Praça da Liberdade

 

 

Por algum motivo obscuro eu nomeei aquela praça, com seu monumento de bronze e jardins verdes, de Praça da Liberdade. Não era. Eu sabia. Era talvez Praça Marechal Rondon ou general-qualquer-coisa. Uma homenagem dessas. Estúpida. Eu a atravessava sempre quando ia almoçar. Às vezes com pressa. E meu passo era brusco, rápido, longo, forte e quase-pesado como uma marcha. Eu passava pelas barracas e suas músicas maliciosas como um alienígena. Às vezes na calma de não desejar voltar. Eu a atravessava entre cadeiras amarelas e mesas vermelhas desmontáveis, espiado por milhares de olhos curiosos. Olhos bêbados e sinuosos. Em certa medida, desesperados. A praça era assim, afluía sobre ela um grande trânsito de pessoas, que se chocavam com aqueles quase permanentes. Não falo dos mendigos nem dos ambulantes nem das crianças perdidas. Esses compunham um cenário diferente. Disfarçavam-se de objetos, coisas, confundiam-se com os bancos e gradis baixos, com os postes de iluminação apagados, os orelhões, as latas de lixo. Não se reparava neles, ao menos que, por um acaso mais que fortuito, você esbarrasse distraído os ombros em algum, ou então batesse de frente mesmo e na hora da pergunta deveras inconveniente de ajuda ou pedido qualquer: Comida, remédio, vale-transporte, cachaça, reza, roupa, choro ou canto.

Eu atravessava a praça batizada por mim de Praça da Liberdade. No canto extremo, o monumento de bronze. Se eu fosse Charles Bukowski — e jamais seria exatamente como ele, um ressentido, invejoso dos beats, prisioneiro de seu complexo de Dom Juan das putas, machista, sim, machista, apesar de frágil e doce. Se eu fosse o Buk, eu mijaria meu líquido quente e amarelo no monumento. Vocês não imaginam o quanto o monumento é horrível. Eu mijaria e gargalharia bem alto e satisfeito. Só, meus caros, que eu não sou o Bukowski nem Wally Salomão ou tropicalista maluco nenhum. Passo pelo monumento todos os dias e mascaro uma indiferença servil ao vislumbrá-lo, brilhando ao sol, ofuscando nossas vistas com sua autoridade de monumento de praça. E eu desejo que milhares de pombos caguem nele. O cocô branco manchando o bronze e me vingando cotidianamente, a repulsa vivaz pela regra que faz de todos nós cocôs como o cocô do pombo. Inúteis como ele. Ou menos, penso agora, pois não conseguimos nem sequer arranhar os monumentos — sejam eles vigiados como os dos filhos dos augustos senadores da Roma Antiga ou ainda as imagens de Antínoo, o amante de Adriano.

Eu? Quem sou eu? Quisera ser realmente forte. Sou uma metralhadora cheia de mágoas, eu sou mais um cara1. Não agüento um espirro, essa é a verdade. Magrinho, magrinho. A pele amarela de quem não gosta de pegar sol e teme um câncer desses que vemos na televisão. Não. Eu não sou de combates físicos, de agressões, esforços. Imaginem meus braços franzinos envolvidos em chaves de pitbulls, de rastáfaris seguidores do poder, do velho poder. Não. Não posso. Deus não quer. Passo pelo monumento e finjo indiferença sim. E quer saber, mas saber mesmo? Na minha cidade natal nem praças tinha. No máximo, canteiros. Canteiros de lindas flores. Vermelhas, rosas, amarelas, azuis, roxas e até as cores mais raras que você possa ter imaginado. Os maledicentes diziam que o governador ornamentou a cidade com canteiros para amenizar a dor de não saber o lugar aonde sua senhora mãe fora enterrada. Como são terríveis essas pessoas! Eles espalham o veneno de suas palavras como ervas daninhas. A Praça da Liberdade também ostenta jardins e flores e árvores. Mas não são tão belas quanto as da minha cidade. Juro que não estou idealizando meu passado. É só que é assim mesmo. Bonitas as daqui, mas nem tanto.

Eu passava distraído, divagando essas tolices. Não esperava que nada pudesse acontecer comigo, tantas vezes feito o caminho. Todavia, aconteceu. Eu ia olhando atento a tudo, menos ao rapaz branco como eu, do tipo capitão-de-areia, sabem como é? O rapaz veio rápido e me jogou ao chão. Aturdido, não elucidei o propósito. Caí e fiquei sentado, buscando razão para a selvageria. Acho que o rapaz, talvez um adolescente, talvez um homem jovem, possuía cabelos loiros. Quando o sol me cegou com seu azul cristal, eu enxerguei ouro sobre o forte pescoço. Mas junto a essa imensa riqueza pairava um ódio ou um desconhecimento total dele por mim. Sua expressão se mesclava entre a dor completa e o nojo crescente. E de repente ele sumiu.

Penso que foi a senhora negra do toldo branco e tacho de acarajé quem gritou primeiro: Ladrão! Pe-ga-la-drão! A voz velha e aguda, machucando meus ouvidos. Daí, queridos, perdeu-se o controle total. Sentado estava, sentado fiquei. Tentava contar quantos corriam, cercavam, gritavam. Oito, nove, quinze, vinte e dois... A praça virou uma balbúrdia.

Pus a mão no bolso e verifiquei. A carteira sumira. O jovem loiro passara a mão na minha bunda e eu nem chegara a sentir. Que engraçado!

Agora o homem gordinho e baixinho e negro e de chapéu-africano-de-candomblé, que ficava horas sentado ao lado da senhora negra dos acarajés sem fazer absolutamente nada, segurava o pobre rapaz pelo braço. Uma roda se fechou ao redor deles. Creio que foi a única vez, se me recordo bem, que a música parou, abafada pelos urros e sussurros, a única vez em que as paradas de ônibus se esvaziaram, o povo fechando uma cortina em volta do lugar.

Levantaram-me. Até aquele momento eu passara desapercebido, porém o homem do caldo-de-cana apontou para mim e explicou para um grupo de pessoas o que presenciara. E vieram e me pegaram, cada um em cada braço, auxiliando-me. Começava a ficar bom.

Então alguém falou a palavra maldita: Polícia. Estremeci. Sou homem de bem, honesto. E quem tem o seu, sente medo. Ah, a autoridade! Os defensores da lei...

De longe o suficiente para resguardar-me, vi quando os violentos e grandes negros vestidos de uniformes cáqui abriram o cerco e colocaram as mãos e as algemas no alquebrado e diminuto assaltante. Um inseto. Eram três os guardas. Dois deles chutavam e torciam o corpo já sem defesas. Era um espetáculo aquilo? A cortina permanecia cerrada. Braços musculosos suspendiam e desciam cacetetes mais negros ainda. O maior deles assistia imobilizado. Estremeci. O que seria do menino se mais aquele brutamontes participasse do espancamento?

Mas o homem negro e grande tirou sua boina da cabeça e estendeu o braço entre seus dois colegas e o rapaz. Cessou-se a carnificina. Bastou que ele lhes desse um sinal, para levarem o ladrão para o carro, encostado atrás das barracas. Rapidamente o tumulto se dispersou e se reorganizou segundo a ordem natural do dia.

Com a ameaça de ser humilhado pelo uso da força, fui obrigado a retroceder para o meio da praça. Teria de a atravessar novamente. Antes, porém, sentei-me num dos bancos e deixei o vento bater. Enquanto me refrescava, inspecionei minha roupa. Não estava suja. Um homem como eu não chega sujo no trabalho.

Refeito, ocorreu-me de reaver a carteira. Mas nela não havia nada que justificasse tanto trabalho, somente alguns poucos trocados para o táxi, o cartão de um cliente. Meus documentos costumo deixar na pasta, guardada no escritório. Sei que é um atrevimento, sair para almoçar assim, mas lhes pergunto: O que seria da vida sem os desvios no caminho?

Mal comecei a andar e logo tomo outro susto. Os mesmos três policiais vinham caminhando da outra extremidade da praça em minha direção. As botas marrons de couro avançavam num galope lento e estudado, esquadrinhavam flancos, cresciam. Sem barulho. Atacavam silenciosas. Eram gigantes e eu um Davi no corredor imprevisível da praça. E sem pedra e sem funda. Queria desaparecer. Virar as costas e correr. Contudo, sou orgulhoso, admito, afinal tenho alguma distinção.

Por dentro, o pânico. Por fora, era inatingível. Um Davi. Sem funda. As botas crescendo em seu couro sem lustre. Meus olhos duros e inflexíveis. Caminhava com determinação, possivelmente mais rápido que o meu normal. Não virava o rosto para o lado, mas na minha mente uma platéia se formava e acompanhava o grande desafio. Estavam mais próximos. O maior no meio. Uma montanha negra. A mais negra, reluzente. Vinham devagar, tirando o prazer de todos os circundantes com o peso da suas fardas, a postura, o movimento. Eu encarei justamente o mais forte deles, o líder, imaginei. Transpirava e seguia o meu destino sob a proteção das árvores e dos postes de luz desligados, uma aléia convergindo para o encontro fatal.

Só então reparei. O Montanha usava óculos. As lentes transparentes e sem aros, presas unicamente por finas hastes douradas. Eram óculos de um intelectual. E se encaixavam bem no rosto duro de queixo partido, o bigode fino e baiano, olhos verdíssimos. Os outros não, rostos lisos e livres de adereços, sem expressões, talvez uma sombra de morte nas pupilas sem vida, lábios inferiores caídos.

O suor me empapava o tecido da camisa, iluminava minha testa.

Eles andavam e os cacetetes, presos na cintura, balançavam. Uniforme. Uniformes. Revelavam-se os volumes por baixo, as pernas grossas, a curva da barriga dura, os músculos, o peito. E o revólver se escondia no coldre sempre desabotoado. Revólveres e cacetetes bailavam independentes. Era de se amedrontar. Uma gota de suor frio correu-me as costas. Estávamos quase lado a lado. Eu e o poder.

Meus olhos tentavam furar o Montanha. O policial da direita, mais para um mulato de meia-idade, barriga indisfarçável, braços cruzados para trás, me notou. Frio. Meu passo se embaralhou, grogue e sem ar. Nenhum dos dois policiais seus companheiros pareceram perceber minha presença. E mesmo o que me notou numa fração de segundos ocupou-se com as pernas de uma colegial, conversando com seu namorado. O resultado do embate fez-se nulo, tal minha insignificância para os brutos. A platéia exigiria seu dinheiro de volta, caso tivessem maiores expectativas para um final.

Ainda não estava totalmente livre de perigo quando refleti que o Montanha havia me surpreendido com sua beleza rude e masculinidade. Não fosse ele um policial... Os óculos lhe emprestavam um acento suave que, não sei bem dizer, encantava! E eu estava excitado com tudo isso. Digo, sexualmente excitado. De pau duro, se é que me entendem. A brincadeira tinha se saído deliciosa. Faltava apenas um detalhe: Eu queria saber como era a bunda do Montanha.

Sorri para mim mesmo, respirei fundo e lancei o olhar para trás.

Os três andavam sem alterar o ritmo, deslocando-se e cuidando de ocupar os espaços à distância. A bunda do gigante era mesmo admirável. Valeu a pena arriscar-me por tanto. Era durinha e redonda como os desenhos do Tom da Finlândia. A satisfação já seria muita se Deus não tivesse sido ainda mais bondoso comigo. Eu, um anjo, embevecido curtia as formas graciosas e exemplares do policial. Saboreava a visão. E ficaria atônito, pois, o Montanha, sem que seus camaradas o acompanhassem, olhou para trás e me flagrou apreciando-lhe o corpo. Depois disso, sorriu. Definitivamente, aquela era a Praça da Liberdade.

 

 

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1O tempo não pára, Cazuza

 

 

Para Marcus Vinícius Rodrigues

 

 

 

[Do livro Corações blues e serpentinas. São Paulo: Arte Paubrasil Editora, 2007]

 

 

 

(imagem ©zdoonek)

 

 

 

 

 

  

 

Lima Trindade nasceu em Brasília-DF. Atualmente, reside em Salvador-BA. Mestre em Letras pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), tendo estudado os contos de João Silvério Trevisan, Reinaldo Arenas e Davidd Leavitt. Edita mensalmente, desde 1999, a revista eletrônica Verbo21. Tem textos publicados em jornais, revistas, suplementos literários e internet do Brasil e exterior. É autor de Supermercado da solidão (romance, Brasília: LGE, 2005), Todo o sol mais o Espírito Santo (contos, São Paulo: Ateliê Editorial, 2005) e Corações blues e serpentinas (contos, São Paulo: Arte Paubrasil, 2007).