©ana maria mascarenhas
 
 
 
 
 
 
 
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Conferência na Academia Brasileira de Letras
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        O romance Les lauriers sont coupés, de Édouard Dujardin, foi publicado em Paris em 1887, quando o autor estava com 26 anos e o Simbolismo francês já ia a todo vapor. Dujardin, discípulo e amigo de Mallarmé, era um jovem bastante conhecido, identificado com a nova estética, pela qual militou enquanto crítico e como editor de revistas. Apesar disso, a grande novidade de Les lauriers sont coupés, que é uma pequena obra-prima, um camafeu literário, não foi devidamente apreciada na época.

         Esse romance simbolista, ao invés de recorrer às narrações e descrições usuais para o desenvolvimento do enredo, evolui como se fosse a transcrição pura e simples do pensamento de um homem. É através dos desejos de um personagem que se assiste vivendo, de alguma súbita lembrança, dos objetos que chamam sua atenção, das idéias mais disparatadas que lhe vêm à cabeça, da caótica e fragmentária exposição de seus conteúdos mentais, em suma, que o leitor é informado do que acontece, tendo de fazer um esforço, de compor um painel de circunstâncias, para seguir a trama. Tão inovador como era, Les lauriers sont coupés — no Brasil, A canção dos loureiros — não chegou a fazer sucesso ao sair. Depois, passou 38 anos no mais completo esquecimento. Só foi redescoberto quando Joyce revelou que lhe devia uma das formas fundamentais por ele utilizadas no Ulysses — a do monólogo interior, do fluxo de consciência.

         A revelação de Joyce foi feita ao tradutor francês do Ulysses, o romancista Valery Larbaud, que a comentou em prefácio para A canção dos loureiros, quando o livro de Dujardin teve afinal uma segunda edição, em 1925, diretamente provocada pelo aparecimento do Ulysses, três anos antes.

         "Nós renegamos os nossos mestres simbolistas, últimos amantes da lua" é o título de um manifesto futurista de Marinetti, de 1915. O "sentimentalismo balbuciante", a obsessão pelo luar e a bruma, a "poesia da distância e das solidões selvagens", a "estética da paisagem" são denunciados, no texto desse manifesto, como "anacronismos estúpidos" dos simbolistas, que segundo Marinetti viviam debruçados "sobre o corpo despido da mulher". Os símbolos do Futurismo são outros: a velocidade, o dinamismo, o efêmero. Símbolos que o mesmo Marinetti descreve como "o passo de corrida, o salto mortal, a bofetada e o soco", no primeiro manifesto futurista, o de instauração do movimento, em 1909, e que estão representados, no manifesto contra os amantes da lua, por "um automóvel cintilante de progresso e cheio de vozes civilizadas que pára bruscamente tossindo na linha elegante de uma estrada branca".

         A canção dos loureiros, no seu discurso descontínuo, que avança e retrocede como o cortejo de imagens que atravessa a mente desperta, contém várias das características, dos símbolos do Simbolismo que Marinetti detestava e contra os quais guerreou. Os símbolos de um estilo em progressivo declínio, que foram figurados por ele, em um terceiro de seus muitos manifestos, "o esplendor geométrico e mecânico e a sensibilidade numérica", de 1914, por expressões como "a nostalgia", "a névoa da lenda", "o fascínio exótico", "o impreciso", "a desordem multicor", "a penumbra crepuscular", "os galanteios da agonia", "a estética do insucesso". Entretanto, A canção dos loureiros, por trás da aparência ornamentada com elementos de época, era uma inovação arrojada, que havia conseguido dar forma, com bastante antecedência, a uma das metas que Marinetti previu para os pintores do grupo futurista: a de englobar na obra de arte "a simultaneidade dos estados de alma".

         Ao executar esse programa, Dujardin incorporou a seu livro, por outro lado, três elementos que Marinetti declarou subestimados e essenciais à literatura: o ruído, o peso e o cheiro. É no meio de uma floresta de símbolos, trazidos por percepções tácteis, por sabores, por perfumes, pelos barulhos de cada instante, que o herói de A canção dos loureiros persegue seu ideal amoroso. Nunca ele se debruça "sobre o corpo despido da mulher". Seu projeto de ser é a distância tomada em relação a si mesmo, quando nos examinamos com um pouco mais de atenção. Seu monólogo interior é de uma castidade espantosa. Acintosamente simbolista, é puro requinte, é um esforço de delicadeza, é povoado de arrebatamentos de perfeição e brancura — pérola, marfim, porcelana.

         Logo nas primeiras linhas do livro, o personagem que fala, que tenta falar o que está pensando, se apresenta assim: "...sob o caos das aparências entre as durações e os lugares, na ilusão das coisas que se engendram e que se concebem, um entre outros, um como outros, distinto dos outros, semelhante aos outros, um mesmo e um a mais, do infinito de possíveis existências, surjo...".

         Marquemos bem esta expressão — o surgimento de uma existência possível, sob o caos das aparências, na realidade do texto literário, — porque a idéia a construir há de centrar-se nela. Por ora, fixe-se apenas que "o impreciso", "a desordem multicor", "a penumbra crepuscular", aqueles senões que Marinetti apontava na produção simbolista, são de fato essenciais ao estilo de A canção dos loureiros. Mas também são essenciais em Joyce e a toda uma vertente da literatura moderna que usou a composição em mosaico e o fluxo de consciência para nos dar em bruto, nos termos da formulação futurista, "a simultaneidade dos estados de alma".

          Os simbolistas franceses, se não deram "a bofetada e o soco", porque eram outras as cerimônias da época, deram porém uma espécie de arriscado "salto mortal" ao expandirem as fronteiras da criação com palavras. Depois de muitas batalhas, seu grande feito, paralelo à introdução do verso livre, foi elevar o fragmento ambíguo, o retalho de texto, à mesma dignidade dos gêneros que a tradição aceitava. Remy de Gourmont, o grande crítico do movimento, concluiu um ensaio sobre "Mallarmé e a idéia de decadência" com uma afirmação taxativa: "Uma poesia cheia de dúvidas, de nuances cambiantes e de perfumes ambíguos é talvez a única capaz de nos deleitar doravante". Em outro de seus ensaios simbolistas, "A criação subconsciente", esse crítico admirado por Pound, e por ele traduzido em inglês, conta uma historieta que aponta para desdobramentos futuros. Já havia um escritor em seu tempo, como Remy de Gourmont aí garante, que "não ousava corrigir suas redações espontâneas, por medo de cometer erros de inflexão". Tal escritor não nomeado, segundo o crítico, "dava-se conta de que o estado no qual ele corrigiria seria muito diferente do estado no qual ele se achava durante o período da execução, que havia sido, ao mesmo tempo, o da concepção".

         Longe como estamos agora das antigas batalhas, quando estilos e escolas, movimentos e grupos se enfrentavam pelo predomínio na estética, podemos examinar com relativa isenção o que há de mais apreciável nos seus diferentes esforços. O Simbolismo, tal como corpo organizado de preceitos e práticas, tem pouco mais de cem anos. Na escala literária, esse tempo de vida é quase nada, se lembrarmos que o soneto, por exemplo, a forma mais persistente e estável da lírica ocidental, nos vem do século XIII, ou que há formas narrativas da cultura chinesa que já atravessaram mais de um milênio. Havendo acerto nesse modo de ver, o processo que ainda nos engloba é o mesmo. Desordem, penumbra e imprecisão não foram atributos restritos à fase histórica de produção simbolista. Pelo contrário, são características que estão agregadas aos próprios textos futuristas de Marinetti e seus pares, como também à escrita das vanguardas que vieram depois — o Expressionismo, o Surrealismo, o Modernismo — e a um sem-fim de experimentações e invenções patenteadas em obras que, mesmo que se apropriem de soluções das vanguardas, não se enquadram entretanto sob nenhum de seus rótulos.

         Os poemas em prosa de Marinetti têm a mesma estrutura básica dos retalhos de texto simbolistas. Nem por destruírem a frase e o rigor da sintaxe, estabelecendo por simples justaposição as relações entre os termos, deixam eles de ser, como os anteriores, fragmentos de um modo de dizer — um outro modo de dizer — que se manteve em constante afloração durante o século XX. Aquele anônimo escritor simbolista mencionado por Remy de Gourmont, que se recusava a emendar seus textos para não afetar sua concepção, já se pautava pelo mesmo princípio da escrita automática dos surrealistas, ou do empenho renovado por uma escrita espontânea que viria a ser feito, nos Estados Unidos, em meados do século, pela geração de Kerouac e Ginsberg.

         Foi o século da correria, e não espanta por isso que sua história literária freqüentemente tenha se apressado também, jogando um movimento contra o outro, ao invés de acentuar que há pontos de contato e semelhanças formais que os interligam, por trás dos símbolos que cada qual empregou. Onde antes imperavam o luar e a bruma ou, citando um simbolista brasileiro, Gonzaga Duque, os "farrapos esquálidos de brancuras arminhentas de ideais sucumbidos", instalar-se-ão depois os obuses, os motores, as engrenagens, os destroços, as "palavras em liberdade" de poemas em prosa como "Bombardeio", onde Marinetti se refere a "círculos concêntricos de reflexos plágios ecos risos meninas flores sopros-de-vapor esperas plumas fedores angústias" e, logo adiante, a "pesos espessuras rumores odores turbilhões moleculares cadeias redes corredores de analogias concorrência e sincronismo".

         Em 1927, ao estudar o significado e o efeito dos símbolos na vida cotidiana, Whitehead estabeleceu um princípio, o princípio de conformação, "pelo qual o que já está feito se torna uma determinante do que está se fazendo". Para ilustrar o enfoque, ele recorre a esta comparação muito simples: "Se há dinamite explodindo agora, no passado imediato, então, havia uma carga ainda não detonada".

         A palavra, sendo um elemento de troca nos canais utilitários, nos induz pelo hábito a confiar em sua eficiência para organizar o diálogo. No entanto, "a palavra é um símbolo", como lembra o filósofo inglês, e o significado não lhe é inerente: "é constituído pelas idéias, imagens e emoções que ela desperta". Um simples encadeamento confuso de palavras a esmo — "risos meninas flores sopros-de-vapor esperas plumas fedores angústias" — pode criar por isso uma realidade expressiva que não depende de explicações nem sintaxe, de nenhuma conexão lógica para impressionar o leitor. Devido à "sugestividade envolvente", termo também de Whitehead, que as palavras trazem consigo, o quadro se faz completo com as pinceladas do acaso. A partir de certo momento, a idéia de uma literatura abstrata, baseada na própria e variável pigmentação das palavras, parece ter seduzido o Ocidente, assim como se articularam, nas artes plásticas, a linguagem de manchas do Impressionismo e a abstração pura e simples.

         É do simbolismo como conceito filosófico, ou seja, dos sistemas de símbolos que regulam a vida social, e não do movimento literário, que Whitehead se ocupa. Mas seu princípio de conformação, se estendido ao campo das letras, permite uma visão mais orgânica do que todo e qualquer esforço para traçar influências e permutas numa evolução linear. Na esfera social, os símbolos se degradam com o uso, segundo ainda o filósofo, que escreveu a respeito: "Um contínuo processo de poda e de adaptação a um futuro que sempre exige novas formas de expressão é uma função necessária em todas as sociedades". Tanto isso quanto o que Whitehead diz a seguir, que "também em simbolismo se requer uma revolução ocasional", são afirmações compatíveis com o que na esfera literária ocorreu durante o século findo. Para as revoluções futurista e modernista, que explodiram quando o Simbolismo à francesa já estava em fase amaneirada, enveredando por caminhos preciosos de sonoridades e sinestesias esdrúxulas, as anteriores inquietações e procuras terão sido a dinamite ainda por detonar. Por esse prisma, torna-se bem compreensível que a literatura francesa fosse a mais tendente em nossa época a manter em uso e relevo o poema em prosa, forma preferencial adotada por alguns de seus mais interessantes poetas, como René Daumal, René Char, Henri Michaux ou Francis Ponge.

         Andrade Muricy, em seu retrospecto do Simbolismo brasileiro, sublinhou as conexões que o fizeram subterraneamente indispensável à revolução de 22, defendendo a tese de que "o Modernismo, apesar de ter tentado uma ruptura radical com a tradição, carregou em seu interior tendências e atitudes espirituais que poderíamos denominar de simbolistas". Ao mapeá-las, Muricy se reporta, entre outros, a um grupo de escritores — Adelino Magalhães, Lúcio Cardoso, Cornélio Penna — nos quais essas tendências se mostram a seu ver com mais ênfase, devido à "prosa de contorno subjetivo, intimista", que por eles foi empregada.

         Detenhamo-nos em Cornélio Penna, cuja obra é exemplar quanto a isso. Não só por estar envolta numa "névoa translúcida de misticismo", expressão de que Muricy se vale para tipificar a produção simbolista, mas também por adotar o fragmento ambíguo como módulo da construção em mosaico que ele edificou com destreza. Cada capítulo de um dos seus quatro romances é uma unidade à parte, um miniconto ou um bloco poemático que em si mesmo já faz sentido completo, e a grande realização de Cornélio foi saber interligá-los com uma costura sutil, levando-os a encadear-se com uma coerência notável que não anula entretanto sua autonomia expressiva. Na literatura intimista de Fronteira, o primeiro dos romances da série, tudo com efeito se passa, como observou Tristão de Ataíde, "na fronteira entre o sonho e a realidade, entre o passado e o presente, entre o natural e o preternatural, entre a lucidez e a loucura" — ou seja, como ora acrescentamos, na zona turva de prospecções infinitas onde a poesia tantas vezes foi mergulhar seus sensores. Para ilustrar o método de composição de Cornélio, leiamos na íntegra, como quem lê um poema em prosa, o Capítulo III deste seu livro, que se resolve em poucas linhas:

 

         Através da porta ouço o rumor de vozes.

         São homens e mulheres; são criaturas humanas que nunca vi e que nunca me viram; amanhã serão meus amigos e meus inimigos, e formarão em torno de mim uma cadeia cerrada de idéias e de ódios que ainda me não pertencem.

         Para lá da porta tudo é novo.

        Gente nova! E eu quisera também ter uma alma nova, que surgisse para eles na pureza e no desconhecimento de minha própria vida...

        E devagar, furtivamente, abro a porta para entrar no mundo novo que se acha atrás dela, ao encontro dos homens e das mulheres cujas vozes chegam mais distintas, sabendo que nada poderei oferecer-lhes, a não ser as minhas mãos gastas, meu corpo cansado, minha alma usada e sem destino.

 

         A obra de Cornélio Penna é lúgubre, cinzenta e xilográfica como tudo o que lhe serve de fundo: vielas, lamparinas, telhados encharcados de tempo, arcas de jacarandá para guardar as memórias, senzalas, mansões senhoriais em decadentes fazendas, matas por onde escoam lamentos, restos do passado barroco. E ele, que começou como pintor e ilustrador de jornais, passando a escrever por achar que fazia uma pintura muito literária, conservou do olhar de artista uma franca predileção pela metamorfose das coisas. Tudo é esbatido em suas tramas e, dependendo da luz, do ânimo do observador, do que rodeia o objeto e outros fatores, ou se dissolve num limbo sem contornos ou acaba parecendo algo mais. Cadeiras de pés finos, assim, parecem "aranhas adormecidas pelos cantos". Paredes irregulares caiadas, que engrossam do meio para baixo, viram "sacos de farinha". Há telhas esverdeadas de limo que são "folhas de inhame". Solitária no topo de uma elevação, há uma velha cadeia que parece uma caveira babando, quando chove e a água escorre por entre os blocos de pedra que estão na sua base e são dentes. Já um leque em mau estado, com o qual uma sinhá se abana, parece "um grande mocho desajeitado que tivesse entrado pela janela e pousasse ali pesadamente".

         Como um prenúncio do desejo de fusão entre os gêneros que o Simbolismo assumiu e propagou, Shelley escreveu, em 1821, na sua Defesa da poesia, que "a divisão popular em prosa e verso é inadmissível em filosofia rigorosa" e que "a distinção entre poetas e prosadores é um erro vulgar". Independentemente do que se pense a respeito, o fato é que a literatura intimista mostra ter tido essa fusão por alvo, pois realiza seus inventos com narrativas que dependem de valores poéticos — valores plásticos e musicais — para se corporificar.

Ao abrir mão da objetividade e da herança realista, o criador que age desse modo põe sua própria pessoa ou despessoa, isto é, o caráter volúvel de seus estados de espírito, a inconsistência e as contradições de seu ego, sua experiência vivida e seus impasses mentais, em primeiríssimo plano. Beckett, que desmontou o fragmento, radicalizando a tendência, chegaria a afirmar que uma palavra, matéria-prima de uma salvação hipotética, "é uma mancha desnecessária no silêncio e no nada", enquanto Cornélio Penna escreveu que "por baixo das palavras há um outro mundo que vive, complexo e palpitante", e que ao entrar nesse mundo, abandonada a estrutura das frases, nós "penetramos em novos e desconhecidos caminhos".

Faulkner, contemporâneo de Cornélio Penna, é como esse um autêntico poeta da prosa. Ao lidar com fragmentos, de cujas inesperadas montagens resultarão suas obras, foi mais longe porém do que as combinações intimistas entre narração e lirismo. Em Intruso no chão, um livro de sua fase madura, lançado em 1948, mesmo ano em que Cornélio publicou Repouso, temos um dos melhores exemplos de suas repetidas tentativas de conciliar num só texto múltiplas variedades e gamas da produção literária. Não se trata mais somente, nesse livro, de poetizar o discurso em prosa com recursos fonéticos ou com o uso de comparações e metáforas que primam pela raridade e assim nos causam espanto. Faulkner quis pôr tudo junto, do romance policial ao ensaio, como se da mistura de formas ele pudesse obter, em confusão voluntária, um retrato fiel da própria época.

Intruso no chão, na superfície, é a mera história de um crime. Um negro é injustamente acusado de matar um branco bronco e agressivo, cuja família se prepara para linchá-lo e vingar-se. Mas dois adolescentes sensatos e uma velhota aluada conseguem desfazer toda a intriga, motivados pelo mais puro altruísmo, e com a ajuda de um advogado correto eles provarão afinal a inocência do negro, que assim se livra da perseguição e da morte. Nos personagens, nas falas, nos gestos, nas situações e até nos vagos cenários está sempre embutida uma forte carga simbólica, e é com essa carga que rebentam as emoções mais agudas, contrapondo-se em sentido profundo à simplicidade do enredo. Na aparência exterior a narrativa progride, em meio a incríveis peripécias que nos mantêm em suspense, como qualquer conto policial que conduz ao desvendar de um mistério. Já na aparência intimista ela é um espaço oferecido à discussão dos problemas que o narrador diagnostica em sua terra e seu povo.

Assim como organiza um duelo entre os fanáticos da violência e os defensores da justiça igualitária, o texto também se engaja no combate a uma situação social que é descrita como aviltante e insustentável, por basear-se num sistema de erros e na obstinada traição dos valores do nascimento da América. Junto com a questão racial, esse é um dos pontos decisivos do pensamento de Faulkner, que aqui se vale do advogado correto como seu porta-voz, para denunciar por exemplo "a música vulgar desonesta falsa, o dinheiro falso infundado supervalorizado e vulgar, o resplandecente edifício da publicidade alicerçado em nada como um castelo de cartas sobre o abismo e toda a trapalhada ruidosa da atividade política que já foi nossa segunda indústria nacional e agora é o nosso passatempo nacional de amadores — toda a espúria barulhada produzida por homens que deliberadamente estimulam nossa paixão nacional pelo medíocre e enriquecem depois à custa dela: que até mesmo aceitarão o melhor desde que ele seja degradado e imundado antes de nos servido...".

Ninguém mais americano que Faulkner, mestre das mesclas impensáveis, e ninguém mais autorizado por isso a criticar um modelo que lhe parece deturpado pelas distorções mais grosseiras. Há uma parte da América, a essa altura, que já caminha na vanguarda dos refinamentos do espírito. Mas lá no velho enclave sulista, onde Faulkner vive e se abastece de temas, o atraso mental e o preconceito ainda são ervas daninhas. Em suas frases assimétricas, passionais, revoltas, obtidas em jorros e jogos de palavras que se sucedem sem pontuação muitas vezes, o romancista apegado à defesa da terra contra os desatinos humanos não se limita a exprimir sua vertiginosa discórdia. No livro em pauta, pouco depois do trecho já citado, o advogado que fala pelo autor diz que os melhores espíritos que ali afloram — a velhinha excêntrica, os jovens cheios de ideais legítimos, o herói negro que suporta com altivez todas as humilhações que lhe fazem — deveriam confederar-se contra os broncos: "juntos dominaríamos os Estados Unidos", diz ele numa proclamação delirante; "apresentaríamos uma frente não somente imbatível mas incapaz de ser ameaçada sequer por uma massa de gente que não tem mais em nada em comum a não ser uma ambição desmedida por dinheiro e um medo pânico de um fracasso do caráter nacional que eles escondem uns dos outros por trás da bandeira que veneram com fingidos louvores".

Em 1909, quando lançou o Futurismo na Europa, Marinetti recorreu àquele símbolo de "um automóvel cintilante de progresso" para sinalizar que finalmente a civilização estava chegando, e sua arte a expressaria com o dinamismo assintático dos retalhos de prosa. Quarenta anos e duas grandes guerras no Ocidente depois, Faulkner termina seu Intruso no chão com o mesmo símbolo. Porém, nesse novo contexto, o significado da palavra automóvel passou a ser exatamente o contrário. Não é mais esperançoso, nem triunfalista: é o significado de uma rediviva barbárie, que se consolida na impossibilidade de agora haver silêncio no mundo. Em Faulkner, o progresso mostra sua face perversa quando as páginas finais de seu livro se consagram a descrever o primeiro ou um dos primeiros e mais longos engarrafamentos da literatura moderna — "a massa densa impenetrável de tetos e capôs se movendo em fila dupla a uma velocidade de lesma para rodear a Praça numa aura forte invisível de monóxido de carbono e buzinas berrando e um leve intermitente bater de pára-choques...".

Pouco, quase nada há em comum entre Cornélio Penna e William Faulkner, além do fato de todos dois optarem por esse tipo de ficção fragmentária que através deles se escreveu lá e cá na mesma época. Ao esmiuçarmos seus respectivos estilos, damos porém com um curioso sincronismo na utilização de certos recursos. Um dos mais óbvios é a repetição de termos da frase para acentuar o que é dito ou para criar uma expectativa que torne mais impactante e contrastado o desfecho. No Capítulo XXXII de Fronteira, Cornélio descreve um quarto onde houve um encontro carnal que o narrador não aceita. Os vestígios desse encontro — "odores mornos de gozo e de brutalidade" — causam-lhe atroz repugnância. Mas a curiosidade o impele a aproximar-se do leito, que está coberto por um tecido estampado cujas flores "de um vermelho longínquo" pareciam mover-se ante seu olhar suspeitoso:

 

Pareciam de sangue seco, restos de crime...

Pareciam de sangue cansado, débil, esbranquiçado...

Pareciam de sangue espumoso, lembrança de ignóbeis volúpias...

Pareciam de sangue!

 

No primeiro capítulo de Intruso no chão, Faulkner descreve a casa paupérrima de seu Lucas Beauchamp, seu herói negro injustiçado, homem com fama de arredio, por intermédio de uma repetição programada e ainda mais exaustiva. À medida que avançamos para conhecê-la, vemos "a casa sem pintura de madeira" e "os paus da cerca sem pintura", com um "portão sem trinco e sem pintura", para alcançarmos "os degraus sem pintura e sem pintura a varanda", até que enfim penetramos na "própria casa desbotada e cinza, não tanto sem pintura quanto independente das tintas e intratável por elas". A sala é "fosca". Porém, assim que entramos no quarto, há uma orgia de cores que revela, pelo forte contraste que se preparou pouco a pouco, a riqueza interior de quem mora naquela casa encardida. Há uma "colcha brilhante de retalhos" na cama. Por cima da lareira, há "um lampião a querosene pintado a mão com florzinhas", e no canto oposto ao da cama há um retrato do casal — "um retrato colorido de duas pessoas numa moldura pesada de madeira com pintura dourada sobre um cavalete pintado de dourado também". Finalmente encontramos, numa cadeira de balanço no quarto, a esposa do personagem — "uma mulher velha minúscula quase do tamanho de uma boneca e muito mais escura que o homem, de avental e de xale e com a cabeça envolvida num pano branco imaculado por cima do qual vinha plantado um chapéu de palha pintado que sustentava algum tipo de ornamento".

Faulkner começou como poeta e seu primeiro livro publicado, O fauno de mármore, de 1924, era de versos canhestros. No ano seguinte, quando ele estava com 27 anos e ainda buscava um rumo na vida, passou uma temporada em Nova Orleans, onde, para ganhar algum dinheiro, escreveu para um jornal local suas primeiras experiências em prosa. Como nos velhos tempos do Simbolismo francês, a troca da dicção marmórea dos versos por um mergulho indefinido em formas de expressão ainda virgens trouxe-lhe grandes benefícios. Tão breves quanto os mais breves capítulos autônomos de Cornélio Penna em Fronteira, esses textos que às vezes têm pouco mais de dez linhas são hoje vistos como o esboço do futuro estilo de Faulkner. São vinhetas primorosas, entre a crônica da vida urbana e o conto minimalista, que retratam tipos das ruas, como um "Judeu rico", "O padre", "O mendigo", "O turista" e "O artista", e já trazem as deformações da linguagem e a grafia dos modos de falar que mais tarde serão marcas do autor.

Listamos alguns dos mundos possíveis que uma estética do fragmento criou, a partir do Simbolismo, e que em tese terão sido moldados por um princípio de conformação gradativa até meados do século. Arrastando-se um pouco às cegas, sobretudo quando pretendeu destampar o inconsciente e seus gritos, o parto da modernidade foi feito, nessa fase, em contrações violentas, enquanto a própria vida o motivava e assistia ao se estilhaçar em confrontos. Outros mundos, muitos outros, poderiam vir à baila, e entre eles estaria em relevo o universo estonteante dos fragmentos de Kafka, como "O médico da roça", "A grande muralha da China", "O novo advogado" ou "A aldeia mais próxima", que em suas simbolizações condensadas são capazes de causar mais arrepios do que um romanção lacrimoso. Por questão de afinidade, e de maior pretensão a uma intimidade com as obras, limitamo-nos porém ao terreno que foi aqui mapeado.

À medida que "o mal da civilização", expressão desentranhada em Musil, virava epidemia planetária, a era às vezes tão desumana das máquinas gerou também seus mecanismos de contestação e discórdia. A literatura se desenvolveu como um deles, quer se recolhesse à nostalgia, quer empunhasse suas páginas como bandeira de luta. Adstritos à realidade dos textos, e fazendo abstração de sua repercussão social, notamos que houve um encaminhamento das letras para a "dificuldade de ser".

Se os simbolistas decidiram que só pela sugestão envolvente a transmissão de seus estados de alma se faria possível, e se Cornélio nos garante que "por baixo das palavras há um outro mundo que vive, complexo e palpitante", infere-se que nesse mundo sem voz a experiência colhida ficou trancada em silêncio. Não há como dizer o que se sente, o que há em nós de mais íntimo. Há um muro de incomunicabilidade entre os homens. Por que então continuar escrevendo, se o próprio pensamento nos diz que nem pensar adianta e que todo entendimento é uma satisfação provisória?

Talvez para insinuar a quem ouve, a quem tem a paciência de ouvir, que por baixo das palavras se aninha um sentimento incomum. Quando ele se torna possível, parece que existir vale a pena. Não importam as guerras, os delírios, os erros, as figurações demoníacas, os papéis que teremos de desempenhar a contento. Nem sequer importam os acertos e a paz. Agora, nesse ninho que explode, fomos projetados além. Conhecemos, ao viver o sentimento poético, uma impressão incalculável de desapego e prazer, e só por isso se faz o desabafo inútil. Mas o que é afinal o sentimento, que tanto dignifica o ser humano quanto o leva a cometer as baixarias mais torpes?

Obra inacabada e inacabável, pois os fragmentos que a terminariam permaneceram dispersos e em desordem com a morte do autor, O homem sem qualidades, de Robert Musil, é um romance e ao mesmo tempo um ensaio que incessantemente analisa, para a colocar em questão, a hipotética solidez do romance que nessa simbiose de formas tentará ser escrito. O personagem de Musil, como o de A canção dos loureiros, e ambos são alter-egos dos respectivos autores, surge "do infinito de possíveis existências", é "um entre outros, um como outros, distinto dos outros, semelhante aos outros, um mesmo e um a mais". A cada passo porém sua intimidade o bloqueia, porque o texto de Musil vai se esforçar por provar que o sentimento, base indispensável à ação romanesca, não pode ser abordado senão como ilusão passageira.

 Maurice Blanchot observou, ao comentar esse livro extraordinário, um dos mais originais e importantes da primeira parte do século, que tudo o que acontece ao homem sem qualidades poderia também acontecer de outro modo. Como ele não tem sentimentos, ou melhor, como os desfaz pela inteligência, como os decompõe em fatores assim que os sentimentos são formados por associações automáticas, só lhe importam realmente a significação geral de seus símbolos e "o direito do espírito de procurar essa significação, não no que é, e que em particular não é nada, mas na extensão dos possíveis". Para esse homem tão distante de si, por isso perto dos demais, o que chamamos de realidade, como entendeu Blanchot, é que constitui a utopia.

Musil morreu em 1942, e no dia da morte ainda trabalhava em seu livro, cuja idéia lhe ocorrera, como hoje se sabe pelas anotações de seu diário, nos primeiros anos do século. Décadas mais tarde, Beckett levaria a extremos a decomposição do fragmento, usando técnicas como a repetição programada que vimos em Cornélio Penna e Faulkner. Em Companhia, de 1979, um de seus últimos livros, ninguém percebe se o que tem pela frente é um pequeno romance, um romance sem gestos, sem diálogos, sem ações encadeadas e sem cenários visíveis, ou então se está lendo um poema em prosa fantástico, contido em menos de cinqüenta páginas. Se nos convém chegar a algum lugar, terminemos provisoriamente com  Beckett, mergulhemos na desordem, penumbra e imprecisão de seu inominado personagem, que aí se diz

 

Criador da voz, de seu ouvinte e de si mesmo. Criador de si mesmo, para ter companhia. Deixa como está. Fala de si mesmo como se fosse de outro. Diz, falando de si, Ele fala de si mesmo como se fosse de outro. Também se inventa, pela companhia. Deixa como está. A confusão também é companhia, até certo ponto. A esperança adiada é melhor do que nenhuma. Até certo ponto. Até que o coração começa a cansar-se. O que também é companhia, até certo ponto. Melhor um coração cansado, do que nenhum.

 

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A Poesia e o Teatro de T. S. Eliot
Especial: Encontro com Leonardo Fróes

 

 

 

junho, 2005
 
 
 
Leonardo Fróes é poeta, tradutor e ensaísta. Depois de ter morado na Europa e nos Estados Unidos, vive recolhido em Petrópolis desde 1971. Seus livros mais recentes, e ainda à venda, são todos publicados pela Editora Rocco: Um outro. Varella (1990), Argumentos invisíveis (1995), Vertigens, obra reunida, 1968-1998 (1998), Trilogia da paixão, de Goethe (1999; tradução e ensaio), O triunfo da vida, de Shelley (2001; tradução e ensaio), Contos orientais (2003) e Chinês com sono (2005). Entre suas traduções mais recentes estão: Contos completos, de Virginia Woolf (CosacNaify, 2005), Esquetes de Nova Orleans, de William Faulkner (José Olympio, 2002), Panfletos satíricos, de Jonathan Swift (Topbooks, 1999), e Middlemarch, de George Eliot (Record, 1998). Ganhou o prêmio Jabuti de poesia, em 1996, e o prêmio Paulo Rónai de tradução, em 1998. Mais na Revista Agulha, Editoras, Alberto Pucheuaqui.