosseguir

embora em subentendida calma

verso a verso teus insetos

 

 

Juntam-se a esses insetos diversos recursos

uns mais dispersos outros não

Desatadas as coisas descalças

e o que por distensão não só retorna

como também e quase ao mesmo tempo

avança

o senão põe aqui o sal e o sim

da última mudança de andamento

 

De cima contra o círculo de giz

inversa dor do céu o chão caber

 

 

Talvez

o tempo

decantando o movimento

separe dentro com os mesmos dedos

a queda

do que ainda cai

Providência e precaução

que não livram no entanto

teu percurso

do invisível resumo desse chão

 

 

 

 

 

 

— Quem são estes? 

(trechos)

 

 

(...)

 

Os pássaros aos poucos pousam no que sobra;

o pouso repetindo-se até haver árvores.

Espécie de equilíbrio natural nos ciclos

que haja ainda e a partir de agora apenas árvores.

E por haver apenas árvores, chego ao

cuidado que se ganha em se perder tais pássaros.

Assim, em cada projeção, seu negativo;

no que algo se levanta, algo também cai.

Compensação e equivalência. Revoada.

Os pássaros e as árvores segundo os peixes

que ausentes marianne moore quis próximos ao jade.

Em outro lugar deixo um jornal sobre a mesa.

As coisas são somente por faltarem todas.

Substituição e excesso. Continua.

 

(...)

 

Ao elefante nada disso importa;

seu coração inchado ainda desce

ao vir por uma linha que vai dar

ao lado das palavras de quem chega.

E toca o chão. E quando o toca está

tocando notas menos simultâneas

que repetidas. Por exemplo, pássaros,

jornal, cachorros, telhas de amianto,

árvores, mesa, peixes e quem sabe

até todo o catálogo das naus.

Depois, me lembro, alguém se olha no espelho.

Ainda não. A paciência insiste.

Sete anos de pastor jacob servia.

Introdução. O tempo do elefante.

 

(...)

 

Da tartaruga retirar o não

que antecedia a coisa repetida.

Não para confirmá-la, já que é de

confirmação que a tartaruga inteira é feita.

Mas para contrapô-la ao elefante

e a seu ainda inchado coração.

Por isso que o que fica no lugar

do gesto é seu reverso e também extensão.

Colocar sobre a mesa tanto o pôr

como o não pôr jornal nem coisa alguma.

Anulação seguida de recuo.

Chove. As gotas contra o amianto

das telhas descobertas molhariam

por três vezes o não da tartaruga.

 

 

 

 

 

 

Rosto

(trechos)

 

(...)

 

Dor e prego ditos não para ferir

 

da mesma forma que teu ombro

cúmplice aqui de um crime prescrito

Quem sabe

o assassino

a faca em riste

e o tino com que aplica os golpes

Estrofe

 

Desconfio que aquela blusa azul

plissada em seu limite inferior

guarde secretamente dentro essa ferida

que nunca existiu

 

Enquanto isso

o carneiro é a distância entre as coisas

Equilíbrio

 

O prego preso ao corpo do texto

 

Cada detalhe da tua letra

um convite à vingança

 

(...)

 

A rigor há somente dois lugares

onde acontecimentos distintos ocorrem

A vítima e suas palavras estão no chão

se não me engano a meio metro da cama

O lençol que por razões óbvias também jaz ali

toca o pé direito e descalço dela

Três ou dois cômodos a separam de imagens

como as do carneiro ou da pia que estão na cozinha

onde há também uma mesa em cuja toalha

estão bordadas as mesmas figuras do texto

Ainda que o tempo de exposição seja parecido

em algumas delas noto maior descompressão

É o caso aqui do prego que oscila entre os cômodos

devido sobretudo ao desprendimento

com que conduz seus propósitos

O mesmo é dizer da mão sobre um dos teus ombros

e do que nela ou na leitura se coagula

— até porque se diz por esta voz

diferente daquela que falava

e ainda fala alguns versos acima —

Assim também com ombro faca estrofe

e outros tantos efeitos de superfície

Em tudo o mesmo gosto de arrependimento

 

(...)

 

O ovo espera o carneiro sem feminino ou plural

 

Espera

porque esperar é o que vem dentro dele

 

Ao mesmo tempo

o ombro assimila a mão que o toca com vagar

até ser ele não só ela mas também toda a leitura

o mesmo enxerto

 

Agora os movimentos um a um

são redistribuídos de acordo

com seus próprios mecanismos de verossimilhança

Promessa onde por contigüidade

o sangue derramasse seu crime e resignação

 

Depois o que se afasta

resvala no centro dos acontecimentos

e a duração é o tempo que a alça azul leva para cair

do teu ombro

Vôo

 

O ovo espera o carneiro ainda e no entanto

 

 

(...)

 

 

 

(De No entanto d'água)

 

 
 
 
(imagens ©misha gordin)
 
 
 
 
 
 
 

 

Leonardo Gandolfi nasceu no Rio de Janeiro, em 1981. É Professor de Literatura Portuguesa na Universidade Federal de São Paulo. Publicou No entanto d'água (7Letras, 2006), A morte de Tony Bennett (Lumme Editor, 2010) e Kansas (Megamíni, 2015).