©cau gomes
 
 
 
 
 
                 

       

Frequentemente, converso com paulistanos que, ao saberem que moro no interior, parecem suspirar de inveja por toda a tranqüilidade que o interior pode ter e à qual é praticamente impossível aspirar na metrópole. Mas insistindo na frase proustiana — "Os verdadeiros Paraísos são aqueles que perdemos" -, posso garantir que os que dizem isso estão é suspirando por alguma idealização que está fadada a ser confirmada só em parte na realidade.

 

Quase sempre o que esse desejo faz é revelar uma aspiração de classe média metropolitana: ah, comprar uma chácara, viver para a terra, o verde, o ar puro, as vaquinhas! — é um refrão inevitável — ou trair alguma lembrança bucólica: passou-se uma temporada no interior, na fazenda de um amigo, e algumas imagens ficaram, com a distância, adoráveis. Era uma visão protegida; quem deseja ver só o verde e o pitoresco, acabará vendo só eles, claro, e deixando a verdade na sombra.

 

Os que se portam assim têm, em geral, um sonho de fazer turismo inconseqüente que mascaram como uma filosofia de pureza ao lado das "coisas naturais". Comprem a tal chácara e a criem as tais vaquinhas, que o Paraíso se dissolverá facilmente. O mais irônico é que se depara, por vezes, com paulistanos que vêm morar no interior, e, daí a algum tempo, começam a achar tudo incrivelmente monótono e — um deles, pelo menos, que conheci — a incomodar-se até com árvores das calçadas, que cortam: as raízes racham o calçamento e há folhas demais para varrer!

 

Alguns são bem assim — vão para o Paraíso, mas carregam hábitos do Inferno consigo e não querem se livrar destes de jeito nenhum. O Paraíso começa, portanto, a lhes parecer hostil e é preciso conformá-lo a um certo ideal anti-natural que é neles muito maior do que supõe. É o começo da modificação que dará em destruição.

 

Em algum ponto dos anos 70, me correspondi com um paulistano que, típico daqueles anos, era "contestador do Sistema", e tinha deixado uma agência publicitária, "cansado da falsidade e da guerra de egos", pretendendo talvez viver no interior. Me lembro dele chegando à rodoviária de minha cidade, Novo Horizonte, com um disco de Janis Joplin, duplo e ao vivo, para me presentear. E me lembro que, mostrando-lhe a cidade, onde talvez quisesse viver, passando por uma avenida marginal ainda de terra batida, à beira de um córrego sem maiores atrativos, ele ia meio trêmulo, assustado com o mato. A uma certa altura, me confessou que tinha um medo danado de aranhas. E mais: que o silêncio da cidade o enervava demais, e que as pessoas lhe pareciam limitadas e, por vezes, sórdidas. Não conseguiu prosseguir a amizade comigo e foi sincero: "Prefiro ficar só nas cartas". Essa sinceridade, essa escolha convicta da fantasia, no entanto, convenhamos, não é muito comum.

 

Nunca saí do interior, a não ser para viagens curtas a algumas capitais (São Paulo e Curitiba), em decorrência do meu trabalho — no início, de desenhista e pintor, e, depois de jornalista e escritor. Aos 39 anos, em 1992, mudei-me de Novo Horizonte, SP, para Poços de Caldas, MG, com minha mulher, que é mineira, e uma filha, então com um ano. Mas isso jamais fez de mim um interiorano crente em uma tranqüilidade sublime e superior nas coisas interioranas. Pelo contrário: vivendo nela, olhando as coisas por dentro, conhecendo as almas bem de perto, ouvindo infindáveis confidências, o que percebi sempre foi solidão, aridez, paixões reprimidas, vendavais interiores sufocados pela limitação, pela dependência, pelo medo da opinião pública, e gente tão atrasada, xenofóbica e mesquinha que não permite ilusões maiores.

 

Eu, se não fosse os livros, teria simplesmente sido devorado pelo Inferno da pasmaceira. Esses lugares podem ser o fim de tudo para gente que tem aspirações culturais mais amplas. Defendi-me com livros, livros e mais livros e com o fato de ser uma criatura de imaginação e viver para o correio, trocando cartas com gente de fora e além. Entre os amigos que cultivei, optava por aqueles que a cidade tinha como meio marginalizados, mal vistos, os excêntricos, os malditos, os que ofereciam alimento para a minha imaginação e minha rebeldia.

 

Venera-se demais a tranqüilidade desses lugares, e, sem dúvida, podem ser ótimos, mas para quem já não tem mais sonhos. Nos círculos de Dante, bem que se poderia incluir, sutilmente, uma cidadezinha pacata.

 

 

Fuga e encontro nos livros

 

Encontrei uma visão mais clara do que cidades do interior eram, para almas singulares, nas aldeias de Madame Bovary, de Flaubert, onde Ema vê seus sonhos românticos irem para o ralo, naquela província odienta de Eugênia Grandet, de Balzac, na triste realidade daquela família burguesa de Adrienne Mesurat, de Julien Green, na melancolia infinita de O coração é um caçador solitário, de Carson McCullers.

 

Na verdade, a literatura, universalizante como é, me salvava. Eu percebia as confluências do meu mundo limitado com um mundo muitíssimo mais vasto — as "charnecas" de O morro dos ventos uivantes se misturavam às minhas jabuticabeiras e mangueiras. E eu ficava certo de que a realidade estava mais para aquela Barbacena, que Machado de Assis retrata em Quincas Borba, na qual Rubião vai acabar louco e zombado por moleques, do que para aquelas pitorescas, divertidas e feéricas telenovelas da Globo, de Jorge Amado ou Dias Gomes,  de onde se tirava toda a peçonha real daquelas vidas — solteironas, coronéis, prostitutas são, acreditem, criaturas bem mais multidimensionais, inquietantes e problemáticas que aquelas coisas complacentes e folclóricas, engraçadinhas, em que a televisão se especializou.

 

Desde que comecei a escrever ficção mais seriamente — e isso faz já muito tempo — meu projeto foi bem o de desmitificar as cidades do interior. Há sim os "montes, e a paz que há neles, pois são longe...", mas é bom lembrar da lucidez de Fernando Pessoa nesse poema, "paisagens, isto é: ninguém".

 

É verdade: Pessoa sabia bem que o que se quer é uma Natureza depurada da presença humana, de todos os problemas que temos conosco e nossos semelhantes e carregamos para toda parte. Isso não existe, e turismo algum, a qualquer parte do mundo, dará essa quimera ao seduzido pela propaganda, e nem para o ecologista obstinado há lá muita saída — porque as pessoas facilmente se esquecem, olhando, deslumbradas, para as florestas, que pode haver cobras corais bem ali, a seus pés. Convém, aliás, nunca olhar só para o alto.

 

O que de fato as cidades do interior propiciam — e falo só pela minha experiência — é muito tempo para leituras, e um tempo ainda melhor e mais folgado para escrever. E eu aproveitei o meu, por vezes largo e ocioso demais, com livros, que as poucas pessoas que tinham bibliotecas particulares, generosas, me cediam, ou que encontrava em bibliotecas públicas mal cuidadas, onde apareciam umas poucas almas excêntricas. Numa delas, descobri o livro que me fez pensar em primeiro ser poeta — Terceira Feira, de João Cabral do Melo Neto. E em outras fui descobrindo muitos, muitos tesouros. Li todo o Proust em décadas, começando por A prisioneira, em velha edição da Globo de Porto Alegre, porque um amigo, todo de esquerda, vanguardista e o mais, me atirou o livro, com desprezo, dizendo: "Você lê de tudo... Leia essa coisa enfadonha aí, dessa bicha burguesa fútil, porque eu não consegui...". Ecoava a opinião equivocada de muita gente sobre Proust e mal sabia que me dava um enorme de um presente, decisivo em minha formação de escritor.

 

 

Estereótipos que vencem

 

O interior, visto com complacência para resultados obviamente comerciais, estereotipados, com clichês que deixam satisfeitas as pessoas com pouca imaginação e  sem maior vontade de saber da realidade original, continua vivo, para meu desgosto. Volta e meia me surpreendo com livros em que, a despeito do esforço do autor em ser realista, parece estar falando do passado, com aquele saudosismo complacente que pode afundar o realismo em geléia sentimental e com escorregões no mero desejo, na idealização. Uns poucos livros, que me lembre, deram conta da realidade interiorana mais contemporânea — creio que dois de Loyola Brandão, O anjo do adeus e Dentes ao sol, principalmente.

 

Brigo com a pátina de "idílico", totalmente anacrônica. Mas brigo também com gente mais refinada que, sabendo que não é assim — ou não é mais — insiste em sua idealização peculiar do interior, por vezes repleta de um desprezo esnobe (simplesmente morar em capitais tornará alguém necessariamente mais requintado na escrita literária?), privando o leitor de verdades mais fortes, que, bem, talvez essa mesma gente não queira encarar.

 

Porque o fato é que o interior não é nada senão o mundo metropolitano em pequena escala, e, naturalmente, sua cafonice fica mais evidente por isso. Enquanto os paulistanos "descolados" sonham com o matinho verde e as chácaras, o interiorano se obstina em admirar arranha-céus e cultuar prédios de apartamentos, orgulhando-se deles, de semáforos, pequenos ou médios shoppings, de tudo que torna suas cidades aparentemente "metropolitanas".

 

As pessoas detestam terra batida e ladrilham seus quintais. São cada vez mais frívolas, ligadas às últimas modas de revistas metropolitanas e ditaduras da tevê, e é mais fácil considerar as cidades onde moram com mais tendência a serem subúrbios feios, utilitários e melancólicos de São Paulo do que lugares com vida própria e interiorana. Tudo que é local e característico é desprezado, aliás, porque parece pouco progressista. A idéia que o interiorano tem de progresso é uma que o metropolitano mais sofisticado já pôs de lado há muito tempo. Isso é um terreno minado por ironias.

 

Vive-se hoje em dia num interior com cara de "globalização", para ser sucinto. A televisão está em todas as casas e as paisagens bucólicas vão pouco a pouco deixando de sê-lo, ao menos nas zonas mais populosas do Sudeste, porque atravessadas por avenidas, próximas a bairros periféricos onde a violência é a mesma das grandes cidades, só que proporcionalmente, no sentido numérico, claro, menor.

 

Mas, estupros, drogas, assassinatos, seqüestros, toda a realidade miserável, odienta e intratável com que estamos obrigados a conviver (incluindo os políticos e evangélicos que mentem por interesse pessoal falando em combatê-la), está lá. O comportamento é massificado, como em toda parte, e vai se ouvir as eternas conversas de "ou Parmeira ou Curíntia", Ratinho, políticos sacanas, louras gostosas, cervejas, Big Brother, em todos os ônibus circulares (vivo fazendo uso deles, e dentro deles colho muita conversinha reveladora que acaba entrando, transfigurada que seja, em meus contos).

 

E isso é mal compreendido, mesmo em meios paulistanos mais refinados. Fala-se de escritores do interior, e, pronto, já se pensa em escritores "típicos", "contadores de causos", em regionalistas, em sujeitos limitados que podem ter lá seu encanto, mas não são assim tão respeitáveis, intelectualmente. O preconceito se traduz em narizes empinados de gente que nunca viveu no interior e assume outra atitude extremista: a de desprezar tudo que não pertença à esfera da vida cultural metropolitana. É uma situação paradoxal, porque só se vê o interior como atrasado e "puro", cultuado com nostalgia falsificadora e desprezado como uma mancha de inferioridade sócio-cultural de que alguns querem se livrar. E aí, ao confessar-se interiorano, o escritor sente-se mal, como se precisasse uma justificativa, um álibi, um enorme talento, para ser aceito por gente que, por vezes, ou quase sempre, pode ter lido bem menos que ele, mas que se julga melhor por viver nas capitais.

 

Na cidade onde vive, o escritor local é mal compreendido, porque se recusa a ser estupidamente bairrista — nas maiores, é estigmatizado, porque acham que pertence a um mundo restrito e, se não se comporta conforme certos estereótipos, é rejeitado ou olhado como um caso de difícil classificação. A verdade é que as mesmas limitações intelectuais e os mesmos seculares preconceitos de classe social, geografia e instrução, de que as confrarias literárias de modo algum estão isentas, seguem existindo com vigor mesmo em tipos que gostam de se considerar livres e originais.

 

Em todo caso, é das esquinas, dos becos, das pensões, das ruas escuras, dos tipos proscritos, de olhares hostis ou cabisbaixos, de Novo Horizonte, de Poços de Caldas, de tudo que vivi e de outro tanto que me permito imaginar, que tiro minhas histórias. E acredito que estou falando não apenas de certas cidades pequenas, mas do mundo todo. Claro que minhas pretensões podem ser descabidas e me trair, mas, é de um novo interior que estou tratando — novo ao menos dentro do mundo literário, que demora demais a despertar de seus ranços sacrossantos, com os quais um monte de gente compactua.

 

 

 

 

setembro, 2007