A poesia portuguesa indicada sob o título de "barroca", ou mais prudentemente de "seiscentista", refere em larga medida o tempo de predominância do modelo estabelecido com base nos empregos poéticos de Luís de Góngora y Argote (1561-1627), que ultrapassa vastamente o século XVII ibérico. Como é sabido, as duas mais importantes recolhas em língua portuguesa de poesia "seiscentista" ou "barroca" são as antologias Fênix Renascida e Postilhão de Apolo, ambas efetuadas por eruditos do século XVIII, resistentes às novas perspectivas antigongóricas surgidas nele. Um dado bem elucidativo a respeito desse choque de temperamentos artísticos num mesmo tempo histórico pode ser estabelecido quando se percebe que a publicação da segunda edição da Fênix (1746) — que corrige e aumenta a primeira (1716-1728) —, sai à luz no mesmo ano do texto que realiza a mais rígida condenação da poesia gongórica já produzida em Portugal: o Verdadeiro Método de Estudar, de Luís Antônio Verney.

 

Em termos rigorosos, pois, Fênix e Postilhão são projetos setecentistas de defesa da pertinência e da relevância do modelo poético vigente na Península no século anterior. Isso está especialmente claro no poema de abertura de ambas as antologias, o pouquíssimo conhecido Introdução Poética, de Antônio dos Reis, que mapeia a questão da apropriação da poesia seiscentista no século XVIII.  Na forma de uma fábula poética, o poema narra a convocação de um Congresso de Musas pelo deus Cilênio (Hermes), a fim de celebrar o alegre início da Primavera e a vitória do Sol sobre os últimos tempos de luto invernal. Apolo, magnífico, preside a sessão. Inaugura-a com um elogio do tempo em que reaparecem as flores como sendo análogo àquele que novamente renderá honras à verdadeira poesia. Esta é entendida então como "fulgores" de engenho e de entendimento, que andavam esquecidos ou desdenhados nos últimos anos, por conta de contemporâneos que confundiam ignorância e discrição, inépcia com propriedade elocutiva.

 

A oração apolínea precipitava despenhadeiros de lisonja ao modelo poético gongórico, quando se viu abruptamente interrompida pelo discurso de Momo, filho da Noite, que se pretendia afinado com os tempos das Luzes que a sessão pretenderia enterrar. Tomado de furor crítico neoclássico, replica Momo que a confusão entre ignorância e conhecimento, longe de ser recente, é típica de toda a poesia entendida como enfeite ou ornato, de que era exemplo e cume a mesma poesia ali celebrada. A História, esta sim, era produtora de saber e verdade, e, como tal, dava constantes demonstrações das falsidades produzidas pela poesia ornamental, que não merecia senão açoite a cada má página perpetrada.

 

Como é fácil perceber pelos termos empregados, Momo argumenta em favor dos modelos setecentistas mais recentes, de safra ilustrada, que condenam como supérflua ou frívola — como rapaziada e frialdade, nos termos de Verney —, a poesia conceituosa do período anterior, que não seria batizada de 'barroca' senão mais de dois séculos depois, pela historiografia da arte germânica.  Para fazer o devido rebate a Momo, que invocara o testemunho da História, Antonio dos Reis mobiliza justamente a musa Clio, que preside o saber histórico antigo. Esta atribui o discurso do adversário das Musas, antes de mais   nada, ao ressentimento e à inveja. Com uma série de exemplos, mais aludidos e menos divertidos do que os levantados pelo deus noturno, Clio defende o modelo antigo das armas e letras, cujos heróis estão "as penas coas espadas aparando". De dupla filiação paterna, provenientes tanto do belicoso Marte, quanto do brando e doce Apolo, apenas os campeões da "antiga glória" podem cantar vitória, e o fazem brandindo com mestria o ornato poético. Na defesa conduzida por Clio, o ornato, longe de supérfluo, é a primeira condição e estímulo dos feitos históricos, o que certamente está de acordo com os principais modelos da poesia seiscentista.

 

Desta sorte, derrotado pelo discurso da musa histórica, Momo é ainda novamente condenado pela sentença final de Apolo que, para máximo castigo seu e honra da poesia, manda que os deuses ali presentes reúnam e publiquem as obras admiráveis do passado que o tempo "gastador e furibundo pretendera acabar entre os humanos". Ou seja, os esforços de produção das antologias da Fênix Renascida e do Postilhão de Apolo são concebidos por seus organizadores como atos que devem "servir de defensivo" contra os adeptos modernos de Momo, "invejoso e vingativo", que reduzem a poesia a uma verdade escrita "sem suspeita", "sem lisonja", "claramente", como propõe o programa ilustrado que começa a ganhar corpo, mesmo em Portugal. É, portanto, nos termos da produção de uma resistência à iconoclastia de novos paradigmas, ou de uma defesa da herança seiscentista sob ataque recente que as duas antologias são organizadas.

 

Isto dito, nada faz supor que tal ato de resistência, que se apropria da poesia dos seiscentos, ainda faça sentido ou seja necessário neste início de século XXI que, bem ao contrário, vive quase uma euforia do barroco. Partilham-na pós-colonialistas internacionalistas (supondo o "barroco" como linguagem sem doutrina, capaz de sustentar as diferenças culturais de um mundo globalizado), neobarrocos ou latinoamericanistas tardios (que vêem nele uma identidade do resistente oprimido frente à despersonalização do imperialismo capitalista opressor), nacionalistas e concretistas (para aos quais a produção colonial do período 'barroco' deve ser admitida como obra de arte nativa, capaz de definir precocemente um processo de autonomização da poesia brasileira, que não precisaria esperar pelos românticos ou pela semana de 22), regionalistas de vária procedência (segundo os quais a produção 'barroca' seria signo da riqueza do passado baiano-mineiro, senão também do carioca-pernambucano) etc. etc.

 

O mais curioso de tudo, entretanto, é que tamanha euforia do "barroco" ocorre a despeito da leitura ou do simples conhecimento particular da poesia produzida no período. No Brasil, essa poesia é menos do que pouco lida: está praticamente zerada, a não ser por uns poucos e inevitáveis trechos de Gregório. Em geral, não passa de referência vaga em histórias literárias cuja espinha dorsal a supõe apenas como uma etapa inevitável, burocrática ou mal sofrida de uma formação autônoma superior, seja em termos intelectuais, seja especificamente poéticos.

 

Tal estado de coisas, acompanhado ou não (melhor não) daquela estranha euforia, solicita a leitura da poesia seiscentista hoje. Duas razões estão embutidas aí: primeira, a de conhecer o que ainda é muito timidamente publicado e, por isso mesmo, está apenas esporadicamente presente na reflexão literária brasileira; segunda, a de que conhecê-la pode significar, não alienação ou escapismo da crítica que se refugia num passado remoto, mas a reestruturação do presente como conseqüência de um remodelamento de sua herança cultural.

 

 

 

 

 

agosto, 2006

 
 
 
 
Alcir Pécora. Professor de literatura na Unicamp. Autor de estudos a propósito de literatura colonial brasileira, e, em particular, do sermonário do Padre Vieira. É crítico e colaborador de jornais e periódicos científicos. Organizador da edição das obras completas de Hilda Hilst e Roberto Piva pela Editora Globo. Co-editor da Sibila — Revista de Poesia e Cultura.
 
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