©william medeiros
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Quem me conhece sabe que o "meu" poeta mineiro sempre foi Drummond. E isso vem de um tempo em que eu ainda sabia quase nada de poesia moderna. Portanto, foi uma preferência baseada fortemente na empatia com os poemas do Bruxo de Itabira. Menino do interior, eu acabara de chegar a Salvador para fazer o que então se chamava curso científico. Foi então que descobri a biblioteca do colégio e também a biblioteca pública da cidade. Comecei a me esbaldar na leitura de poetas dos quais nunca tinha ouvido falar.

 

Minha ignorância em relação aos poetas modernos era completa. No interior, o mundo da poesia centrava-se nos românticos (especialmente Castro Alves, filho da terra) e terminava no "príncipe" Olavo Bilac — aquele cujo nome completo formava um verso alexandrino perfeito, como repetia um professor de português. Nesse ambiente, eu aprendera até a metrificar, mas os ecos de 22 não haviam chegado por lá, mais de 40 anos depois.

 

Pois bem. Em Salvador, nas bibliotecas, comecei a tomar contato com os modernistas. Lembro-me bem de quando pus a mão na Antologia Poética de Carlos Drummond de Andrade. A capa, inesquecível, trazia em letras grandes um trecho do poema "Os ombros suportam o mundo". Cito de cabeça, mas acho que era exatamente a parte que diz: "Alguns, achando bárbaro o espetáculo, / prefeririam (os delicados) morrer". Eu vibrava com esses parênteses. Adolescente sempre se acha muito rebelde e exibe, quase sempre, escancarada propensão a zombar dos "delicados", os que revelam algum tipo de "fraqueza".


Eu vivia lendo a antologia e repetindo para amigos poemas que depois passei a identificar como integrantes dos dois primeiros livros de Drummond: Alguma Poesia e Brejo das Almas. A irreverência e o humor corrosivo (no qual, depois, eu identificaria um parentesco com o estilo de outro bruxo, o do Cosme Velho) funcionaram para mim como as portas de entrada para o mundo drummondiano. Naturalmente, eu tinha diante de mim um terrível mistério. Eram os poemas mais complexos, destacadamente os de Claro Enigma, que pareciam impenetráveis à compreensão do adolescente curioso.


E havia "Áporo", estranho sonetilho extraído de A Rosa do Povo. Aquilo não fazia o menor sentido. De que o poeta estaria falando? Aquela orquídea antieuclidiana, formando-se aparentemente do nada, ao mesmo tempo me fascinava e desafiava. Que diabo queria dizer esse soneto? Era um enigma nada claro.

 

Até que um dia fui procurar o título do poema no dicionário Caldas Aulete. Lá, descobri que áporo (do grego a+poros, sem passagem, sem saída) quer dizer pelo menos três coisas: 1. problema insolúvel; situação sem saída; 2. uma espécie de inseto que cava a terra; e 3. uma orquídea verde. (Curioso: nem o Aurélio nem o Houaiss, hoje, trazem esses três significados. Ambos dão somente um, o primeiro.)

 

Li o verbete no dicionário e retornei ao poema. Foi realmente um êxtase, um momento de iluminação. Um alumbramento, para usar a expressão de Manuel Bandeira. Os três significados — e muito mais — estão lá. "Áporo" já mereceu análises de especialistas como Décio Pignatari, Davi Arrigucci Jr. e Francisco Achcar. Em cada uma dessas análises, acaba-se por descobrir novas facetas do poema.


Foi em "Áporo" que pude comprovar, com pura emoção, a verdade essencial de outro verso de Drummond: "Sob a pele das palavras há cifras e códigos". A pele das palavras e seus infindáveis poros.

 
 
 
 
 
 
 
 
agosto, 2006
 
 
 
 
 

Carlos Machado nasceu em Muritiba (BA), em 1951. Jornalista, reside em São Paulo desde 1980. Edita na internet o boletim semanal poesia.net. Tem poemas publicados em revistas e jornais literários. É autor do livro de poemas Pássaro de vidro.
 
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