Durante
muito tempo, o poeta Roberto Piva (1937) foi considerado um banido na
poesia moderna brasileira. Sabia-se da sua produção, da agitação que
costumava fazer nas noites paulistanas, de seus versos ousados, mas
quase ninguém ousava mencionar o seu nome — nem nas academias nem nos
suplementos e revistas literárias. Até porque falar de sua poesia seria
admitir escrever sobre situações que a homofobia condenava. E poucos
estavam dispostos a correr esses riscos em
público.
Mas
nada como o tempo para relativizar as coisas. Hoje, já ninguém se
preocupa muito com isso. E a importância de determinadas experiências
poéticas começa a adquirir o peso que merece. É o caso da experiência
concretista dos irmãos Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari,
que, hoje, já sem o encanto dos anos 50 e 60, é vista mais como poesia
mofada, anacrônica, que bem merece a definição de vanguarda velha que
lhe pespegou o poeta Mário Chamie, o precursor Movimento da
Poesia-Práxis, em conferência que fez na Academia Brasileira de Letras
em 2004 e incluída em Escolas Literárias no Brasil, tomo II, de
Ivan Junqueira (organizador).
Aliás,
nessa conferência, Chamie acusa Augusto de Campos de, com o seu poema
VIVA VAIA, de 1972, ter se inspirado numa idéia do artista plástico
Dino. Quem vier a ler a acusação talvez não saiba quem seja esse Dino,
mas, diga-se de passagem, esse era o nome artístico do desenhista
Ascendino Andrade, já falecido, que, durante as décadas de 50 a 70,
ilustrou com suas charges a página de editoriais do jornal A
Tribuna, de Santos.
Como
bom santista e leitor fiel de A Tribuna, onde trabalhei por quase
dez anos, lembro-me muito bem de ter visto essa charge e de minha
surpresa ao conhecer posteriormente o poema concreto de Augusto de
Campos. É possível que duas pessoas tenham a mesma idéia numa mesma
época, mas a escarrada semelhança era tanta que imaginar coincidência
seria levar o sentimento da benevolência ao extremo.
Esse
Dino não era nenhum revolucionário do traço, seu estilo era até mesmo
irritantemente acadêmico, mas, às vezes, surpreendia com suas sacadas
geniais, como a vez em que, no começo da década de 1970, desenhou Juan
Domingo Perón apresentando sua mulher, Isabelita, como a melhor opção
para a formação de sua chapa presidencial. À época, era uma piada, mas,
pouco tempo depois, o velho caudilho saía candidato à presidência da
República Argentina com Isabelita como vice. O desfecho trágico de tudo
isso não é preciso aqui recordar...
Dino,
com certeza, nunca seria lembrado — quem fizer uma pesquisa de seu nome
na Internet não vai encontrar quase nenhuma referência —, se não tivesse
Chamie, recentemente, acusado o VIVA VAIA, de Augusto de Campos, de
constituir "cópia explícita" do seu VIVA VAIA, de 1968. Àquela época,
levantar essa acusação seria bradar no deserto porque ninguém ousaria
imaginar que um dos corifeus do Movimento Concretista poderia chegar a
tanto. Mas, agora, já sem as circunstâncias do momento, a avaliação é
outra.
A
idéia serve também para recuperar a importância de Roberto Piva. Como
Mário Chamie, Piva, embora fizesse uma poesia bem diferente, também
sofreu com a ditadura da vanguarda velha do Movimento Concretista que
queria fazer todo mundo acreditar que o verso estava morto. E, se o
verso estava morto, aqueles que insistiam em remar contra a maré, só
podiam ser cadáveres insepultos. Não foi assim que se deu. Porque o
verso permaneceu e, se algo daquela época hoje está confinado em museu,
é a poesia concretista, que já não seduz o leitor destes tempos
internetianos.
Dentro
desse trabalho de resgate da memória da poesia brasileira da última
metade do século XX, que nasce de maneira espontânea, insere-se o livro
Um estrangeiro na legião, de Roberto Piva, autor que, pela
primeira vez em mais de quatro décadas, tem a sua produção integralmente
reunida e posta em circulação. Com vários títulos esgotados há muito
tempo e de circulação restrita a iniciados à época de sua publicação,
Piva é um autor que resistiu ao tempo, pois sua poesia permanece atual,
sem nada dever ao que de melhor se faz hoje em
dia.
Um
estrangeiro na legião, que, por sinal, é um título muito bem
escolhido, pois define de modo preciso o que foi sua trajetória poética,
engloba a produção inicial de Piva, compreendendo os seus dois primeiros
livros — Paranóia, de 1963, e Piazzas, de 1964, ano
fatídico na história brasileira, pois marca a instauração da ditadura
militar, que durou até 1985 —, além de os Primeiros manifestos e
do poema "Ode a Fernando Pessoa", publicado em 1961 sob a forma de
plaquete e jamais recolhido em livro.
Como
observa em nota de abertura o organizador do livro, Alcir Pécora,
professor de Teoria Literária da Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp), nos poemas de Piva, "o leitor não dispõe de lugares comuns ou
empregos lingüísticos que imediatamente habilitem estratégias de
legibilidade". Obra intrincada e extremamente rica em seu diálogo não só
com as literaturas brasileira e portuguesa, mas mundial, a produção de
Piva, segundo o organizador, deverá abarcar a publicação de três
volumes: um para o primeiro período, que homenageia Fernando Pessoa,
Walt Whitman e a geração beat; outro para o segundo, de traços
psicodélicos e experimentais; e um terceiro, para um período mais
recente, predominantemente místico e visionário.
Já
Claudio Willer, companheiro de geração e de itinerário poético de Piva,
traça, num extenso e bem fundamentado posfácio, a trajetória do poeta,
mostrando-o como um jovem, por volta de 1960, extremamente culto e
leitor insaciável, que procurava contestar o que chamavam de "burguesia"
e seus fundamentos — "o cristianismo, o racionalismo cartesiano, a
instituição da família, a ideologia do trabalho".
Para
Willer, o motivo imediato para que as elites culturais brasileiras
esfriassem seu relacionamento com Piva foi sua liberdade vocabular.
"Mas, se não houvesse um único palavrão ou blasfêmia em Paranóia,
também não teriam entendido nada", diz, lembrando que "o obstáculo não
residia apenas na agressividade, mas no caráter não-discursivo e na
densidade, e em não se situar ou enquadrar em nenhuma das correntes ao
longo das quais se distribuiu a poesia brasileira na segunda metade do
século XX: geração de 45, poesia concreta, poesia engajada, marginal
etc".
Para
Willer, a poesia de Piva move-se em duas direções: "tanto estão
presentes o escatológico, o pornográfico, o grotesco, quanto, até em
maior grau, o lírico e apaixonado, o sublime e maravilhoso". Esse Piva
iconoclasta, aliás, já estava inteiro em "Ode a Fernando Pessoa", de
1961, quando dizia:
(...) São Paulo, cidade minha, até quando serás o
convento do Brasil?
Até teus comunistas são mais puritanos do que
padres.
Pardos burocratas de São Paulo, vamos fugir para as
praias?
Ó cidade de sempiternas mesmices, quando te racharás ao
meio?
Quero cuspir no olho do teu Governador e queimar os troncos
medrosos da floresta humana.
Ó Faculdade de Direito, antro de cavalgaduras eloqüentes da
masturbação transferida!
Ó mocidade sufocada nas Igrejas, vamos ao ar puro das manhãs de
setembro!
Ó maior parque industrial do Brasil, quando limparei minha
bunda em ti? (...)
Se,
como diz Willer, ensaios sobre poetas não precisam ser biográficos
porque o que interessa é o que escreveram, eis aqui uma boa amostra da
poesia do rebelde Piva que vale por mil palavras.