Simbiose       

 

I

 

E era dia, e era noite

e o poeta começava

como devia:

trazia à luz uma gema

e a deixava inerte,

molde natural,

fluxo tranquilo sem métrica,

deixava-a vir enfim como viria

assim tão mais que viva,

musa de si

dona de si;

 

por que dizer então da rima que inexiste

em certas horas

ser precisa ao tombo que deflora

em velhas, novas chagas

tudo quanto ainda se desenha?

 

Há um aperto eterno no coração do poeta.

 

Dos homens.

 

E a busca, o sonho

(não aquele sonho mal talhado,

postado em solene sorrisos),

tudo é aberto e sem mácula, regado ao presente.

 

— Façamos então novas odes:

 

a curiosidade pelo novo,

um desejo surdo e persistente

a cada toque,

como se as imagens filtradas

evocassem o vermelho de seda das tardes

no puro sono dos sentidos,

o mar traindo enfim o silêncio

da razão:

 

de novo impor-se em sonhos

a quem quer que nos resista

 

(deles os tons mais reticentes

desdenham ofertar ao tolo

o engenho mudo dos matizes).

 

 

II

 

Fica a corda ao chão.

 

A vida se eleva, e fica.

 

Houve sim a graça,

Um ensaio de paz

(ouve: contaram-me em sonetos

nossa paz de porcelana),

 

e um amor profundo e vago

que se faz e se explica e se gera e cresce

 

no mesmo instante em que morre.

 

Mas morre?

Desnecessário usar de vinho e luz

na inspeção regrada e exausta (um rascunho)

do que ora foge dar-se à vista humana:

 

A despeito de tua tez, não é preciso o toque.

 

Não é preciso o beijo.

 

Não é preciso o que não é preciso

quando as almas se enlaçam

e se fundem

e a dança se dá por si.

 

A despeito de teus olhos

 

a despeito de teu corpo

 

a despeito de teu rosto e tua pele,

perto se dá que não estamos prontos,

ainda:

 

na distância, que não é de mapa, o medo dorme.

 

 

III

 

Quase final. Eu tranqüilo já descubro

um vento e uma praia,

e nossa amizade se oferta

lavrada a ferro e fogo.

 

O vento na praia acorda um canto

(não mais aquele, em tons frios

de aquarela-aquém-da-cor),

e o meu mormaço volta inteiro

quando o tomo e ainda aceito,

deslocado, sincero, sem mágoa;

...

deixamos passar a tarde, e parece-me agora

que a infinitude espessa, liberta e condescendente

dos grãos me rejeita, balé confuso

em trajes estéreis, passa e cobre

e se agarra ao sangue:

 

a dor que nos redime,

a paz pequenina e singela,

a vida que se ensaia afasta enfim

os entraves do remorso,

e tentamos resgatar o sentimento

 

nosso primeiro beijo

 

um frasco de perfume barato

derramado no peito,

 

sorver o canto no pranto da lei que nos condena

a uma morte estranha,

 

à cisma impune

 

do nada.

 

 

 

 

 

 

 

Estéril

 

Falar de amor.

Nunca houve, até o momento

(sempre até o momento)

algo mais estéril,

sem fins diretos ou maquiados,

nunca existiu mesmo o acidente

que à tortura trouxesse o tom

que deste ensaio profano

de ferros e pranto e o que mais

na menor paz se rabiscasse:

balbucio, gemido, um alívio menor.

 

— "Qual nada", ririam-me,

cáries à mostra manchadas

do mesmo sangue que lhes cuspo,

heranças secas sob o pulsante.

 

E nada do que se pensou, ou falou

nada mesmo do que se supôs sentido

na verdade vale a pena,

antes (quando puro)

a outros mundos pertence,

e ficam as nossas pérolas pelo chão.

 

 

 

 

 

 

 

Vagueia

 

Tiro o fim de uma noite

— desnecessário dizer —

igual às outras, após

um tempo pequeno demais para "Monsieur Verdoux",

e saio, às vistas de ruínas desnudas

em seu ostensivo e único propósito

de me fazer perder o sono,

o sonho, qualquer sentido de verso

que mesmo ouse aspirar

a emanar vida,

e outras almas se lançam

— sem bengalas —

à cata do diverso

que em meu curso apenas passa;

 

ritmo que se ensaia em sacos

e barris,

restos da conversa inócua e cíclica

postos à esquina de um restaurante fechado

na marcha das vassouras sobre o chão de água suja.

 

...será o que resta?

 

Por que medir o teor de meu tormento

se à minha esquerda, ou direita

dormem no chão os deserdados de lembrança e riso,

alheios à própria urina que escorre?

 

Vejo postes, e moradas

tão grandes que uma vida só não bastaria

se eu mesmo as quisesse erguer;

o ritmo parece sofrer um desarranjo, um engasgo,

e o compasso incerto de si entreolha agora a madrugada,

com vergonha do vazio;

 

as janelas, algumas pintadas de luz,

todas despejam rios de valises negras

(roxas, marrons, cor de quem vê)

sempre cheias de um dinheiro que parece não ter fim

pra concessão barata e gentil de quem o ama.

 

E é isso: nosso crédito é agora

uma fóssil gravura excretora de indigentes,

madre do vácuo nas caixas de correio

 

dos poetas

 

dos artistas

 

dos que sabem e se contentam com a velhice,

 

dos que sabem e não fazem,

vinhos amargos...

 

Café saudável


Quinze para as seis.
O primeiro cigarro.
Abençoada hora, ao menos no domingo,
em que a turba dorme
e há somente o horrendo bater
do meu próprio coração, só pra citar
Poe, meu caro Edgar.

Entre guerra e fastio, é minha hora:
sem demora, mato-me devagar,
esvaio em linhas tortas,
sem as pensar em absoluto. O que me veio agora
foi parar de rimar, mas que seja a rima,
SE cuspida, enquanto durar.

Vou pegar mais café, pois que cabe
outro cigarro, quem sabe assim me liberte
algo mais célere.
Espera que vou voltar.
(...)

Voltei. Mas há sempre a escolha
de parar de ler: a piada divina
(diria antes soltura)
do livre-arbítrio.

Ah, desfruta un buén café, Sr. Todo Poderoso,
se é que é assim que se fala em espanhol.
Se quisesse, poderia ler coluna de jornal,
sem poesia,
inteligentemente trivial:

Seriam só dois bromazepans de seis,
e eis-me de volta à Matrix:
onde sou sorrisos,
espirituoso,
e as mulheres da pílula azul me adoram.

Mas que é agora, virei moderno?
Contemporâneo?
Outro trago, que eu estrago isso logo.


Talvez pegue meu carro, e vá encher o saco
de algum coitado no posto,
mas meu suicídio tosco
não é injusto ainda, talvez.

Quem dera parar, não agora,
uma outra hora,

com o que ora me atiça a verter o tédio,
sem sentido.

Quisera outro café, mas há gente dormindo
que ao sair do coma há de também querer
um pouco da droga e,
por mais que lute,
não me consigo — ainda — egoísta.

Quem sabe só um pouco, desta vez
sem copo cheio?
Meio cheio, pro meu todo vazio:
e minha doce, doce fumaça.

Impregnou o quarto, minha jaqueta e minha alma.

 

 

 

 

 

 

Espólios

 

Mal desponta a aurora,
e cá venho, como outrora,
brigar a luta vã
com a letra que escorrega:

e nem pensei em nada...
o que dizer, trazer
de planos tais, se nem os sei,
se não há forma

ou objeto, mesmo lume
que me aponte, nesta gruta
qual das formas me escuta
ou se vela, qual vestal:

Desta feita, estreita fica,
desdita, fugidia:
eu pensava que luzia
e era a queda, vertical.

 

 

 

 

 

 

Pardos


A taça vertente
espalha-se, e haja carpete
faminto.
Estas tantas sombras na parede
não conhecem a chama,
bruxuleante,
que as molda e distorce,
e a lareira impassível
é dura, nada sente.

 

 

 

 

 

 

Pretérito menos-que-perfeito


Ah, vem o álcool agora,
vem em gotas,
mais um trago
— e um cigarro,
— e de herança notas rotas
e essa angústia,
que me detêm sem compaixão:
vou sair,
tenho que sair:
fingir que o prado lá fora,
por mais vago,
é diverso da prisão

 

 

 

 

 

 

Às vezes já nem bate o coração


Já não vivo. Passo.
E assim, de passagem,
só existo.
O ser, cansado, fecha os olhos,
Extingue a chama.
Já não sofre. Não sente nada.


Nada a fazer: é nada.
Nenhuma culpa ou embriaguez,
nenhuma consideração.


Do ventilador, o inútil sopra,

Quente nem frio: passa.
Perpassa.
Nada a dizer, posto que
Nada lembra.
(Uma aspirina: pronto.)

Nem teia,
Nem verbo.
Bisturi? — Abstém-te.
Existe, sim, o nada.

E mais nada.

 

 

 

(imagem ©thoseguys)

 

 

 

Lício Fábio de Freitas Leal. Nascido em Santos em 1971, vive no Rio de Janeiro. Teve a curiosidade literária insistentemente atiçada pelo pai, mas não acredita em vocação hereditária. Houve uma fase, desde a infância até o início dos vinte anos, em que sua curiosidade se espraiava, e lia e escrevia, e era tudo o que lhe dava prazer. Houve também um hiato, a seu ver longo demais, de oito(!) anos de anestesia, onde duvidou mesmo de que um dia pudesse voltar.  Mas o fado se impõe. E o verbo não morre, adormece. Volta agora à carga, grato, e, espera largo, ainda que sem beira. Publicado, apenas um conto, aos treze anos de idade, numa dessas revistas alternativas, que abarrotavam as bancas de jornal, no início da década de 80. Perderam-se o exemplar, e a memória é vaga, imprecisa. Inédito em livro, promete, em breve lançar seu site, já em construção.