AS PERIPÉCIAS. Gerardo Mello Mourão chega aos 90 anos — completados no dia 8 de janeiro — como uma das vozes mais representativas da Literatura Brasileira contemporânea. Um poeta de expressão singular, considerado por vários críticos e muitos escritores — entre eles Carlos Drummond de Andrade, Wilson Martins, José Cândido de Carvalho e Octavio de Faria — como o poeta maior do Brasil.

 

Nascido em 1917, no pé da serra do Ibiapaba, em Ipueiras, sertão do Ceará, Gerardo teve uma vida bastante acidentada e cheia de aventuras. Sua obra tem merecido, ao longo de mais de meio século, a atenção de grandes nomes da Literatura Ocidental, como Ezra Pound, Octavio Paz, Jorge Luis Borges e Robert Graves.

 

Aos 11 anos foi para o Seminário São Clemente, em Congonhas do Campo, Minas Gerais, onde permaneceu até os dezoito, período em que aprendeu nove idiomas e traduziu, num exercício diário, textos do grego e do latim, de Homero e Píndaro, Virgílio e Horácio, Ovídio e Propércio.

 

Abandonou o convento em 1935, poucos meses antes de proferir os votos de pobreza, castidade e obediência. Começou a estudar direito, mas abandonou. Logo em seguida, aderiu ao Integralismo, assim como Câmara Cascudo e Adonias Filho, conduzido para o movimento pelo crítico Tristão de Athayde.

 

Foi preso 18 vezes durante as ditaduras do Estado Novo e Militar. Numa delas, ficou no cárcere cinco anos e dez meses (1942–1948), quando escreveu o célebre romance O Valete de Espadas e dez elegias de perdição reunidas no livro Cabo das Tormentas. Viajou por toda a Europa, América e Brasil.

 

O país em que viveu mais tempo, no exterior, foi o Chile, onde deu aulas na Universidade Católica de Valparaíso. Na década de 1980 morou em Pequim, na China, onde foi correspondente do jornal Folha de São Paulo. Mais precisamente, foi o primeiro correspondente brasileiro e sul-americano na China. Escreveu, até pouco tempo, crônicas diárias para os principais jornais do Brasil.

 

 

AS INVENÇÕES. A vasta e variada obra de Gerardo Mello Mourão compõe uma das mais elevadas contribuições para a literatura contemporânea e consegue alcançar dimensões universais, como é de se esperar de toda alta escritura. Escreveu, com brilhantismo e erudição, em verso e em prosa (romances, contos, ensaios e biografias). Entre seus livros, destacam-se o romance O Valete de Espadas (1960), o livro de ensaios A Invenção do Saber (1983), a epopéia Invenção do Mar (1997) e a trilogia poética Os Peãs, composta pelos livros O País dos Mourões (1964), Peripécias de Gerardo (1972) e Rastro de Apolo (1977).

 

O Valete de Espadas, traduzido para vários idiomas, é um romance que está na pauta do surrealismo, mas em quase nada se assemelha ao realismo mágico latino. Sua profundidade, seus abismos indecifráveis, aproximam Gerardo de autores centro-europeus, como o Herman Hesse de O Lobo da Estepe. O personagem principal, Gonçalo Falcão de Val-de-Cães, é um ser perplexo diante da irresidência do ser no mundo. Um dia, ao sair do hotel em que estava hospedado, percebe que está em uma cidade completamente desconhecida; no dia seguinte, acorda em um navio cujo rumo também desconhece. A epígrafe bíblica, logo no início do livro, adequa-se perfeitamente ao estado de coisas e às tensões da personagem: "Não conheço sequer o caminho".

 

A Invenção do Saber, reunião de ensaios, é um convite ao pensamento. É também um libelo contra a idolatria tecnológica da atualidade e o seu culto da especialização — "o especialista é o individuo que sabe cada vez mais sobre cada vez menos". E apresenta como contraposição uma cultura humanística, que, no momento, encontra-se desprestigiada, mesmo por aqueles a quem caberia defendê-la. Inclui, além de 30 artigos originariamente publicados na imprensa, palestras apresentadas em universidades brasileiras e estrangeiras, que abordam temas como a palavra, o poder e o saber.

 

A epopéia Invenção do Mar, Prêmio Jabuti de 1998, é considerada pelo crítico Wilson Martins como "Os Lusíadas" brasileiro, que o chama mesmo de "Os Brasíliadas", em artigo publicado no jornal "Gazeta de Curitiba".

 

De fato, Mello Mourão, por outros caminhos e de outras formas, alcança o sopro criador de um Camões, aliás, faceta essa que já havia logrado com Os Peãs. Ezra Pound percebeu na trilogia Os Peãs, iniciada com O País dos Mourões, que Gerardo tinha inaugurado o canto da genealogia da América. E esta é uma velha ambição cosmogônica: fazer, não a genealogia pessoal, mas a genealogia do seu povo, do seu mundo.

 

Passear pela seara da obra de Gerardo Mello Mourão é sentir o "aroma, maciez e música" de uma poesia maior. Nenhum outro poeta brasileiro recebeu, em quantidade e qualidade, número tão grande e tão respeitável de artigos sobre sua obra. Somente os literatos de ouvidos cegos, que não conseguem alcançar o ritmo da sua poética poliédrica, é que não percebem a sua grandiosidade.

 

O próprio Drummond declarou-se "possuído de violenta admiração pelo imenso, dramático e vigoroso painel" da poesia de Gerardo, pois sabia do opus magnífico do bardo de Ipueiras que, "atestará para sempre a grandeza singular e a intensidade universal da poesia". Mello Mourão não cabe em moldes nem em escolas literárias. É singular. E vem construindo, solitário, a saga do povo brasileiro.

 

 

 

[Publicado, originalmente, no Jornal A Tarde, Salvador, Bahia, 10 de fevereiro de 2007]

 

 

 

 

Dois poemas de Gerardo Mello Mourão

 

 

O QUE AS SEREIAS DIZIAM A ULISSES NA NOITE DO MAR

 

Sobre a frase musical de Ivar Frounberg

"Was sagen die Sirenen als Odysseus vorbei segelte"

 

Ninguém jamais ouviu um canto igual

ao canto que te canto

escuta: as ondas e os ventos se calaram e a noite e o mar

só ouvem minha voz — a noite e o mar e tu

marinheiro do mar de rosas verdes:

 

virás: é um leito de rosas e lençóis de jasmim — e ao ritmo

do teu corpo entre a cintura e as ancas

mais o lençol de aromas de meu corpo

em monte de pétalas desfeito:

 

e dormirás comigo

e os que dormem com  deusas

                   deuses serão — verás

cada arco de minhas curvas

à forma de teu corpo moldaremos — e a pele tua

aprenderá da minha

aroma e maciez e música

e entre garganta e nuca aprenderás

a noite dos que dormem a aurora dos que acordam

sobre os seios das deusas também deuses.

 

Vem dormir comigo

                  e comigo

e todas as sereias.

 

Todas as deusas se entregam

ao amante que um dia possuiu uma deusa

e então todas as fêmeas dos homens

Helenas, Briseidas e a Penélope tua

hão de implorar às Musas — e as Musas a Eros e Afrodite

a volúpia de uma noite contigo.

 

Não partas!

                                se partires

as velas de tua nau serão escassas

para enxugar-te as lágrimas — e nunca

nunca mais tocarás a pele das deusas

nunca mais a virilha das fêmeas dos homens

e nunca mais serás um deus

 

e nunca mais a melodia de uma canção de amor 

dos hinos do himeneu:

abelhas mortas para sempre irão morar

na pedra do jazigo de cera

de teus ouvidos cegos.

 

Mas vem

e vem dormir comigo

                  e comigo

                  e minhas irmãs e todas

                  as sereias do mar

                  as sereias da terra

                  e as sereias dos céus.

 

 

(Rio de Janeiro, 1998)

 

 

 

INVENÇÃO DO MAR

 

CANTO PRIMEIRO

 

"E se mais mundo houvera, lá chegara".

Camões – Lusíadas – VII – 14

 

I

 

Ai flores do verde pinho 

ai pinhos da verde rama 

coroado das flores do verde pinho 

eu não quero este mar — eu quero o outro:

 

quero o mar das parábolas e elipses 

dos cones helicôneos dos abismos 

o mar sem fim — o mar 

com seus heliotrópios suas ninfas 

seus cavalos-marinhos, seus tritões 

e seus lobos do mar:

 

e tu, Pater Poseidon, 

com teu tridente em teu palácio de águas. 

E era uma vez Diônisos — poeta e rei 

e um dia a flor do pinho será tábua 

e um dia a tábua será sonho quando 

o pinho de novo verde sobre as águas verdes 

talhado a enxó 

entre as espumas talhar as ondas: — então 

o mar libidinoso irá lambendo as ancas

das caravelas redondas.

 

Ai flores  

do verde pinho 

ai ramos de Leiria 

ai flor dos linhos do Alentejo.

 

E a flor das velas nesse baile 

bailando ao vento cada vez mais longe 

cada vez mais perto — Diônisos —

dos sonhos que sonhavam 

os olhos de Isabel — 

e um dia os pinhos serão galgos 

e esses galgos do mar irão galgar 

das pupilas do Infante 

a latitude e a longitude das lonjuras 

ao sal da lágrima — ao sal das águas.

 

E no chão das águas 

ai flores do verde pinho 

ai linhos do branco linho: 

caminhos dançam sobre o chão do abismo

sobre o chão dançador da esmeralda revolta 

a dança da saudade marinheira  

cantada nas violas: 

ai tábuas que foram verdes 

tão tábuas para fragatas 

tão tábuas para guitarras.

 

No mesmo pinho, Luís Vaz, 

cantavam cantos do mar 

das partidas não chegadas 

dos amores desterrados 

pelas várzeas do Alentejo 

de Teresas e Marias.

 

E as moças de seios redondos 

de Traz-os-Montes, das Beiras de Portugal 

gemiam canções de amor: 

ai flores do verde pinho 

ai pinhos da verde flor:

 

na flor, na frôl e na fulô de seus aromas:

 

saudades dos marinheiros. 

fevereiro, 2007

 

 

José Inácio Vieira de Melo é poeta e jornalista. Co-editor da revista Iararana. Publicou, entre outros, A terceira romaria (2005). A infância do Centauro, seu novo livro, está no prelo e vai ser lançado pela Escrituras Editora.

 

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