Muitos não irão passar, agora, pelo que passei. Conheci a poesia de Leonardo Fróes tardiamente, apenas quando o livro de poemas Argumentos invisíveis veio a público, em  1995. A perfeição, o impacto e a densidade de poemas como "Ao sonhador, o inveterado", "Introdução à arte das montanhas" e "Dia de dilúvio", dentre outros, arrebataram-me como poucas vezes acontece. Desde então, contatei amigos que teriam um outro livro do poeta, consultei bibliotecas, tirei cópias, bati pernas para ter acesso à poesia anterior de Fróes, toda esgotada até a presente edição e, por isso, restrita a um grupo de leitores privilegiados. Fui descobrindo uma rede subterrânea, pessoas que o admiravam silenciosamente, que sabiam seus poemas de cor, que emprestavam seus livros umas às outras e que os guardavam como companheiros necessários para a aventura chamada vida.

 

A edição de sua obra reunida, intitulada Vertigens, abrangendo trinta anos de um percurso que vai de Língua franca (1968) ao até então inédito Quatorze quadros redondos (1998), realiza, enfim, uma tarefa há muito esperada: dispor ao público interessado uma das poéticas brasileiras de maior vigor e singularidade dos últimos anos.

 

Entre as questões fundamentais da poesia de Fróes, saliento uma, trabalhada ao longo de sua trajetória: a do poeta que, lançado em busca de si mesmo, encontra somente a perdição e o constante devir. Em uma das primeiras páginas publicadas, está dito: "perdi todos os rumos", avisando que quem procura, racha. Leonardo Fróes impossibilita a dicotomia entre mundo exterior e mundo interior, dissolvendo a subjetividade no comunitário ou, mais freqüentemente, na natureza. Habitantes do remoinho, caminhamos em uma ambiência de "desrespeito aos limites". Vertigem. Os acontecimentos se apresentam, por exemplo, como um devir-animal ("Um animal passeia nas montanhas/Arranha a cara nos espinhos do mato, perde o fôlego/ mas não desiste de chegar ao ponto mais alto"...), um devir-água ("e eu mesmo sendo dissolvido também/ nessa casa alagada, não me acho/ enquanto solidez: vou flutuando/ como onda inconstante na correnteza"), um devir máquina ("o relógio — carrilhão tinha um detalhe realmente espantoso: de cabeça para baixo, amarrado pelos pés à engrenagem, como uma peça, para oscilar e dar as badaladas, era um menino pálido e magrelo que lhe servia de pêndulo") etc.

 

As palavras do poeta realizam uma experiência de despersonalização extática, tornando nossa a "perigosa selva primal", onde "mundos que se entrechocam num horripilante silêncio desencontrado" estabelecem uma fusão entre os reinos, inclusive os da artificialidade. Não é outra experiência a que revela um dos últimos escritos do livro publicado, determinando o eixo de sua poesia e a transformação na maneira de abordá-lo: "Como se andasse para aquela baixada largando para trás suas noções de si mesma. (...) A mulher esvaziada emudece, se dessangra, se cristaliza, se mineraliza. Já é quase de pedra como a pedra a seu lado. Mas os traços de sua sombra caminham e, tornando-se mais longos e finos, esticam-se para os farrapos de sombra da ossatura da árvore, com os quais se enlaçam". Esquecida de si mesma, a mulher entra em um devir-mineral, enquanto sua sombra se direciona para uma sombra vegetal.

 

Observo, também, a tentativa de indistinção entre o literário e o não-literário, explicitada em certos momentos: "Tentando dar às palavras/ um valor não-literário,/ tentando extrair vida/ de um velho dicionário". Às vezes, ela aparece na utilização conjunta de expressões cultas e populares, citações em línguas estrangeiras e grafites, palavras-valise e gírias. Essa tensão compactua com uma outra, segundo a necessidade. 

        

 

 
 
março, 2006
 
 
 
(Resenha  publicada no jornal O Globo | Prosa e Verso, em 6 de Fevereiro de 1999, e no site do autor)
 
 
 
 
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Leonardo Fróes. Vertigens, obra reunida, 1968-1998. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1999
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Alberto Pucheu nasceu no Rio de Janeiro, em 1966. É escritor e professor de Teoria Literária da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Publicou os livros de poesia Na cidade aberta (Rio de Janeiro: Editopra U.E.R.J, 1993); Escritos da freqüentação (Rio de Janeiro: Editora Paignion, 1995); A fronteira desguarnecida ( Rio de Janeiro: Editora 7Letras, 1997); Ecometria do silêncio (Rio de Janeiro: Editora 7Letras, 1999); A vida é assim (Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2001); Escritos da Indiscernibilidade (Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2003). É o autor de Guia conciso de autores brasileiros (Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2002), com Caio Meira.  É o organizador de Poesia (e) Filosofia, por poetas-fiósofos  em atuação no Brasil  (Rio de Janeiro: Editora 7Letras, 1998), com a participação de Adélia Prado, Alberto Pucheu, Antonio Cicero, Fernando Santoro, Marco Lucchesi, MD Magno, Orides Fontela e Rubens Rodrigues Torres Filho. Traduziu Tagore, Rabindranath. O Coração de Deus (Rio de Janeiro: Ediouro, 2004), poemas místicos. Mais em seu site.
 
 
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