Fotógrafo não identificado | Roberto Piva na Fazenda Santa Terezinha |
Analândia (SP) |c. 1950/1951 | acervo do autor
 
 
 
 
 

 

Durante muito tempo, o poeta Roberto Piva (1937) foi considerado um banido na poesia moderna brasileira. Sabia-se da sua produção, da agitação que costumava fazer nas noites paulistanas, de seus versos ousados, mas quase ninguém ousava mencionar o seu nome — nem nas academias nem nos suplementos e revistas literárias. Até porque falar de sua poesia seria admitir escrever sobre situações que a homofobia condenava. E poucos estavam dispostos a correr esses riscos em público.

        

Mas nada como o tempo para relativizar as coisas. Hoje, já ninguém se preocupa muito com isso. E a importância de determinadas experiências poéticas começa a adquirir o peso que merece. É o caso da experiência concretista dos irmãos Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari, que, hoje, já sem o encanto dos anos 50 e 60, é vista mais como poesia mofada, anacrônica, que bem merece a definição de vanguarda velha que lhe pespegou o poeta Mário Chamie, o precursor Movimento da Poesia-Práxis, em conferência que fez na Academia Brasileira de Letras em 2004 e incluída em Escolas Literárias no Brasil, tomo II, de Ivan Junqueira (organizador).

 

Aliás, nessa conferência, Chamie acusa Augusto de Campos de, com o seu poema VIVA VAIA, de 1972, ter se inspirado numa idéia do artista plástico Dino. Quem vier a ler a acusação talvez não saiba quem seja esse Dino, mas, diga-se de passagem, esse era o nome artístico do desenhista Ascendino Andrade, já falecido, que, durante as décadas de 50 a 70, ilustrou com suas charges a página de editoriais do jornal A Tribuna, de Santos.

        

Como bom santista e leitor fiel de A Tribuna, onde trabalhei por quase dez anos, lembro-me muito bem de ter visto essa charge e de minha surpresa ao conhecer posteriormente o poema concreto de Augusto de Campos. É possível que duas pessoas tenham a mesma idéia numa mesma época, mas a escarrada semelhança era tanta que imaginar coincidência seria levar o sentimento da benevolência ao extremo.

        

Esse Dino não era nenhum revolucionário do traço, seu estilo era até mesmo irritantemente acadêmico, mas, às vezes, surpreendia com suas sacadas geniais, como a vez em que, no começo da década de 1970, desenhou Juan Domingo Perón apresentando sua mulher, Isabelita, como a melhor opção para a formação de sua chapa presidencial. À época, era uma piada, mas, pouco tempo depois, o velho caudilho saía candidato à presidência da República Argentina com Isabelita como vice. O desfecho trágico de tudo isso não é preciso aqui recordar...

        

Dino, com certeza, nunca seria lembrado — quem fizer uma pesquisa de seu nome na Internet não vai encontrar quase nenhuma referência —, se não tivesse Chamie, recentemente, acusado o VIVA VAIA, de Augusto de Campos, de constituir "cópia explícita" do seu VIVA VAIA, de 1968. Àquela época, levantar essa acusação seria bradar no deserto porque ninguém ousaria imaginar que um dos corifeus do Movimento Concretista poderia chegar a tanto. Mas, agora, já sem as circunstâncias do momento, a avaliação é outra.

        

A idéia serve também para recuperar a importância de Roberto Piva. Como Mário Chamie, Piva, embora fizesse uma poesia bem diferente, também sofreu com a ditadura da vanguarda velha do Movimento Concretista que queria fazer todo mundo acreditar que o verso estava morto. E, se o verso estava morto, aqueles que insistiam em remar contra a maré, só podiam ser cadáveres insepultos. Não foi assim que se deu. Porque o verso permaneceu e, se algo daquela época hoje está confinado em museu, é a poesia concretista, que já não seduz o leitor destes tempos internetianos.

        

Dentro desse trabalho de resgate da memória da poesia brasileira da última metade do século XX, que nasce de maneira espontânea, insere-se o livro Um estrangeiro na legião, de Roberto Piva, autor que, pela primeira vez em mais de quatro décadas, tem a sua produção integralmente reunida e posta em circulação. Com vários títulos esgotados há muito tempo e de circulação restrita a iniciados à época de sua publicação, Piva é um autor que resistiu ao tempo, pois sua poesia permanece atual, sem nada dever ao que de melhor se faz hoje em dia.

        

Um estrangeiro na legião, que, por sinal, é um título muito bem escolhido, pois define de modo preciso o que foi sua trajetória poética, engloba a produção inicial de Piva, compreendendo os seus dois primeiros livros — Paranóia, de 1963, e Piazzas, de 1964, ano fatídico na história brasileira, pois marca a instauração da ditadura militar, que durou até 1985 —, além de os Primeiros manifestos e do poema "Ode a Fernando Pessoa", publicado em 1961 sob a forma de plaquete e jamais recolhido em livro.

        

Como observa em nota de abertura o organizador do livro, Alcir Pécora, professor de Teoria Literária da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), nos poemas de Piva, "o leitor não dispõe de lugares comuns ou empregos lingüísticos que imediatamente habilitem estratégias de legibilidade". Obra intrincada e extremamente rica em seu diálogo não só com as literaturas brasileira e portuguesa, mas mundial, a produção de Piva, segundo o organizador, deverá abarcar a publicação de três volumes: um para o primeiro período, que homenageia Fernando Pessoa, Walt Whitman e a geração beat; outro para o segundo, de traços psicodélicos e experimentais; e um terceiro, para um período mais recente, predominantemente místico e visionário.

        

Já Claudio Willer, companheiro de geração e de itinerário poético de Piva, traça, num extenso e bem fundamentado posfácio, a trajetória do poeta, mostrando-o como um jovem, por volta de 1960, extremamente culto e leitor insaciável, que procurava contestar o que chamavam de "burguesia" e seus fundamentos — "o cristianismo, o racionalismo cartesiano, a instituição da família, a ideologia do trabalho".

        

Para Willer, o motivo imediato para que as elites culturais brasileiras esfriassem seu relacionamento com Piva foi sua liberdade vocabular. "Mas, se não houvesse um único palavrão ou blasfêmia em Paranóia, também não teriam entendido nada", diz, lembrando que "o obstáculo não residia apenas na agressividade, mas no caráter não-discursivo e na densidade, e em não se situar ou enquadrar em nenhuma das correntes ao longo das quais se distribuiu a poesia brasileira na segunda metade do século XX: geração de 45, poesia concreta, poesia engajada, marginal etc".

 

Para Willer, a poesia de Piva move-se em duas direções: "tanto estão presentes o escatológico, o pornográfico, o grotesco, quanto, até em maior grau, o lírico e apaixonado, o sublime e maravilhoso". Esse Piva iconoclasta, aliás, já estava inteiro em "Ode a Fernando Pessoa", de 1961, quando dizia:

 

            (...) São Paulo, cidade minha, até quando serás o convento do Brasil?

            Até teus comunistas são mais puritanos do que padres.

            Pardos burocratas de São Paulo, vamos fugir para as praias?

            Ó cidade de sempiternas mesmices, quando te racharás ao meio?

            Quero cuspir no olho do teu Governador e queimar os troncos medrosos da floresta humana.

            Ó Faculdade de Direito, antro de cavalgaduras eloqüentes da masturbação transferida!

            Ó mocidade sufocada nas Igrejas, vamos ao ar  puro das manhãs de setembro!

            Ó maior parque industrial do Brasil, quando limparei minha bunda em ti? (...)

      

Se, como diz Willer, ensaios sobre poetas não precisam ser biográficos porque o que interessa é o que escreveram, eis aqui uma boa amostra da poesia do rebelde Piva que vale por mil palavras.

 

 
 
outubro, 2005
 
 
 
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Um estrangeiro na legião. Roberto Piva. Organização  e prefácio de Alcir Pécora.
Posfácio de Claudio Willer. São Paulo: Editora Globo, 2005.
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Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo. Autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage — o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003).  Mais em seus  blogues (aqui e aqui) e em Letras.
 
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