...........................................................Para
Ahmed
......Acordou
de madrugada, não espantada, mas esquiva. Algo a
acordara, algo a tocara na escuridão e ela temeu.
Ao seu lado, o marido continuava a dormir um sono tranqüilo,
o rosto afogado no travesseiro, muito distante dela. Pôde
confirmar
isso quando teve que estender quase por completo o braço
para tocá-lo, levemente. Ele não se mexeu,
seu sono era profundo, contrário ao dela. Aprumou-se,
lamentando ter dormido com os dois olhos fechados, periclitante,
à mercê daquilo que a tocara. Em vão
procurou reconciliar-se com o descanso, ela não descansava,
ela tinha de ser infalível. Mas dessa vez falhara,
um instante de descuido apenas e o irremediável acontece.
Os olhos abertos no escuro, tão treinados que enxergavam
nas trevas, quase como os de um cego, que enxergam tudo
sem ver (os cegos estavam a salvo). Então se levantou
— nem precisava calcular a dimensão do espaço
por onde se movimentaria, tão certo era o conhecimento
do lugar que a cercava — e pôs-se a adejar pela casa,
silenciosa, a procurar os vestígios de sua inquietude.
Foi até a porta da sala, a única porta da
casa que dava para o mundo, e certificou-se, roçando
a maçaneta, de que estava bem fechada. Entrou nos
demais cômodos para verificar as janelas. Fechadas.
Vacilante, a um passo do desequilíbrio, percebeu
que, nessa noite, seus dentes, que rangiam e se cerravam,
e que fechavam costumeiramente as portas de seu corpo, traíram-na.
Não podia sequer confiar mais na própria guarda,
nas paredes, nas portas e janelas, na boca que se entreabria,
nem nos olhos que se fechavam por completo, à sua
revelia. Resignada, voltou para o seu quarto pelo caminho
tornado negro pela noite. Quando entrou no lugar de onde
tinha saído, notou que dele brotava um bafo quente,
vivo. Deitou-se na cama, tentando dormir, de olhos fixos
no escuro cálido.
......Subi
tudo aquilo como um peregrino a pagar uma promessa: era
uma vergonha que em todas as visitas à cidade eu
nunca tivesse ido até ali, para ver sua paisagem
mais famosa, que surgia, aqui e acolá, de um ângulo
ou de outro, em vários cartões-postais. Os
cartões-postais conseguem a proeza de mostrar o tesouro
de uma região até a banalidade, até
que se pense: “para lá não vou porque
já vi o bastante”. Apesar de tudo, eu os adoro.
Guardo comigo uma coleção de lugares que nunca
conheci: Rússia, França, Grécia, Egito,
idílios distantes no Sudeste Asiático... E
também outros que conheço à exaustão:
a cidade em que moro e a cidade em que nasci.
......A caminho, dentro do
bonde, uma inscrição na janela alertava os
visitantes: “não se debruce”. O fascínio
da queda. Do lado de fora, a mata ia surgindo, inexplicavelmente,
naquele grande centro urbano, com seus macaquinhos a assustar
os turistas, seus altos pés de jaca a contrariar,
aparentemente, a Reforma da Natureza de Monteiro Lobato.
Vez ou outra, à direita, um prenúncio do que
estava por vir arrancava as pessoas de suas poltronas, encantadas.
Eu mesma me levantei, ao ver aquele mar e aquelas montanhas
sob o sol do verão.
......Quando saltamos do bonde,
ainda restavam as escadas, o caminho a ser percorrido a
pé. Continuei a subir. Ventava muito, como em qualquer
lugar que fosse assim tão alto. No mirante improvisado
(tudo ali estava sob reforma), uma loja de souvenir e uma
pequena lanchonete dividiam o espaço com a paisagem
aterradora ao redor.
......Agarrei-me a um dos pilares,
com medo de que o vento me lançasse ao abismo. Fechei
os olhos, tentando dominar o pavor, distanciando-me, às
apalpadelas, daquela imensidão. Poderia retornar,
descer as escadas e voltar comodamente à segurança
de minha vida, apertando com firmeza o corrimão,
examinando com cautela os degraus onde pisaria. Em vez disso,
resolvi prosseguir. E subi ainda mais, até me defrontar
com aquela estátua gigantesca. Mas não conseguia
olhar seu rosto: isso demandaria lançar minha cabeça
para trás e esquecer onde estavam meus pés.
......Virei-me em direção
à paisagem. Ela me chamava, apesar de muda. Então
vi o mundo, interrogativo; tive a ousadia de olhá-lo
de frente, com um misto de medo e deslumbramento. Do que
eu tinha medo, afinal? Temia a própria liberdade,
que me convocava ao salto. Temia que pudesse, num movimento
de pássaro, empreender um único vôo.
......Sem olhar para trás,
compreendi, num relance, os braços abertos daquela
estátua sobre a Guanabara.
......Subindo
a rua Augusta de ônibus, sentada à direita,
eu me impacientava. Havia marcado horário, o motorista
ia lento, como se até o próprio veículo
padecesse o calor daquele final de tarde de verão.
Era uma subida interminável e as pessoas que iam
a pé, entre um momento e outro, emparelhavam conosco.
Ora crispava minhas mãos, ora enrolava os cabelos
num coque alto, desgrenhado, com lentidão, para que
o suor de minha nuca evaporasse.
......Eram os movimentos que
resistiam ao calor paralisante. Apenas meus olhos, autônomos,
indiferentes ao cansaço do corpo, se moviam continuamente,
de um lado para outro da rua, conformados com aquilo que
eu não podia ser.
......E assim chegávamos
à subida mais íngreme, antes da área
plana que se seguiria por um breve espaço. Depois
da subida, o último ponto antes de cruzar a Paulista.
Então o ônibus parou, alguns metros adiante
do restaurante que ocupava a esquina da Augusta com a Alameda
Santos. Ali, descia a maior parte dos passageiros. Ali,
o ônibus se demorava por isso e por causa do longo
semáforo que se aproximava. Quando o ônibus
parou, novamente, depois do ponto, diante do semáforo,
eu me vi pela janela. Vi uma senhora, de uns quarenta e
tantos anos, rindo apaixonadamente na presença de
um senhor, próxima a uma das entradas do Conjunto
Nacional. Era o meu rosto, ou o que seria dele, dali a vinte
anos. Ainda conservava a graça nos olhos, nas sobrancelhas
que os delineavam, meu rosto estava mais murcho, os sulcos
ao redor da boca, mais vincados. Já não possuía
mais os cabelos que se derramavam pelas costas até
a cintura, mas na altura da nuca, tingidos com o que seria
a cor natural deles, castanho-escuro. Vestia-me com a sobriedade
e a elegância adquiridas através dos anos.
Havia emagrecido um pouco e, pareceu-me também, diminuíra
alguns centímetros na altura. Notei isso quando sua
figura miúda, na ponta dos pés, abraçou
o senhor que a acompanhava. Encostava a cabeça em
seu peito, beijando os pêlos que escapavam para fora
da camisa levemente aberta, ele era muito alto, muito magro,
tinha os cabelos quase que totalmente brancos e a abraçava
com uma mão apenas, com certo constrangimento, enquanto
a outra segurava uma pasta. Parecia querer afastar-se e
ela sabia disso, mas estava feliz, estava compreensiva,
balançava a cabeça assertivamente, sabia que
era chegada a hora de se separarem. Eu sei, vai, vai, li
em seus lábios sorridentes, enquanto já o
empurrava carinhosamente, despedindo-se.
......Do lugar em que estava,
levantei-me de um salto, puxando a campainha insistentemente,
mas o motorista não abriu as portas novamente, mesmo
estando tão próximos; por que não descera
no ponto?, grunhiu.
......O farol abriu, o ônibus
atravessava a Avenida Paulista, já no plano, pronto
para o caminho da descida que viria. A próxima parada
estava distante, depois dos botecos, depois do cinema. Quem
seria ele, quem seria eu, tinha de saber, talvez fossem
amantes. O constrangimento dele e os modos apaixonados dela
justificavam isso. Mas, afinal, que importava isso, se eu
tinha acabado de me ver, vinte anos mais velha?
......Quando o ônibus
abriu as portas, retornei pelo caminho, correndo para saber
do que tinha ficado para trás. Até que localizei
o senhor, que antes a acompanhava, atravessando a rua, e
corri em sua direção.
......Vi sua figura excepcionalmente
alta se destacando entre a multidão, que, como ele,
vinha contrária a mim, na faixa de pedestres. Abordei-o,
no meio do caminho, fazendo-o parar. Quem era ela, quem,
quem?! Eu gritava em desespero. Um tremor se apossava de
seus traços, como se eu lhe houvesse descoberto um
segredo. Ela... Ela quem? Não há ninguém...
Estava reticente, temeroso. Mas logo o tremor de seu rosto
se converteu em cólera quando imaginou que estivesse
sendo seguido. Não é de sua conta! Quem é
você?... Não é ninguém!
Não é ninguém, ouviu?!
......E pôs-se novamente
a andar, a passos rápidos, afastando-se de mim, praguejando
impropérios.
................................................................................................Para
Max
......Era
tarde demais quando percebeu que não deveria ter
saído de casa. Já estava dentro do cinema
e reclinara-se na poltrona para achar uma posição
mais agradável às suas costas. Logo o escuro
da sala quase vazia fê-la esquecer-se do desconforto
de si mesma. Então o filme começou, arrastado,
exibindo duas personagens cujas vidas se espelhavam. Embora
não se assemelhasse a nenhuma daquelas pessoas, deu-se
conta de que sua própria condição se
refletia na tela, desmesuradamente, em cinemascope.
Era o que sobrava dela que se expunha, de modo quase vergonhoso,
a ponto de afundar-se na cadeira, como se fossem reconhecê-la.
Sorte que havia poucas pessoas. Sorte que não repararam.
Mas ela sabia: o filme era uma ferida. Ela era uma ferida.
Ter um ferimento na mão era uma coisa: apenas a mão
doeria e, ainda assim, só quando a esbarrasse em
algo ou quando dela fosse requisitado algum esforço,
do qual poderia se furtar, usando a outra mão. Diferente
é ser um ferimento: toda ela doía ao mais
leve contato da vida. Quanto à ferida na mão,
era poupar o membro doente dos atos danosos, como o de segurar
um objeto. Quanto à outra ferida, que fazer? Poupar-se
da vida?
......Quando
as luzes se acenderam, ela ainda estava enterrada na poltrona,
seus membros paralisados, um cansaço enorme atravancando
os movimentos que ensejava. Foi com lentidão que
emergiu para respirar. Levantou-se devagar e retirou-se.
......Já
anoitecia. Até o ponto de ônibus, faltavam
três quarteirões, que percorreu pé ante
pé como se avançasse dentro da resistência
que o vento de um deserto lhe impunha. De nada adiantavam
seus calçados novos: erroneamente pensara que eles
pudessem sobressair-se, caminhar por si mesmos, desviar
a atenção do corpo desvanecido para o brilho
vivaz do couro. Uma multidão vinha de todos os lados,
numa existência que a importunava, que a humilhava
de forma obscena. Em vão tentava se esconder, em
vão procurava abrigo: estava exposta como uma chaga.
......Quando
entrou no ônibus, deixou-se ficar no primeiro lugar
vazio que encontrou. O veículo rodou mansamente pelas
ruas congestionadas da cidade, noite adentro. Ela depois
notou que uma poeira circundava a mão que segurava
o balaústre; e, ao tirar seus dedos dali, o lugar
que eles tocavam estava limpo, e ela continuava quieta;
havia esquecido o som da sua voz, porque hoje ainda não
falara, desabituara-se à articulação:
o silêncio a tornara prisioneira de um mundo que se
projetava apenas por imagens mudas de mãos sãs
e delicadas que se tocavam.
......Ela
percorria o espaço do apartamento onde moravam enquanto
ele falava, seguindo-a. Era assim que sua impaciência
se manifestava quando discutiam, com passos lentos mas ininterruptos,
da cozinha à sala, da sala ao quarto, do quarto novamente
à cozinha. Quando terminasse de ouvir as queixas,
ela então cessaria os movimentos, estancaria provavelmente
em uma das cadeiras da cozinha e tomaria a palavra. Antes,
não era assim: não agüentava ouvir tudo
calada, intrometia-se nas falas do outro, o sangue corando
as faces, numa irritação febril. Agora podia
argumentar sem elevar o tom da voz, aprendendo até
a se calar. Sim, ele reclamava com razão, ela agira
mal, desagradara-o com sua imaturidade e insegurança,
resquícios da adolescência mal terminada que
ainda guardava teimosamente ao entrar nessa outra fase de
sua vida.
......Quando
finalmente iria responder, ela olhou os próprios
pés, numa tentativa de esboçar uma humildade
reflexiva. Naquele dia fizera algo novo: pintara as unhas.
Com um esmalte cintilante e leitoso, esbranquiçado.
As unhas pintadas sobressaíam-se dos pés descalços,
ligeiramente pardos, amarelados pelo verão. A visão
desagradou-a profundamente. Os pés, de cuja delicadeza
sempre se admirara, pareceram-lhe vulgares no bronzeado
que se esvaía e na grossa camada de tinta que cobria
as unhas. Pela falta de hábito, sabia que as havia
pintado como uma criança que usasse escondido os
produtos de beleza da mãe. Grosseiros, descuidados.
E, assim, de repente, aqueles pés fizeram-na duvidar
de si mesma. Aquilo não era ela. E o frio crônico
que a acometia sempre que era vítima do estranhamento
gelou-lhe as extremidades, e nenhuma voz saía-lhe
da garganta. Faltavam-lhe apenas sandálias de tiras
vermelho-vivo que, por bom gosto, pensava, nunca calçara.
As palavras do outro soaram-lhe absurdas: era um desconhecido
que falava. Nunca o vira antes. E pareceu-lhe improvável
que morasse com aquele homem há três anos.