©zorah milich
 
 
 
 
 
 
 
 

Como se sabe, tanto literatura como jornalismo se usam da palavra para dar corpo e sentido à uma determinada história ou fato, seja ela verídica, na situação jornalística, ou seja ela ficcional, quando tratamos do mundo literário. No entanto, como realmente definir o que é realidade do que é ficção? Até que ponto a ficção se restringe apenas à literatura? Será que ela não se apresenta também no universo diário do jornalismo?

Questões como essas podem parecer de fáceis respostas, já que, na maioria das ocasiões, a literatura se usa de casos, lugares e personagens de um mundo imaginário, claro, salvo diversas exceções baseadas em casos reais e em vivências dos próprios autores, mas sempre com uma pitada de ficção. Já quando tratamos de jornalismo pensamos justamente o oposto. Isso porque notícias e reportagens diárias, ou não, geralmente são construídas a partir de um fato real, de um espaço físico real e com pessoas que fazem parte desse contexto real, inclusive o jornalista que constrói a história. Porém, até que ponto a construção jornalística, ou a representação jornalística, não possui sua pitada de imaginação?

Vamos então a um exemplo. O jornalista está na redação de seu jornal quando é avisado de um assalto em um banco e em seguida designado para "cobri-lo", nos jargões da profissão. Chegando ao local ele apenas encontra a polícia, vítimas, possíveis testemunhas e os assaltantes já presos e isolados. Precisando escrever sua matéria, ele começa a ouvir os relatos dos presentes para montar o quebra-cabeça e levar a melhor versão e a mais imparcial possível ao jornal, sem debater o "mito da imparcialidade". Então ele ouve versões de clientes do banco que presenciaram o fato, funcionários do local que foram rendidos para que o crime fosse realizado, a polícia que prendeu os assaltantes e tenta, de maneira frustrada, ouvir os praticantes do crime evitado. Partindo desses relatos, e mesmo sem ter presenciado nenhum instante de êxtase do assalto, o jornalista volta à redação e munido de depoimentos vai escrever a matéria que estampará uma das páginas da edição do dia seguinte.

Já na redação e sentando em frente ao computador, ele descreve em sua narrativa como foi a ação dos ladrões, como foi a reação das vítimas presentes e na seqüência descreve também a rápida e eficaz ação dos policiais que prenderam os assaltantes e os levaram direto ao presídio da cidade. Pronto. Agora é só diagramar em uma das páginas destinadas à editoria de Polícia e ver a repercussão do dia seguinte. Pronto? Será? Talvez não.

Essas dúvidas aparecem quando analisado o trabalho do repórter. Como ele pôde descreve exatamente como o crime ocorreu se quando chegou ao local já havia um desfecho? Não pode. Mesmo tendo ouvido diversos relatos de diversas pessoas que estiveram presentes ao local e ter narrado os fatos da maneira mais fiel e imparcial possível, o jornalista teve que usar uma parcela de ficção/imaginação para remontar o momento do ocorrido, os fatos de maiores destaques e o fim da história.

Além disso, desde a coleta de informações começa a se construir um mundo imaginário que parte de uma história real e sua representação. Ao ouvir os depoimentos das pessoas presentes, geralmente o repórter deixa de levar em consideração os diferentes níveis intelectuais, as diferentes culturas e vivências de cada indivíduo que contribuiu à construção de sua matéria. Claro, talvez nem tenha como, ainda mais se tratando do estilo objetivo do "Novo Jornalismo". Algumas dessas pessoas darão maior ou menor ênfase a certos detalhes do crime, enquanto um outro percentual achará mais importante relatar outro momento, e, ainda um terceiro grupo, talvez relate fatos diferentes dos outros dois. E, para completar a parte direta da narração, já que depois aparecem os leitores que podem interpretar a notícia ainda de outros ângulos, existe a participação direta do jornalista, que com seu bloco de anotações em mão, ou de um gravador, destacará/julgará o que pare ele pareça ter maior expressão. Essa problemática é debatida por Nanami Sato (2002, p. 31), no artigo "Jornalismo, Literatura e representação":

 

Mesmo que se postule que a representação revela alguma coisa do real, é preciso ter em mente as condições em que ela emerge. Basta lembrar que o autor já carrega em si certos implícitos de representação; o resultado, a representação, constitui, portanto, uma criação destinada a um ou mais receptores. (SATO, in CASTRO e GALENO - org - , 2002, p. 31)

 

Para completar o raciocínio, Sato (2002, p. 31-32)) ainda aborda a questão da realidade e representação, além de debater também as fontes utilizadas pelo jornalista na construção da notícia:

 

Apesar da vocação para o "real", o relato jornalístico sempre tem contornos ficcionais: ao causar a impressão de que o acontecimento está se desenvolvendo no momento da leitura, valoriza-se o instante em que se vive, criando a aparência do acontecer em curso, isto é, uma ficção. Além disso, o jornalismo, produto industrial, precisa de esquemas para a captação de notícias, dos quais a fonte é uma das principais. As fontes podem construir posições estereotipadas; [...].

 

Então, primeiro o jornalista escolhe o que já foi crivado por diferentes grupos de pessoas que estiveram no local do crime, em seguida remonta um instante que não presenciou, narrando a ação de todos, a reação de todos e, como não poderia deixar de ser, os encaminhamentos finais da história. Para isso ele utiliza depoimentos com certas doses de ficção, além de ele próprio participar diretamente da reconstrução dos fatos. Ficção? Realidade? Pelo menos curioso e ambíguo. Para escrever sua história o jornalista teve como pressuposto uma história que realmente ocorreu, que foi real, mas para descrevê-la teve que recorrer a algumas ferramentas da literatura, literatura que geralmente faz o oposto, se inspirando em certo acontecimento real para em seguida descrever um mundo ficcional.

Este é um exemplo de que mesmo sendo distintos, jornalismo e literatura andam lado a lado e, conscientemente ou não, trocam ferramentas à construção de narrativas. O que faz parte da realidade e o que faz parte do imaginário? Depende de diversas situações e também dos autores, que podem, uns mais do que outros, usar pitadas maiores de ficção na construção de suas narrativas, sejam elas de cunho jornalístico ou sejam elas de caráter literário. Ao reproduzirem o "real" a posteriori, valendo-se da linguagem, ambas as formas narrativas são construções discursivas, que se diferenciam mais pela intenção do discurso do que pela sua própria natureza e colidirão num mesmo ponto: o leitor. Cabe a ele a tarefa final da reconstrução da coerência narrativa, podendo ocorrer ambigüidades e até mesmo inversões: que o texto jornalístico, objetivo e neutro, seja lido como pura ficção e imaginação e, por outro lado, que o texto literário artístico seja tomado como "verdade" absoluta.

        

 

Parentesco de mãos separadas

 

No entanto, mesmo com as trocas de ferramentas no momento das construções de narrativas, jornalismo e literatura conservam certo distanciamento. Ambas as áreas trabalham com a palavra, mas, geralmente, com intuitos e níveis de aprofundamento diferentes. Enquanto o jornalismo se apega a um assunto pronto, dado, e o reconstrói com certa dose de ficção e superficialidade, a literatura escolhe um tema e se aprofunda, viaja, elabora um mundo que será recriado de forma diferente por cada leitor da obra.

Esse mundo criado pela literatura se dá, em diversas oportunidades, através da inspiração em um fato da realidade, se parte de um pressuposto verdadeiro, com detalhes verídicos, personagens inspirados em pessoais reais. Entretanto, mesmo com cunho real, essas obras contam também com a imaginação do autor, o incremento de ficção em doses que somente o autor pode contar.

Como citado anteriormente, para a construção de uma matéria cotidiana o jornalista também lança mão de certa quantia de ficção, porém, somente a necessária para que sua história ganhe forma e chegue à mão do leitor. Mas como se pode garantir que o repórter tenha usado somente o necessário? Somente o jornalista poderá afirmá-lo. Entretanto, ao contrário da literatura, a partir do momento em que a dose de ficção aplicada pelo jornalista for além da conta, apenas uma certeza haverá, ele estará inventando fatos e, conseqüentemente, faltando com a verdade. Poderia então sua história ser considerada literatura? Não. Isso porque, a priori, os princípios e intuitos da matéria jornalística seriam atender a um tipo de demanda, e não deixar de faltar com a ética e "mentir" a um determinado público, já que seu texto vem imbuído deste pressuposto.

Sendo assim, sob o ponto de vista da ética, a literatura não é jornalismo, e muito menos jornalismo é literatura. Claro, não se pode negar que ambos se usam da palavra, sendo construções discursivas que trocam certas ferramentas e comportem certas estratégias narrativas, mas com propósitos diferentes e fronteiras, embora permeáveis às vezes, mas limitadas também. A literatura pode se usar de temáticas que envolvam fatos verídicos, esmiuçá-los e inventar, pela liberdade que a arte lhe confere, um novo modo de conceber certos fatos para, por meio destas estratégias, tentar repassar certas ideologias, princípios e fazer o leitor refletir sobre o tema. Tal fato ocorre com freqüência e é o cerne mesmo de todas as narrativas de extração histórica, como por exemplo, dos romances históricos, que recriam o passado pela paródia, a intertextualidade, entre outras estratégias. Já o jornalismo, incluindo o artigo, o ensaio, o editorial, se arquiteta sob um fato verídico e pronto, e tem como finalidade mostrar a verdade ao público, sem mais histórias, sem a invenção de qualquer fato, pois se isso ocorrer, deixará de ser considerado jornalismo, pelo menos sério. Parentes, então, jornalismo e literatura? Digamos que sim. De mãos dadas? Digamos que isso é pelo menos complicado.

 

 

Referências

 

 

 

 

setembro, 2007

 

 

 

Adriano Piekas (Chapecó-SC). Jornalista e pós-graduando em Letras.