Enquanto o centenário de nascimento de Carlos Drummond de Andrade recebe a visibilidade merecida de grande poeta brasileiro do século XX, um outro mineiro, Emílio Moura (1902-1977), completa cem anos de forma apagada, sem receber visitas em sua lápide fria ou comemoração nacional com reedições de sua obra (a melhor seleta disponível ainda é a de Fábio Lucas, de 1991). Seu aniversário em 14 de agosto está coberto de heras e musgo, trançado no abandono. O curioso é que Drummond certamente não deixaria seu amigo sozinho em plena festa, porque foi o que mais incentivou e dedicou poemas a Moura, definindo-o como "um manso, mas longe de ser conformista", com "ar de cegonha tímida" e dono de um "silêncio quase completo".

 

O retraimento biográfico pode até ter colaborado para o ocaso póstumo, de um legado "ainda não bastante admirado", na expressão de Otto Maria Carpeaux. Mas a principal causa é o tratamento de choque que a poesia mística brasileira recebeu a partir dos anos 60, secundando trajetórias como a de Cecília Meireles, Dante Milano, Carlos Pena Filho e Jorge de Lima. Na época, falar com a sociedade tornou-se mais importante do que falar com Deus, especialmente para uma crítica literária emergente de feição realista-marxista.

 

Segundo Antonio Carlos Secchin, a produção de Emílio Moura passou a soar passadista e anacrônica diante dos textos das últimas gerações, que valorizam o humor, o trocadilho e a ironia como legendas do fazer literário. Integrante do modernismo brasileiro, Moura não chefiou o movimento ou instaurou um patamar de invenção. Seu universo é das sombras ("esquiva luz"), da irrealidade do desejo, evidenciado nos livros "A Casa" (1961) e "Itinerário poético" (1968). Troca a objetividade pressentificadora pela subjetividade sensual, como que restaurando uma ausência a partir da destruição das projeções. Termina com as possibilidades externas de convívio ao dissipar as certezas de ordem interior.

 

Quantas vezes te destruí em mim para te criar de novo?

 

Não existe salvação em sua crença. Tendo o medo como "bússola", demonstra receio em descrever a beleza, o mesmo que mergulhar na mudez. Arca com uma nostalgia inclusive do que não aconteceu:

 

A vida que não tive

morre em mim até hoje

Que importa o que não fui,

se o que não sou te embala?

 

O pessimismo acentua o desfalque, as quedas sucessivas devoram qualquer possibilidade de emancipação do sujeito. Em contínua contabilidade e inquietação, alimenta uma musicalidade sigilosa, quase sussurrada, seguindo a uniformidade de procura em tom sentencioso e monocórdio, bem diferente da dicção protéica de Drummond (um Fernando Pessoa da poesia brasileira, que não materializou heterônimos por detalhe). Se Drummond é o poeta do mundo, Moura é o poeta do entremundos.

 

Agora, que te encontrei, é como se eu já te houvesse perdido.

Quantas vezes tenho pensado em ti como quem apela para um milagre,

como quem acredita que, de qualquer modo, há de recuperar , de súbito, o tempo perdido?

 

A amada está consumada: mito, esfinge, musa. Não há meios de preservá-la. Espécie de Eurídice, com a diferença de que ela se apaga pela obsessão do interlocutor de olhar para a frente. Caracterizando o futuro como "desassossego do escuro", Emílio Moura tampouco sente necessidade de descrever fielmente o cotidiano e assinar a lista de presenças. Ele ama o ato de criar silêncios. Ama a si quanto maior a desvalia. Não espera respostas, complexa filosofia de se manter na simplicidade interrogativa. Faz uma poética da desaparição, de uma suavidade ardente e expansiva discrição. O repertório predileto é o das sobras e dos resquícios, como que denunciando a perda da unidade. Conceitua a Palavra pela trinca "sangue, cristal e chama". Um grau de abstração que evoca teoremas gongorianos como "púrpura nevada". Expressa assim uma impotência no ato de apreensão. Estar em trânsito e nunca chegar é sua sina. Autor da expectativa e do porvir, prioriza a tensão das lacunas, a intensidade do invisível. Neste sofrimento limpo e incessante, não há cicatrizes para definir a fundura do corte. Muito menos a morte serve como consolo.

 

Viver não dói. O que dói

é a vida que não se vive

 

Emílio Moura tem como marcas a melancolia e transcendência, calcado na perspectiva da primeira pessoa. Acredita veicular verdades, investindo nos paradoxos como sinal de uma vida acima das aparências. A realidade é um espaço de negociação entre a perenidade e a precariedade, um limbo de afirmação do nome. O que o singulariza é a serenidade, o equilíbrio formal e temático. Não adotou a posição de excluído e maldito como forma de reivindicar interesse. Alheio a disfarces, escapa da humildade da santidade e da arrogância da loucura, duas formas dominantes do discurso religioso. Não depende dos resultados sociais e da celebração marginal, reproduz o balbucio de um monólogo, disposto a se sacrificar pelas dúvidas.

 

Que o ato de viver é simples diálogo

entre o instante que chega, puro sopro,

e o que dentro de nós é eternidade

 

Não quer a luz, mas diferenciar o escuro do mais escuro, o azul do mais azul. Sua noite é agressiva, acumula tardes e manhãs. Apesar da terminologia do absoluto, recorrendo com freqüência a síntese do "tudo", o escritor não escolhe um lado para ficar. Insatisfeito simultaneamente com o materialismo e a religião, com a respiração e o sopro messiânico. Atravessa o mistério e não o agrada tomar as dores das coisas e dos homens. Parte apenas, definitivamente partido.

 

Da luz que apaga os limites

entre o que existe e o que emerge.

 

A poesia em trânsito vai alicerçada na profecia. Mas é uma profecia que não se concretizou, elaborando a vivência como uma vidência fracassada. A trajetória ascensional de Emílio Moura está condicionada ao desencanto com a própria literatura.

 

Podem exilar a poesia: exilada, ainda será mais límpida

 

 

 

 

[Publicado, originalmente,  em Agulha | revista de cultura # 28 - fortaleza, são paulo - setembro de 2002.

Reproduzida com a autorização do autor.]

 

 

 
 
 
agosto, 2006
 
 
 
 

Fabrício Carpinejar é autor dos livros As solas do sol (Bertrand Brasil, 1998), Um terno de pássaros ao sul (Escrituras Editora, 2000), Terceira sede (Escrituras, 2001), Biografia de uma árvore (Escrituras, 2002), Caixa de sapatos (Companhia das Letras, 2003), Porto Alegre e o dia em que a cidade fugiu de casa (Alaúde, 2004), Cinco Marias (Bertrand Brasil, 2004), Como no céu e Livro de visitas (Bertrand Brasil, 2005) e O amor esquece de começar (Bertrand Brasil, 2006). Mais no seu site e blogue.
 
 
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