©Koo Jeo Ng-A & Ivon Lambert, Paris
 
 
 
 
 
 

 

1.            

A história pessoal do poeta Roberto Piva começa e gira em torno da cidade de São Paulo.

Ele cresceu e formou-se entre a capital e as antigas fazendas do pai,

no interior do Estado de São Paulo. Seus primeiros poemas

foram publicados em 1961, quando tinha

23 anos.

Nessa mesma época, integrou a famosa Antologia dos Novíssimos, de Massao Ohno, na qual se lançaram vários poetas brasileiros iniciantes,

que depois desenvolveram uma obra poética de importância.

Piva formou-se em sociologia.

Sobreviveu em grande parte como professor de estudos sociais e história.

Em suas aulas aos adolescentes do segundo grau, costumava trabalhar

as matérias a partir de poemas que os fazia

ler e interpretar.

Foi um professor de muito sucesso,

com rara vocação como pedagogo. Nos anos de 1970, tornou-se

produtor de shows de rock. Piva mora em São Paulo,

cidade que lhe parece apocalíptica, exemplo do que não deve ser feito contra

o meio ambiente,

mas que forneceu todo o pano de fundo para sua obra poética. Tem medo de avião.

Por isso, raramente se distanciou  demais da capital,

de onde foge sempre que pode, de ônibus ou carro,

sobretudo para o litoral sul do estado de São Paulo,  refugiando-se em casa de amigos na Ilha Comprida ou em pensões baratas de Iguape.

É lá que realiza seus rituais xamânicos e entra em contato com seu animal xamânico,

o gavião.

 

2.

A genealogia poética de Roberto Piva

apresenta raízes e inclui influências muito raras na literatura brasileira, formando uma mistura-fina que é única por sua

erudição,

mas também por sua

transgressão.

Começa com Dante Alighieri.

Ainda na década de 60, por três anos Piva aprofundou-se

nos estudos da Divina Comédia, orientado por Eduardo Bizzarri,

adido cultural do Consulado da Itália em São Paulo.

Esse contato com Dante foi como seu imprinting poético-filosófico:

marcou para sempre sua visão de mundo,

sua política e

sua poesia.

Ao conhecer os poetas metafísicos ingleses, sobretudo William Blake, 

Piva começou a aprofundar sua experiência mais direta

com o sagrado e a vida interior.

A entrada em cena de Hölderlin e dos poetas expressionistas alemães Gottfried Benn e Georg Trakl

temperaram essa experiência com uma ponta de

pessimismo,

que deixou de ser circunstancial quando,

ainda na década de 60,

Roberto Piva teve contato com a obra de um filósofo praticamente desconhecido,  no Brasil do período:

Friedrich Nietzsche.

À experiência juvenil de Piva agregou-se a contundência desse profeta pessimista

e decifrador da alma moderna.

Mas nem só de espírito, nem só de intelecto fez-se o  aprendizado juvenil de Roberto Piva,

que cedo descobriu Rimbaud e Lautréamont,

recebendo a influência desses dois poetas

visionários,

que extrapolam os limites da expressão racional e das escolas literárias.

A partir daí iniciou-se em sua vida

o cultivo do rimbaudiano "desregramento de todos os sentidos"

para se chegar à poesia.

Das vanguardas do começo do século 20,

Roberto Piva absorveu lições do surrealismo, na vertente francesa de

André Breton,

Antonin Artaud e

René Crevel.

É um dos três únicos poetas brasileiros a constar no

famoso Dicionário Geral do Surrealismo, publicado na França.

A partir de Artaud, 

Piva incorporou a idéia de que existe um compromisso absoluto entre

poesia e vida.

O dito artaudiano "para conhecer minha obra, leia-se minha vida"

teve em Piva a contrapartida:

"só acredito em  poeta experimental que tem vida experimental".

Também é flagrante em sua poesia

a influência dos futuristas italianos

(com seu culto à fragmentação moderna),

acrescida de algumas expressões musicais

da contemporaneidade do pós-guerra, através da onipresente marca

do jazz e da bossa nova, duas fidelíssimas paixões de

Roberto Piva. 

Mas há mais duas fortes presenças contemporâneas

em sua poética.

Uma é a beat generation americana,

da qual Piva não só absorveu a estilística fragmentada

e a temática que aproxima o  contemporâneo do arcaico, mas através da qual  também sedimentou a orientação basicamente transgressiva

dos costumes do seu tempo.

Na década de 70, a transgressão foi reforçada pela descoberta do outsider 

Pier Paolo Pasolini,

protótipo do intelectual-profeta que caminha nas frinchas do

paradoxo.

Dos poetas brasileiros, essa genealogia poética agregou as figuras de

Murilo Mendes  — com seu surrealismo intenso, expontâneo e sensorial, ao contrário dos franceses intelectualizados —

e Jorge de Lima, sobretudo aquele barroco, visionário e atormentado de "Invenção de Orfeu".

Os elementos finais da construção  poética de Roberto Piva evidenciam

uma substancial ligação com o

aspecto mágico.

Suas constantes caminhadas xamânicas

pela represa de Mairiporã  e serra da Cantareira, ambas nos arredores de São Paulo,

além de Jarinu, no interior do estado,

selaram sua ligação sagrada com a

natureza.

Essa sacralidade é, para Piva, a única salvação possível ao mundo moderno, que colocou a destruição da natureza

como parte do seu

projeto consumista.

No quadro da recuperação do sagrado e do mágico,

enquanto forças da natureza,

Piva passou a estudar e praticar o

xamanismo.

Para aprender o culto ao primitivo e às forças da natureza,

foi buscar elementos não apenas em teóricos como Mircea Eliade,

mas sobretudo nas

culturas indígenas brasileiras e

na prática do candomblé. Ele não só cultua seus orixás

(Xangô,

Yemanjá e

Oxum) 

mas também

toca tambor

para invocar

seu animal

xamânico,

o gavião.

Paralelamente a essa trajetória em direção ao

sagrado,

Piva agregou dois elementos ligados à civilização grega. Um:

a ingestão de drogas alucinógenas e bebidas libatórias, como formas de atualizar

a tradição dionisíaca e a transgressão sagrada do paganismo. Dois:

o culto a uma erótica homossexual, resgatando para a modernidade

o amor grego,

como um componente de transgressão

do desejo. 

Tome-se, como referência, seu "Poema XIV", de 20 Poemas com Brócoli, dedicado ao Carlinhos:

"vou moer teu cérebro. vou retalhar tuas

                 coxas imberbes & brancas.

              vou dilapidar a riqueza de tua

                  adolescência. vou queimar teus

                  olhos com ferro em brasa.

                   vou incinerar teu coração de carne &

                          de tuas cinzas vou fabricar a

                          substância enlouquecida das

                                   cartas de amor."1

 

3.

Os traços mais presentes na obra de Roberto Piva

giram em torno dessas influências

ou ao menos partem

delas.

Trata-se, antes de tudo, de uma

poética de transgressão:

na abordagem, na temática e na quebra de fronteiras entre os contrários. Portanto, uma transgressão que desemboca

no paradoxo — por exemplo, entre carne & espírito, vida & obra, contemporâneo & arcaico. 

Sua expressão poética  persegue o rastilho

da escrita automática de extração surrealista: recuperar para a poesia

os estados primitivos do sonho e da loucura. 

No caso de Roberto Piva, talvez fosse mais adequado falar em

escrita delirante.

Essa prática levou, também no caso do poeta brasileiro, à utilização do método da

livre associação de idéias, a partir da crença na importância poética do inconsciente.

Resultado: metáforas explosivas que Roberto Piva articula com estonteante propriedade. Do seu poema 

"A vida me carrega no ar como um gigantesco abutre", veja-se o final delirante:

"minha dor é um anjo ferido

   de morte

você é um pequeno deus verde

   & rigoroso

horários de morte cidades cemitérios

   a morte é a ordem do dia

a noite vem raptar o que

   sobra de um soluço".2

Ou, no início do seu "Poema VII" de 20 Poemas com brócoli,

note-se a homenagem embutida numa metáfora explosiva,

que mistura elementos de sensualidade contraditória:

    "mestre Murilo Mendes tua poesia são

os sapatos de abóboras que eu calço

nestes dias de verão."3

Outro traço marcante na obra de Roberto Piva

é o total desmantelamento da versificação métrica, influência modernista que,

no seu caso, caotiza-se,

na tentativa de transpor para a poética escrita

o ritmo sincopado do jazz e a respiração do músico de jazz.

A  rítmica

entrecortada, a batida

imprevista e

a respiração

irregular,

com notas se sucedendo lânguidas,

são traduzidas inclusive numa distribuição desordenada dos versos no espaço da página.

Veja-se como o poema dança, neste seu "O Robot Pederasta":

         "Não vale

                 sair

        com asas

                onde

o cra        cra        cra        cra         cra        cra         cra

     cra        cra        cra           cra         cra           cra 

se amassava

                 nas

                velas apagadas

                         quem

                              quer

                                  o telhado

                           de lágrimas?

                  beberei veneno

                           contra

                                    teu temperamento

                          alegria que se

                                     espera

                        raio X de gente que

                                desce do alto

                      porta acesa

                       olhar inchado no escuro

Signorine, la danza della Morte è servita

                                algumas ficaram

                                        LOUCAS"4                                       

Depois, veio a influência do cinema. Trata-se de

uma obra pontuada por cortes cinematográficos que remetem

ao cinema

experimental, 

com passagens abruptas de espaço, tempo e imagética. Confira-se neste "Ganimedes 76":

"Teu sorriso

olhinhos como margaridas negras

meu amor navegando na tarde

batidas de pêssego refletindo em teus olhinhos de

         fuligem

cabelos ouriçados como um pequeno deus de um salão

         rococó

força de um corpo frágil como âncoras

gostei de você eu também

amanhã então às 7

amanhã às 7

tudo começa agora num ritual lento & cercados de

        gardênias de pano

Teu olhar maluco atravessa os relógios as fontes a tarde

        de São Paulo como um desejo espetacular tão

        dopado de coragem

marfim de teu sorriso nascosto fra orizzonti perduti

assim te quero: anjo ardente no abraço da Paisagem"5

No geral, temos uma temática muito diversificada, que parte do urbano e quotidiano,

passando pelo erótico e carnal,

até atingir o metafísico e o

sagrado. Confira-se neste trecho do seu "Beija-flor badulaque":

"nus & feéricos/ olho no gatilho meia-lua/ nado esta

manhã a favor da correnteza/ à deriva/ no miolo do

furacão/ eu era uma Sibila entre os gonzos da lingua-

gem/ Samba-Vírus/ exus nanicos carregando cabaças

de pedra da lua no portal do meu ouvido/ cruzamento

das Avenidas Assassinato & 69/ garoto-pombinha no

balcão da lanchonete/ esperando o pernilongo da Mor-

te/ estrelas rachadas gotejam leite dos deuses/ é com  

este que eu vou sambar até a Pradaria -Kamikase/ no

trecho Belém-Brasília da Teogonia"6

 

4.

O resultado geral é uma expressão poética frag-

mentada,

que resume exemplarmente 

as soluções expressivas, as inquietações e encruzilhadas da contemporaneidade. Assim, Roberto Piva inaugurou 

traços singulares no  contexto poético brasileiro, que fazem de

sua obra

uma das mais originais e inovadoras dentro da poesia brasileira contemporânea. Como sempre esteve eqüidistante

das escolas conhecidas, pode-se dizer que ele é sua própria

escola.

Roberto Piva persegue e vive o ideal

do poeta-profeta,

como menciona em seu "Poema Vertigem":

"Eu sou uma metralhadora em

             estado de Graça

Eu sou a pomba-gira do Absoluto".

No espelho da poesia, sua imagem é daquele que reflete, de modo nem sempre aceitável,

os paradoxos da contemporaneidade,

através dos seus próprios.

Define-se a si mesmo como um anarquista de direita. E, muito contemporaneamente,

ama as corridas de carros, ainda que criticando o culto à

tecnologia.

Com suas transgressões na vida e na poesia

— que formam um só organismo — Piva veio para

confundir.

Por ser incômodo, recebe mais pedras do que reconhecimento dos seus contemporâneos. Para não falar da conspiração de silêncio

da qual sua obra poética tem sido

vítima.

Como gente demais no Brasil não o conhece, encerro com mais um exemplo da sua contundência.  Saboreiem

este festival de musicalidade, ritmo e delírio expressivo em seu

"Piazza V",

um dos poemas mais emblemáticos da sua obra emblemática:

"Oswald Spengler tem uma

            porta no seu tornozelo

                & nuvens através dele

                        limpando a pele

             que projeta

                        um velho cachecol marrom

                                        em seu olho

eu penso

                        pelos seus

                                      líquidos compassos de sátiro

até

             um cenário de músculos

                                 impedido de esmagar

                                                 o carvão de

                                                                 vidro verde

                        que aquece

                                         a estrela nua de

                                                                 anteontem

Oswald Spengler tem uma porta no seu tornozelo

                                         batendo

                                                  até

                                            altas horas"7

 

 

 

 

 
[Ensaio publicado originalmente no livro Pedaço de mim (São Paulo: Editora Record, 2001),
aqui reproduzido com permissão do autor.]
 
 
 
 
outubro, 2005
 
 
 
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João Silvério Trevisan nasceu em 1944, na cidade de Ribeirão Bonito, São Paulo. É escritor de literatura ficcional e ensaística, dramaturgo, tradutor, jornalista, coordenador de oficinas literárias, roteirista e diretor de cinema. Estudou Filosofia. Recebeu inúmeros prêmios em teatro, cinema e literatura, dentre os quais o Jabuti (três vezes) e o da Associação Paulista de Críticos de Arte — APCA (duas vezes). Tem obras traduzidas para o inglês, o alemão e o espanhol. Escreve para jornais e revistas de todo o País e do exterior. Mais aqui.
 
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