Na segunda metade do século XIX, em que os poetas românticos morriam cedo, o baiano Antônio Frederico de Castro Alves (1847-1871) foi um dos que mais prematuramente desapareceram e, com certeza, o que mais fama acumulou e mais influenciou os seus contemporâneos. Seus livros tiveram tiragens reduzidas e foram mal distribuídos numa época em que a população brasileira era majoritariamente analfabeta, mas nada disso impediu que o seu nome abrisse espaço nos jornais e seus versos — na maioria, escritos para serem lidos em voz alta — fossem recitados em saraus, academias e escolas de crianças e jovens.

 

O que foram esses 24 anos bem vividos de Castro Alves o leitor pode agora saber em detalhes na biografia que o embaixador e poeta Alberto da Costa e Silva, ex-presidente da Academia Brasileira de Letras, escreveu para a coleção Perfis Brasileiros da Companhia das Letras. No livro, o biógrafo mostra, principalmente, como um jovem bem nascido e perfeitamente integrado numa sociedade escravocrata tornou-se não só o maior poeta brasileiro de seu tempo como a principal voz que se levantou contra a ignomínia que era a escravidão dos negros.

 

Como conta Costa e Silva, a causa abolicionista começou a ganhar adeptos depois de 1870, em boa parte a partir dos versos de Castro Alves, até se tornar, uma década mais tarde, um movimento de grandes proporções que colocou contra a parede o regime monárquico, pressionando-o a livrar o Brasil da nódoa que o envergonhava diante das nações civilizadas. De fato, para a propagação da idéia abolicionista, já sem a presença do poetar, muito contribuíram os versos de "O navio negreiro" e "Vozes d'África", poemas que se tornaram de recitação obrigatória em reuniões e comícios convocados por aqueles que defendiam a libertação dos escravos.

 

Africanista que escreveu livros, desde já, candidatos a clássicos na historiografia brasileira como A enxada e a lança: a África antes dos portugueses (1992), A manilha e o libambo: a África e a escravidão, de 1500 a 1700 (2002), Um rio chamado Atlântico: a África no Brasil e o Brasil na África (2003), Francisco Félix de Souza, mercador de escravos (2004) e Das mãos do oleiro:aproximações (2005), todos publicados pela Nova Fronteira, do Rio de Janeiro, Costa e Silva, ex-embaixador do Brasil em Lisboa, Bogotá e Assunção, aproveitou sua experiência de diplomata de carreira que serviu durante largos anos na África para contar uma história que é um sinal da devoção que ex-escravos dedicaram ao poeta Castro Alves.

 

Em Lagos, na casa de uma agudá, ou "brasileira", descendente de libertos que retornaram no fim do século XIX à Nigéria, Costa e Silva conta que, em 1980, viu guardado com muito carinho, "quase como um livro santo", um exemplar da primeira edição de Espumas flutuantes, "que seu antepassado trouxera do Brasil com o que tinha mais junto de seu coração".

 

Poeta de igual brilho e incontáveis méritos, como sabe quem leu seus Poemas Reunidos (Rio de Janeiro, Nova Fronteira/Biblioteca Nacional, 2000), recolha de trabalhos de oito livros anteriores, Costa e Silva não se limitou a traçar o breve itinerário de vida de Castro Alves ou ainda o seu curto trajeto poético que, a rigor, vai de 25 de janeiro de 1862, quando deixa a Bahia a bordo de um navio para estudar no Recife, a 6 de junho de 1871, dia de sua morte.

 

No Recife, Castro Alves começa a estudar Direito, torna-se amigo do poeta Fagundes Varela e de Rui Barbosa, com quem fundaria uma sociedade abolicionista, e escreve e leva à cena a peça Gonzaga ou a revolução de Minas, além de conhecer a atriz Eugênia Câmara, com quem, em 1866, embarca para o Rio de Janeiro. Recebido na Corte por dois nomes consagrados das letras nacionais, José de Alencar e Machado de Assis, já como poeta de muito talento, viaja, em seguida, para São Paulo, onde se matricula no terceiro ano do curso jurídico.

 

Em 1868, fere-se no pé durante uma caçada e, a partir daí, vê o seu estado de saúde piorar, principalmente por causa de uma tuberculose que se havia manifestado quando ele tinha 16 anos. Em junho de 1869, no Rio de Janeiro, tem o pé amputado e, depois de romper com a atriz Eugênia Câmara, decide retornar a Salvador, onde lança em 1870 Espumas flutuantes e morre a 10 de fevereiro de 1871.

 

Nesse breve espaço de tempo de pouco mais de nove anos, Castro Alves produziu intensamente. Muitos de seus versos, hoje, talvez já não atraiam tanto porque, excessivamente românticos, eram dirigidos a um tipo de público que não existe mais. Mas, como observa Costa e Silva, não há dúvida de que são da lavra de quem tinha muita coragem para dizer a uma sociedade que tinha por base a exploração do escravo que, um dia, o negro iria à desforra. Com isso, subvertia valores, desafiava contemporâneos e contrariava interesses solidamente estabelecidos, como se vê nestes versos:

 

(...) Somos nós, meu senhor, mas não tremas,

Nós quebramos as nossas algemas

P'ra pedir-te as esposas ou mães.

Este é o filho do ancião que mataste.

Este — irmão da mulher que manchaste..

Oh! Não tremas, senhor, são teus cães (...).

 

Empenhado também em fazer crítica literária, Costa e Silva mostra ainda um poeta que, embora aflito com a situação deprimente dos escravos, não se preocupava em conhecer e entender o que os africanos haviam deixado para trás. Muitos de seus versos, como observa o meticuloso africanista, refletem uma outra África, bem diferente daquela da qual eram procedentes aqueles negros que enchiam as ruas das cidades brasileiras da segunda metade do século XIX.

 

A África, de que Castro Alves fala em seus versos, diz Costa e Silva, "é uma África dramática, desolada, desesperada, mas que pouco tem a ver com as terras de onde foram arrancados os escravos que penavam no Brasil". A África de Castro Alves era a África do Norte, do Egito, da Líbia, da Argélia, a África assolada pelo imperialismo francês, a África do Saara, que passa longe da África das regiões costeiras das Guinés, da Serra Leoa, da Nigéria, da Costa do Marfim, da Costa do Ouro, de Angola e de Moçambique.

 

Isso, de certo modo, indica que o poeta talvez nunca tenha conversado a fundo com aqueles africanos e seus descendentes que tanto defendia. E que seu conhecimento da questão foi mais contemplativo do que participativo, de quem olhava do alto da casa-grande para a senzala, embora suas feições nos retratos que ficaram denunciem parcela de sangue africano a lhe correr nas veias, o que é ainda mais acentuado no retrato de sua irmã Adelaide de Castro Alves Guimarães.

 

Nada disso, é certo, surpreende num Brasil em que o sangue africano já penetrara nos salões e quartos das mansões senhoriais rurais e  urbanas. Quem duvidar de que a elite brasileira ao final do século XIX já pouco tinha de branca que vá ao Museu da República do Rio de Janeiro e contemple os quadros que exibem os ministros de Deodoro e Floriano. Fatalmente, constatará que nas veias de muitos daqueles pró-homens já corria sangue africano.

 

Seja como for, a verdade é que Castro Alves ficou para a História brasileira com o "poeta dos escravos". Como diz o seu biógrafo, foi um dos primeiros a se engajar na luta abolicionista e, mesmo depois de sua morte, continuou ligado à causa. Talvez por isso mesmo tenha se tornado um dos poetas mais populares do Brasil. Que tinha sido biografado, desta vez, por outro grande poeta é uma feliz coincidência.

 

 

 

 

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Alberto da Costa e Silva. Castro Alves: Um Poeta Sempre Jovem. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

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junho, 2006

 

 

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