Nos anos em que surgiu o VHS, pelo fato de dispor de um vídeo-cassete, achava-me um sujeito plenamente feliz: poder ver filmes, tantos filmes, em casa! Mas, com a invenção do DVD, agora sim é que me dou conta dos filmes todos que perdia, pois o relançamento incessante de clássicos e de "cults" obscuros e inacessíveis está me propiciando uma nova era de conhecimento e repensamento do Cinema.

 

Não paro de me deslumbrar com catálogos que mostram títulos os mais diferentes dos anos 30, 40, 50, tanta coisa que nunca pude ver nem em cinema nem em VHS, tantas possibilidades de reler as obras de Ford, Hitchcock, Wilder, Welles e os grandes diretores! E, naturalmente, de mergulhar em filmes míticos, conhecidos apenas por citações nas biografias das grandes estrelas.

 

Mas, embora faça descobertas neste último campo, como, por exemplo, a possibilidade de ir lendo mais completamente o que foi a carreira da belíssima Gene Tierney (conferir Laura, Amar foi minha ruína, O fio da navalha, A ladra, que estão por aí, nas melhores locadoras), a estrela que mais me impressiona, depois de Greta Garbo, é, decididamente, Marlene Dietrich.

 

Aconselho aos que ainda não conhecem Dietrich (e tenho a impressão de que os da nova geração sabem quem ela é, mais ou menos, só porque Madonna a imitava e citava muito canhestramente) que fiquem prevenidos: podem achar que o "kitsch" vai ao paroxismo, que ela era uma atriz ruim e até ridícula (dependendo do filme que peguem) e uma figura superestimada.

 

A tendência a achar isso é compreensível. É preciso ter paciência. É preciso munir-se de um certo humor, de um certo gosto pela desfaçatez, de um bom conhecimento da história de Hollywood, das condições em que eram realizadas aquelas produções e do "espírito da época, sem dúvida. Daí, o deleite é certo.

 

 

Camelos ao pôr-do-sol

 

Outro dia um amigo me emprestou O jardim de Allah, filme famoso de Marlene que, em DVD, pode ser encontrado até em bancas. É uma relíquia absoluta de um cinema que não existe nem poderá existir mais. A produção, de David O. Selznick, é anterior ao ...E o vento levou que ele faria em 1939 com sucesso mundial sem precedentes. E, como é das primeiras a cores, levou Oscar de fotografia. Mas, preparem-se.

 

O que Selznick entendia por filme a cores? Crepúsculos (lembram-se daqueles de ...E o vento levou?), sumarentos céus em alaranjado, em abóbora, em quase-escarlate, cinema de deslavado cartão postal, de mau-gosto muito vistoso, que, por isso, encantava platéias sempre maiores.

 

Em O jardim de Allah, dirigido por um polonês chamado Richard Bolelawski que não teve carreira das mais lembradas do cinema, tome camelos ao por do sol, languidamente curvados... O deserto, que é inverossímil, é na Califórnia  mesmo, e tudo vai ao delírio, com noites voluptuosas feito uma idealização popular da Arábia das Mil e Uma Noites, palmeiras, areais divinos, dunas de sonho e um ar tão "fake" que a gente pensa que está diante daqueles cartões de Natal em que um sujeito não resistiu e salpicou purpurina sobre fundo azul-profundo para simular estrelas.

 

E Marlene entra no filme como uma Dominique Enfindem, que acabou de perder o pai e volta a um convento, onde é espiada pelas garotas como uma estrela (que outra coisa não era), não como um personagem contrito e sofrido (ela não convence, nem tenta convencer, na pele de uma sofredora). Pede a uma madre amparo espiritual, e é aconselhada a ir para o deserto, para uma temporada de auto-conhecimento.

 

Chance para que desfile moda. Nunca uma sofredora à procura de ascese no deserto foi como Marlene. Alguém esperava que ela ficasse austera em sua elevada missão filosófica? Never. Mune-se dos mais lindos chapéus, das mais esvoaçantes echarpes, de vestidos, batas, de um aparato que a faz, a cada novo momento, mais bela e mais manequim. Nunca um grão de areia perturba aqueles cílios, aqueles olhares, e nunca o vento desfaz aquele penteado, senão para torná-lo mais glamouroso. E seu deserto consiste é numa série de oásis, onde até recepciona homens deslumbrados por ela com taças de champanhe (onde as carregava?).

 

Ah, convém dizer que é amada por um monge trapista que fugiu da ordem, um aturdido e péssimo Charles Boyer que nunca tem a mínima química com ela, que parece um garotão assustado. Jamais acreditamos que ame Marlene de fato. E ela corresponde, mas a seu modo: pondo um novo vestido ainda mais deslumbrante, quebrando a aba do chapéu, chorando — quando chora — sem um pingo de convicção. Não há filme mais delirante, mais "camp", mas é absurdamente divertido. Se você entra no espírito, é uma diversão fantástica de fato.

 

 

De Von Sternberg a Hitchcock e Welles

 

Outra jornada com Marlene me levou a Pavor nos bastidores, filme menos considerado de Alfred Hitchcock, realizado na Inglaterra em 1950.

 

Haverá diretor como o Mestre? Pegue-se uma obra desta, menos elogiada, e se terá mais talento que em muitas obras principais de outros diretores. É a história de uma moça que aspira a ser atriz (Jane Wyman) e namora um sujeito que acaba de lhe confessar que tinha um caso com uma mulher casada e que, para protegê-la (ela acabara de matá-lo), seria tomado por assassino.

 

A aparição de Marlene no filme começa não por ela, mas por um pedaço ensangüentado de um vestido. Depois, um show de desfaçatez e mentira.

 

O que é curioso é que, mencionando-se Grace Kelly, Janet Leigh e Tippi Hendren, entre outras, não se diga nunca que Marlene foi uma perfeita "loira gelada" para Hitchcock também. Ela é essa Charlotte Inwood que manipula homens com uma fria insolência (a maior especialidade da estrela, que sempre era melhor como mulher má) e acha que o assassino, um Jonathan estupefato vivido por Richard Todd (que, pelos olhares e faniquitos, já prenuncia o Norman Bates de Psicose), é um cãozinho, não mais. Está maravilhosa vestindo-se de viúva e exigindo que, naquele preto todo, entre um decote, pelo amor de Deus, ninguém é de ferro... E ainda depois, cantando com o maior cinismo "The laziest gal in town", de Cole Porter, número musical completo, o que era raro em filmes de Hitchcock. Melhor ainda é quando, numa feira teatral inglesa, sob a chuva (para variar), ao cantar "La vie en rose" (as ironias de Hitchcock eram de entortar), recebe das mãos de um garoto uma boneca com um vestido ensangüentado (la vie en rouge, é o que diz Hitchcock) e tem um colapso. Colapso de Marlene Dietrich, bem entendido: a pose nunca desmorona por completo.

 

Marlene é adorada até hoje porque representa a coisa menos natural do mundo: uma estrela de verdade. Produto acabado e levado à transcendência do "Star System" da Hollywood dos anos 30, teve uma carreira muito mais acidentada e confusa que a de Greta Garbo, já que não abandonou o cinema tão cedo. Era também muito mais caricata e gozadora (nos extras de Pavor nos bastidores, os depoimentos de Jane Wyman e Patricia Hitchcock são as provas de que era uma mulher muito engraçada, que divertia a todos). Tinha menos talento dramático que Garbo, esta é a verdade, e talvez se levasse menos a sério.

 

É impossível que não estivesse morrendo de rir ao interpretar aquela Dominique de O jardim de Allah. Era uma alemã inteligente, que saiu de uma Berlim muito libertina para uma Holywood caretíssima, ao consagrar-se internacionalmente com O anjo azul em 1929. E os filmes que fez com Josef von Sternberg (seis ao todo) são considerados monumentos, mas de quê? De uma arte que, pelo público, era visto como entretenimento e diversão, não mais. A falecida crítica Pauline Kael, aliás, lamentava que a crítica dos anos 60 e 70, especialmente a francesa, dedicasse tantos ensaios sérios a um cinema que, na sua origem, foi compreendido como entretenimento, escapismo de qualidade ou pouco mais que isso.

 

O certo é que Marlene nem esteve preocupada, ao que parece, em ser atriz, e isso por muito tempo. Contracenou com todo mundo, de Gary Cooper a John Wayne, passou por Fritz Lang (de quem não gostava), por Hitchcock, mas, se tinha um diretor que admirasse, era Billy Wilder, que considerava o homem mais inteligente de Hollywood e com quem filmou A mundana e Testemunha de acusação.

 

Estava praticamente no fim, era já maior que si mesma, valendo como referência máxima, quando fez A marca da maldade com Orson Welles, em 1958. Aparece como aquela cigana de peruca preta e, com um charuto e um daqueles olhares que só ela sabia dar, diz ao xerife vivido por Welles: "Você está um lixo. Anda comendo muito doce...". E a gente já ali pressente que o personagem está destinado a um terrível fim. Se Marlene emitisse uma sentença lúcida, pobre do homem a quem ela era dirigida!

 

Grande mulher, muito mais estrela que atriz, realmente. Mas, com uma classe que nenhuma Madonna dos últimos tempos, por mais que se esforce, jamais alcançará. É só sair à procura dos DVDs desses antigos filmes imperecíveis e conferir.

 

 

 

junho, 2007