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Este primeiro volume das obras reunidas de Roberto Piva, "Um estrangeiro na legião" (São Paulo: Globo, 2005), organizado por Alcir Pécora, vem cercado de cuidado gráfico e crítico. Colige os principais trabalhos do autor na década de 60 (Ode a Fernando Pessoa, Paranóia, Piazzas e os manifestos Os que viram a carcaça), e oferece também uma delimitação crítica da contribuição desses livros e panfletos para a poesia brasileira contemporânea, com o texto do próprio organizador, que abre a edição, e um posfácio de Claudio Willer, que mapeia os trilhos da obra poética de Piva, demarcando-lhe as linhas de força. A presença crítica no volume procura de um lado corroborar a importância que a publicação da obra completa de Piva assume, ao permitir uma visão de conjunto, e de outro lhe apontar as qualidades fundamentais. Como exercício de leitura e aproximação a essa poesia "estrangeira", procurei retirar dos textos de Pécora e Willer as coordenadas fundamentais que marcariam o terreno da recepção de Piva em seus próprios termos, ou seja, menos como juízos de valor do que como termos de comparação, contra os quais pudesse avaliar minha própria leitura. Com elas, fui aos poemas, muitos dos quais enfrentei pela primeira vez. Talvez essa resenha mostre, por isso, as hesitações de um iniciante e as desconfianças de um não-iniciado.

 

Do texto de Pécora, fiquei com o "sistema de oposições manifestamente esquemático" que marcaria a poesia explosiva do jovem Piva. Um parti pris bastante nítido organizaria a imagética tão profusa quanto organizada desses primeiros livros. O quanto a tomada de posição é firme, mede-se pela disciplina léxica que traça a grande linha semântica de confronto entre o universo burguês, cartesiano e cristão, e sua crítica de matriz romântica, surrealista, dionisíaca (basta ver o divertido manifesto A catedral da desordem). A força com que Piva se bate pelo segundo campo é, para Pécora, condição de uma "escrita libertina, no sentido forte do termo: aquele no qual está em jogo assinalar os interditos e investir decididamente contra eles, num gesto cujo valor fundamental é o da transgressão, e nenhum outro". Daí o valor do "esquematismo" de Piva, ao colocar as oposições de forma absoluta, sem possibilidade de concessão, numa cruzada sem descanso contra a megera cartesiana de que falava Rosa.

 

Transgressão, portanto, como conteúdo de um gesto arrebatado de confronto com os mecanismos de reprodução da ordem burguesa. E o texto de Pécora avalia também a presença central do sexo "nesses jogos de extremos". Com referências textuais a Freud, Piva investe contra a caretice sexual, na sua tomada de partido "contra a vagina pelo ânus" (no manifesto O Minotauro dos minutos), sendo que a transgressão nesse terreno tem um aspecto mais decisivo: é, com Pécora, "a via tumultuosa que conduz ao sagrado, ou se confunde com ele". A transgressão no sexo introduz a dimensão do sagrado. Guardei também um terceiro aspecto, relacionado com a construção do verso longo de Piva. Além de fornecer o suporte de uma escrita em que o fluxo de imagens encadeadas é o principal mecanismo, o verso longo nos dá uma informação sobre a inflexão, o tom, a postação de uma voz transgressora: a utilização de "ritmos exaltatórios e declamativos" indicam celebração, conclamação, um gesto específico dentro do gesto de ruptura.

 

Há mais no texto de Pécora: o surrealismo de Piva, para ele, não deve ser considerado como ausência de sentido, mas suspensão de um sentido corrente, usual, como meio de acesso a uma outra forma de inteligibilidade. Se bem que o surrealismo nunca tenha apregoado o puro cancelamento do sentido, mas a instauração de um regime de suspensão dos aparelhos de controle do sujeito, um estado de exceção "às avessas" da consciência, que permitisse, ao contrário, o livre trânsito de um sentido não domesticado. Daí a figuratividade, o liame do discurso que nunca deixa de permear a "escrita automática".

 

Em linhas muito gerais, Pécora concorda com Willer. Para o último, Piva faz de sua filiação à linhagem maldita que arregimenta desde Catulo até Sade, de Rimbaud a Lautréamont, um ato definidor de sua poética. Tanto que podemos antever na abundância das referências literárias o "leitor insaciável" de que fala Willer, e também é muito evidente a forma como os autores convertem-se em "argumentos" na batalha contra as irradiações mundo burguês — o lugar da própria literatura como resistência está definitivamente assinalado. Além de munição, no entanto, a literatura fornece matéria de mais literatura, há "veterinários" que lêem Dom Casmurro, há escritores como Lorca no escritório dentário, ou seja, uma presença não meramente erudita das referências eruditas, mas um aproveitamento argumentativo e o registro de uma relação pessoal com o universo literário. Willer detecta o Piva "precursor de si mesmo" na Ode a Fernando Pessoa, identifica a assimilação da escrita beat, sobretudo de Guinsberg, em Paranóia, verifica a emergência de uma "escala de valores literários" nos manifestos d’Os que viram a carcaça, em que vê também um traço de "carnavalização" no uso irreverente da sátira e da paródia, na "dessacralização" das imagens pela via da subversão de hierarquias convencionais ("Abaixo as Faculdades e que triunfem os maconheiros").

 

Os textos de Pécora e Willer partilham pressupostos, a transgressão como um valor, a força dessa poética da transgressão como resultado da sua intransigente filiação a uma liberdade vocabular e formal, o jogo de extremos como mecânica imagética poderosa, a suspensão da lógica corrente como instauração do espaço de uma indisciplina que se manifesta na amplitude e na força subversiva das imagens, das associações, das "analogias". Para Pécora, uma escrita libertina comprometida com a acusação das interdições e com o seu enfrentamento, para Willer uma rebeldia solidamente construída nas referências eruditas, mas que transborda do estritamente literário e alcança uma dimensão quase existencial, cristalizando uma tomada de partido contra a própria dicotomia entre real e simbólico. Transgressão e rebeldia, com efeito, são os termos em que o próprio Piva coloca sua missão literária. Em Ode a Fernando Pessoa, Piva conduz o poeta português por um Brasil que é o "adolescente moreno empinando papagaios na América". Essa viagem tem algo do ritmo prosódico de um Macunaíma, na passagem do Amazonas ao Corcovado, na descrição de aventuras banais como "beber vinho e comer pizza no Lucas, para depois vomitarmos tudo em cima da ponte"; e produz imagens totais, sínteses de um sentimento que se enuncia e se autoriza como transgressão, especialmente em face de um ambiente designado como provinciano e conservador, como a São Paulo da paranóia de Piva: "Ó maior parque industrial do Brasil, quando limparei minha bunda em ti?". O Piva precursor de si se anuncia, neste primeiro poema do conjunto, como projeto já definido de rebelde: "Sei que não há horizontes para minha inquietação sem nexo".

 

O curioso, nesse sentido, é que os pressupostos críticos coincidem com os pressupostos enunciados, explícitos, da própria atitude poética que se converte ela mesma em tema. Ao comentar o livro Paranóia, Willer aponta-lhe a ausência de qualquer "restrição lógica ou vocabular", e também a ocorrência de um "acerto de contas com a própria linguagem", como etapa preliminar do enfrentamento da ordem estabelecida. No entanto, os poemas exibem regularidades próprias, imagens que se repetem e se desdobram, que, por assim dizer, "evoluem" com uma dinâmica específica. A constatação de que não estão dados limites vocabulares ou lógicos não ilumina a compreensão das regularidades, encadeamentos, repetições ou mesmo de certas obsessões. A profusão de "adolescentes", "meninos", "anjos", indica, além de um pendor para contornos clássicos, para a figuração abstrata e quiçá moralmente apolínea da liberdade juvenil, uma disciplina nada frouxa na composição imagética; quem sabe as repetições não são o índice de um logos muito coerente com seus pressupostos críticos, colocado para funcionar em torno de alguns núcleos fundamentais de sentido.

 

Assim, há "anjos em cólera", "anjos de pijama", "cílios do anjo verde", "anjos surdos", "anjo de fogo", "anjos engraxates", até os famosos "anjos de Rilke dando o cu nos mictórios" (Em Poema Antropófago sob Narcóticos). Há "adolescentes roucos enlouquecidos na primeira infância", "meninos abandonados nus nas esquinas", "arcanjos de enxofre", "crianças brincando na tarde de esterco", "anjos da morte chupando sorvete". E chega-se a uma confissão bastante significativa da gravidade estética desses anjos-meninos-adolescentes desamparados da ordem e da disciplina: "Eu queria ser um anjo de Piero della Francesca" (em Stenamina boat). Ora, o que se instaura é, portanto, outra disciplina, destinada a uma transcendência para o sagrado, em algum sentido, mas de qualquer forma uma transcendência, uma ascese que resulta em elevação da expressão poética. Daí que a atitude transgressora, ao associar os anjos de Rilke aos mictórios, não os degrada, mas antes eleva o mictório, eleva o baixo, o vômito, a malha, os cantos escuros e licenciosos dos parques e praças em que o poeta vagueia na companhia de Mário de Andrade.

 

A apropriação desses lugares, desse espaço proscrito, dá-se por meio de sua elevação em outra escala de valores, por meio da ascese romântica que os mitologiza. Não por acaso, "há uma epopéia nas roupas penduradas contra / o céu cinza". E não é qualquer baixeza que se habilita à elevação —  o vulgar em Piva não é completamente vulgar. Possui de antemão um salvo-conduto que o permite transitar do escatológico para o místico: "onde borboletas de zinco devoram as góticas hemorróidas das beatas", "bacharéis praticam sexo com liquidificadores como os pederastas cuja santidade confunde os zombeteiros", "beija-flores aquáticos com penas canibais & ânus de pérola avançam ao mesmo tempo em que minhas tristes palpitações". As hemorróidas, os bacharéis, os pederastas, os mictórios, as latrinas, os cus sangrentos, e mesmo os lugares específicos, as ruas e praças nomeadas, funcionam como veios imagéticos cuja abstração não os deixa tombar pra valer no chão do vulgar. A epopéia desses grandes elementos, orquestrada por uma imaginação veloz, é um espetáculo de grandeza, quase sublime. O humor, a ironia crítica, são subprodutos de um jogo de associações entre elementos líricos, eruditos, clássicos e signos de uma queda que, embora anunciada com agressividade declamatória, e em parte por isso mesmo, no fundo é ascensão. Os efeitos de humor se devem às associações que incorporam emanações mais singelas ou subjetivas, não vulgares, mas apenas estranhas à altissonante entonação mais geral: "psicanalistas espetando meu pobre / esqueleto em férias".

 

A amostra de fortuna crítica que acompanha o volume apenas tangencia essa hierarquização que constituiu uma passagem subterrânea na poesia de Piva. Pécora notara a presença dos ritmos exaltatórios e o sexo como acesso ao sagrado, e Willer argumenta que em Piva "tanto estão presentes o escatológico, o pornográfico e grotesco quanto, até em maior grau, o lírico e apaixonado, o sublime e maravilhoso. Talvez incomode por desconhecer fronteiras e convenções, ao operar em todas essas dimensões e registros" (grifado). Minha impressão é que a preponderância do tom sublime sobre o tom baixo não é uma diferença de grau, como sustenta Willer, mas uma relação de força, em que o movimento ascendente domina as imagens, contamina a baixeza que está sujeita à disciplina militar da batalha apocalíptica contra a razão burguesa. Não raro, o procedimento sobe à tona da própria imagem. No manifesto A Máquina de matar o tempo, lemos: "Olhai o cintilante conteúdo das latrinas". A construção da frase quase inverte o sentido da ordem, e para ver esse conteúdo abstrato, cintilante, da antiquária "latrina", parece ser necessário olhar para cima.

 

Nesse sentido, a freqüência com que as referências a escritores comparecem pode ser vista como parte desse movimento geral de ascensão da expressão. Afinal, o confronto político, o ataque aos valores basilares da civilização burguesa, não nomeia atores sociais e situações concretas de opressão, mas categorias de profissionais liberais, de funcionários, tipos urbanos, ou seja, figuras abstratas que dançam como fantasmas sem expressão facial num balé de imagens extravagantes e vigorosas. A presença de nomes de escritores denota o "estado de arte" da leitura, dá pistas dos modelos empregados, metabolizados, digeridos, e, acima de tudo, mostra a escolha política, demarca o campo de atuação e confronto. Raramente uma imagem alude a situações sociais mais concretas. Um bom exemplo está no Poema Lacrado: "ó delírio das negras à saída das / prisões!". No mais das vezes, é através da literatura, de seu repertório culto, que se estabelecem os termos do conflito (cf. Piazza I, entre outros).

 

Isso provavelmente é uma característica da epistemologia mais geral que Willer identifica como sendo o cerne do conceito de "analogia", tal como o estabelece Octavio Paz. A rebelião contra "os labirintos e nervuras do penico estreito da Lógica" se dá numa camada mais abstrata, em que as coisas podem se aproximar e se repelir mutuamente sem muito atrito, compondo as imagens no choque de elementos o mais distantes possível. Daí certo exagero de Willer em defender que "diante da fúria iconoclasta de Piva, o que Mário de Andrade escreveu é tímido e recatado". Para Willer, "Piva moderniza o nosso modernismo", ao acrescentar-lhe a "dimensão da rebelião". São esferas diferentes. Mário não respira o ar rarefeito em que Piva rege suas epopéias alucinadas. Se nisso há uma perda, deve haver algum ganho. O limite do conflito político, da "rebelião" em Mário, é tanto o da invenção formal, da experimentação do verso, quanto o da nomeação dos "de baixo", do mapeamento da geografia humana que aparece com traços bastante definidos como no andar pouco marcial do Cabo Machado.

 

Essa é a perda do movimento ascensional de Piva. Sua rebelião não registra o pequeno, o singular, não nomeia o concreto. Resolve-se ela também nos próprios termos em que se anuncia e se celebra. Como se vê, nada fora do esquematismo obstinado que é exatamente de onde ela, segundo Pécora, retira a força que lhe é própria. Ao leitor cabe avaliar o quanto essa promessa de rebelião efetivamente se cumpre. Para além dela, esse primeiro volume das obras reunidas de Piva põe em relevo uma poesia de vibração singular, de intensidade que apenas a relação autêntica e visceral com a literatura produz. Boa demonstração dessa intensidade é o lirismo extremamente musical que algumas das imagens mais vigorosas de Piva comporta, como em Uma aurora latente: "teu olhar / navegando o cristal das pequenas unhas / no túnel do meu coração perdido para sempre".

 

 
 
outubro, 2005
 
 
 
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Um estrangeiro na legião. Roberto Piva. Organização  e prefácio de Alcir Pécora.
Posfácio de Claudio Willer. São Paulo: Editora Globo, 2005.
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Ricardo Rizzo nasceu em Juiz de Fora (Minas Gerais), no dia 3 de agosto de 1981. Em 2002, publicou o livro Cavalo Marinho e outros poemas (São Paulo: Editora Nankin; Juiz de Fora: Funalfa Edições). Colaborou com poemas, ensaio e tradução em algumas revistas de literatura, como Cacto (nos 2 e 3, São Paulo), Rodapé (no 3, São Paulo: Editora Nankin) e Rattapallax (no 10, Nova York). Formou-se em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora em 2004. No mesmo ano, foi vencedor do prêmio Cidade Belo Horizonte, na categoria poesia, com o livro ainda inédito Ao Sul da Esfera. É editor da revista de literatura Jandira (Juiz de Fora: Funalfa Edições, 2004-2005, números 1 e 2 — contato e pedidos: revistajandira@yahoo.com.br). Atualmente, é mestrando em Ciência Política na Universidade de São Paulo.
 
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