I

 

 

Neste ano de 2006, o  País não deve deixar de homenagear os 125 anos de nascimento de um  dos maiores contistas brasileiros de todos os tempos.  Lima Barreto (13/05/1881 – 1º/11/1922) não chegou a ser um virtuose, mas produziu pequenas obras-primas da narrativa curta, como "O homem que sabia javanês", "A nova Califórnia", "A sombra do Romariz", "O moleque", "O número da sepultura", "A biblioteca". Virtuose não podia ser, porquanto a par de outros aspectos — um deles, criticado que foi por alguns (incautos) por força de um  "estilo desleixado" e um texto "cheio de erros gramaticais" (sic!) — era conscientemente praticante de uma escrita diferenciada de seus pares, até porque ele mesmo era diferenciado literária, ideológica e  socialmente de seus contemporâneos.

 

Os contos de Lima Barreto, em maior ou menor grau, são exemplos de relações e interações entre modos tradicionais de narrar e as especificidades do denominado conto moderno. Fogem a parâmetros estabelecidos para o gênero; mantêm, sob a  qualidade literária intrínseca, amplitude e coerência temáticas e estilísticas presentes, de resto, em toda sua obra ficcional — nos romances e nas novelas — e  em seus artigos e crônicas. Alta qualidade e perfeita coerência que, como se sabe, combinadas, caracterizam todo grande autor.

 

Impôs na ficção contística — com seu estilo simples, direto e objetivo, que feria o convencionalismo literário da época, impregnado de falsas concepções estéticas, floreios, etc. — os prenúncios do Modernismo logo a seguir irrompante na cultura brasileira, cujos primeiros elementos e formas apareceram justamente pela linguagem típica da escrita barretiana. Não à toa, despertou interesse e respeito por parte de Mário de Andrade, do alto de sua "autoridade" de contista e teórico da construção ficcional, e  levou p. ex. Sergio Milliet a escrever  "(...) Lembro-me da grande admiração que tinha por Lima Barreto o grupo paulista de 22. Alguns entre nós, como Alcântara Machado, andavam obcecados. O que mais nos espantava então era o estilo direto, a precisão descritiva da frase, a atitude antiliterária, a limpeza de sua prosa, objetivos que os modernistas também visavam. Mas admirávamos por outro lado sua irreverência fria, a quase crueldade científica com que analisava uma personagem, a ironia mordaz, a agudeza que revelava na marcação dos caracteres". [artigo "Noticiário", in O Estado de S.Paulo, São Paulo,  11/11/1948. Nas páginas da então incipiente revista Klaxon (1921), os modernistas paulistas se propunham também a "descoelhonetizar" a literatura brasileira, rompendo com os cânones acadêmicos, objetivos bastante semelhantes aos da revista Floreal, que Lima criara em 1907 e só durou quatro números.]

 

Oposto à maioria de seus contemporâneos, praticantes da escrita floreada e vazia, aristocrática e fútil, verdadeiros instrumentos literários do tal "sorriso da sociedade", apregoado por Afrânio Peixoto, Lima Barreto conferia à sua obra ficcional o sentido militante de uma "missão social, de contribuir para a felicidade de um povo, de uma nação, da humanidade". Talvez mais até do que nos romances, o tom de denúncia conferido por Lima à sua literatura emerge com muita intensidade e freqüência nos contos, tematizantes em sua essência da discriminação racial e social, o preconceito de cor, o vazio moral, intelectual e ético dos políticos, a ganância e a ambição, o arrivismo, o bovarismo, a miséria e a opressão social. As idéias contidas no artigo "Amplius!", publicado originalmente no primeiro número da Floreal, em 25/10/1907, depois em A Época, em 18/02/1916, e  incorporado como abertura da coletânea de contos Histórias e sonhos (em todas suas 3 edições), expressam suas concepções sobre  a arte literária: "(...) Parece-me que o nosso dever de escritores sinceros e honestos é deixar de lado todas as velhas regras, toda a disciplina exterior dos gêneros, e aproveitar de cada um deles o que puder e procurar, conforme a inspiração própria, para tentar reformar certas usanças, sugerir dúvidas, levantar julgamentos adormecidos, difundir as nossas grandes e altas emoções em face do mundo e do sofrimento dos homens, para soldar, ligar a humanidade em uma maior, em que caibam todas, pela revelação das almas individuais e do que elas têm em comum e dependente entre si. A literatura do nosso tempo vem sendo isso nas suas maiores manifestações, e possa ela realizar, pela virtude da forma, não mais a tal beleza perfeita da falecida Grécia, não mais a exaltação do amor que nunca esteve a perecer; mas a comunhão dos homens de todas as raças e classes, fazendo que todos se compreendam, na infinita dor de serem homens, e se entendam sob o açoite da vida, para maior glória e perfeição da humanidade. (...) Não desejamos mais uma literatura contemplativa, o que raramente ela foi; não é mais uma literatura plástica que queremos, a encontrar beleza em deuses para sempre mortos, manequins atualmente, pois a alma que os animava já se evolou com a morte dos que os  adoravam. Não é isso que os nossos dias pedem; mas uma literatura militante para maior glória da nossa espécie na terra e mesmo no Céu".

 

Tanto quanto nos romances, nos contos de Lima Barreto estão contidos os traços recorrentes de sua obra ficcional: obsessão pela origem, marcas da religiosidade, evocação do mistério e da surpresa, emocionadas descrições dos subúrbios cariocas, as periferias urbanas, a divisão de classes, a exclusão social,  os pobres e os enjeitados, os traços da raça — nestes, as denúncias de Lima ao contexto cientificista e darwinista predominante desde a década de 1870, pregadoras das teorias em crescente absorção por parte da maioria dos intelectuais, inclusive Euclides da Cunha (e exceto Lima) de uma "hierarquia entre povos e indivíduos apoiada por conceitos da ciência comprometida com pressupostos ideológicos, determinada por vetores da evolução natural e determinantes dos quinhões de talento, inteligência e senso moral"...

 

Da mesma forma que em artigos e crônicas e nos romances, também no conto, Lima Barreto é um dos mais profícuos, interessantes e instigantes analistas da realidade brasileira. Toda a obra barretiana desenvolve-se a partir de e em torno de um tema nuclear: o poder e seus efeitos discricionários — o poder  visto e descrito por ele como "o variado conjunto de elementos, vetores e procedimentos encadeados no interior da sociedade, compondo grandes e pequenas cadeias, visíveis e invisíveis, tendentes a restringir e constringir o pensamento dos homens, coibindo-lhes as possibilidades de afirmação, pessoal, cultural, profissional, social, e a justa inserção social". Sua obra contística — no mesmo diapasão da romanesca e da jornalística — constitui um conjunto de registros variados do Brasil, sempre emocionados e opinativos, geralmente irados, quase sempre sarcásticos, satíricos, irônicos — chegando à radical crítica alegórico-figurativa nos importantes "contos argelinos", nas peças de teor contístico em Notas sobre a República de Bruzundangas e em Coisas do Reino de Jambon. Nesse particular, aliás, vale observar que no início do século XX e o advento da República, marcados nos planos político, ideológico e social pelo aguçamento de contradições, evidenciou-se um nítido fim do que se poderia denominar "período artístico" na literatura brasileira, a sutil ironia machadiana sendo substituída pela amarga sátira, uma sátira que não hesita em converter-se em impiedoso sarcasmo — mas ninguém, à época, assim o entendeu, assimilou e praticou como  Lima Barreto

 

Sucedem-se nas textos ficcionais barretianos flagrantes urbanos, o bovarismo das elites dirigentes e dos diplomatas (e do brasileiro em geral), as elites econômicas, a burocracia. Poucos, na literatura brasileira — nem mesmo Machado de Assis — criaram e apresentaram um elenco de  personagens tão variado e vasto — homens e mulheres despojados pela sorte, políticos empenhados unicamente com o poder, pseudo-intelectuais abarrotados  de retórica e voltados para a futilidade, militares crentes da própria infabilidade e "ignorantes das coisas da guerra", os donos de jornais venais e corruptos, os magnatas, banqueiros, empresários, fazendeiros do café, os burocratas, pequenos burgueses, arrivistas, charlatães, almofadinhas, melindrosas, aristocratas, gente do subúrbio, operários, artesãos, vadios, mendigos, bêbados, meliantes, prostitutas, mandriões, subempregados, artistas, coristas, alcoviteiras, funcionários,  moças casadoiras, noivas, solteironas, loucos, adúlteros, agitadores, usurários, estrangeiros.

 

Vislumbra-se no conjunto dos contos de Lima Barreto os mesmos cinco eixos temáticos em torno dos quais desenvolve-se sua obra romanesca e sua obra não-ficcional: a política; a mulher; o cotidiano da cidade; o subúrbio; a vida literária — os três primeiros, assumindo escalas quase que majoritárias.

 

Jamais "silencioso" sobre seu tempo, eivado que era de altíssima consciência crítica de ordem social e ideológica,  Lima Barreto enfrentou, como poucos, "as marcas de seu tempo’": não lhe passaram despercebidos — e sempre comentados —  nenhum dos acontecimentos mais importantes da época, essencialmente as contradições da pretensa  modernidade que se dizia ser implementada com o regime republicano brasileiro. Denunciou, em toda sua obra, ficcional e não-ficcional, os problemas sociais, econômicos e políticos brasileiros de sua época; e criticou com a severidade que nenhum outro escritor utilizou, os desmandos praticados pelos políticos e pelas elites (na maioria das vezes afiançados por seus colegas de letras).

 

A rigor e na essência, Lima Barreto sempre tratou mais de política do que qualquer outro tema: ninguém como ele, em seu tempo, escreveu tanto sobre o assunto e, por extensão, sobre  questões sociais. Sua "literatura militante", assim por ele definida, determina o caráter marginal de sua obra; sua visão crítica da sociedade o fez enveredar concreta e irreversivelmente no caminho da luta social; nos jornais e revistas, investiu contra todos os signos do poder, nos textos ficcionais, denunciou as profundas injustiças da sociedade brasileira. As colaborações para revistas e jornais "alternativos" da época, oposicionistas — O Debate, O Careta, A Lanterna, Rio-Jornal, A .B . C., Hoje — constituem o conjunto de maior teor explícito de crítica política e social aos problemas do País e à República [Cf. Lima Barreto e a política, Mauro Rosso, Rio de Janeiro, 2006].

                

Da República se fez opositor irascível e irreversível, implacável e demolidor — utilizando os recursos da sátira, da ironia, da caricatura, da crítica contundente, desmontou todo o esquema de sustentação do regime republicano recém-implantado. As mazelas do governo republicano, o grau de corrupção política e econômica que empestava o regime,  não se cansou de causticá-las por toda a sua obra. Crítico intransigente dos presidentes republicanos, do florianismo e do hermismo, do jacobinismo, da intervenção dos militares na política, de formas de governo autoritário e ultracentralizado e militarizado, de todo e qualquer tipo de violência na sociedade, das ideologias intolerantes. Temas e itens como os  "métodos de dominação surgidos na República, com aliança entre a aristocracia rural e os financistas da burguesia emergente", a "atuação elitista da oligarquia cafeeira de São Paulo", as "críticas à artificialidade e falso poder dos títulos acadêmicos, à futilidade da literatura 'aristocrática'" aparecem nas linhas e entrelinhas dos contos, com a mesma intensidade e veemência presentes em seus artigos e crônicas, nos romances e, especialmente, na novela Numa e a ninfa. Tudo isso preponderantemente difundido pelos 34 contos de explícito teor político apenas publicados na 2a edição de Histórias e sonhos, por contos como "Sua Excelência", "Congresso Pan-planetário", "O feiticeiro e o deputado", "A matemática não falha", "A  sombra do Romariz", "O falso Dom Henrique", "Eficiência militar" — e, em especial, nos importantes e insólitos "contos argelinos", que se destacam no conjunto por peculiaridades muito específicas.

 

Constituem um conjunto único na obra ficcional de Lima, com características próprias de temática (embora a crítica política, que é o caso deles, esteja presente em inúmeros textos contísticos, romanescos, croniquescos e jornalísticos), de teor, "timbre", linguagem, estilo, ambiência. Sob essa denominação, Lima Barreto escreveu 13 contos publicados na revista Careta — 8 deles em 1915, 3 em 1920, 1 em 1921 e 1 em 1922 — mas há de se incluir nesse rol outros dois, da mesma "natureza": "Harakashy e as escolas de Java" e "Hussein bem Ali-al-Balek e Miquéas Habacuc", ambos apresentados na I Parte das 3 edições de Histórias e sonhos. Exemplares insofismáveis do sarcasmo satírico de Lima para as coisas da política, a par de seu obstinado, intransigente repúdio à República, aos governos republicanos, aos políticos, aos conchavos partidários, à oligarquia cafeeira, mas tendo, sobretudo, em seu cerne à ascensão dos militares à política [Cf. Os contos argelinos de Lima Barreto: edição crítica, Mauro Rosso, Rio de Janeiro, 2006].

 

Dotados de insólitos caráter e teor alegóricos [Lima, inicialmente, se valera  da alegoria ao escrever as primeiras "Notas sobre a República de Bruzundangas", em 1911 — e somente apresentadas em livro, postumamente, em 1922 — e em textos escritos entre 1914 e 1918, depois agrupados em "Coisas do Reino de Jambon", somente editado em 1952], os "contos argelinos" integram a III Parte da 2a edição da coletânea Histórias e sonhos, de 1951, depois, na 3a edição, de 1956 (Coleção Lima Barreto) — na 2a edição acompanhados, equivocadamente, sob essa titularidade, de outros 34 da mesma forma críticos, irônicos, sarcásticos à política e à República, mas sem as mesmas características de teor, timbre, estilo, ambiência, etc. dos efetivos contos assim denominados: esses 34 contos não aparecem na 3a edição (de 1956) e nunca mais foram publicados, "perdendo-se" literária e editorialmente. Exemplo claro dos mistérios, equívocos e omissões perpretados na história das edições de contos de Lima Barreto — como se verá adiante.

 

Por outro lado, nunca silencioso sobre seu tempo, Lima Barreto não poderia pois ficar alheio à situação da mulher na realidade social brasileira do início do século XX, época de tantas e profundas transformações na sociedade. Escreveu sobre a mulher em artigos e crônicas, publicadas em jornais e revistas [ainda que sob um  caráter de ambigüidade, ora criticando-a, por vezes atacando-a, ora defendendo-a, muitas vezes, enaltecendo-a: diz-se "antifeminista", põe-se abertamente contra os movimentos feministas, mas defende a necessidade de instrução para a mulher; repele o ingresso da mulher no serviço público ("... rendosos cargos para as mulheres das classes sociais mais favorecidas: e as reivindicações das operárias?..."), mas defende o divórcio; imbuído da moral do seu tempo, retrata a mulher pela ótica comum, mas denuncia sua "absurda" situação de dependência aos homens; longe, muito longe da falsa, equivocadissima acusação de  misoginia, posicionado na realidade contra o movimento feminista brasileiro — que ele denominava "feminismo bastardo, burocrata" — não contra as mulheres, e sim como ojeriza aos signos do progresso republicano [Cf. Lima Barreto e a mulher, Mauro Rosso, Rio de Janeiro, 2006].

 

Lima Barreto sempre deu à mulher espaço significativo em sua obra  não-ficcional e ficcional. Retratou-a e a fez protagonista  nos romances e novelas — haja vista Olga e Edgarda, em Triste fim de Policarpo Quaresma; Clara e Castorina, em Clara dos Anjos; Efigênia, em O cemitério dos vivos; Cecília, em  Diário íntimo, Edgard e Ângela, em  Numa e a ninfa — e  em contos como "Um especialista", "O filho da Gabriela", "Um e outro", "Miss Edith e seu tio", "Cló", "Adélia", "Lívia", "Clara dos Anjos", "Uma vagabunda", "Uma conversa vulgar", "O número da sepultura", "Quase ela deu o sim, mas...", "Numa e a ninfa", "A cartomante", "O cemitério", "Na janela", "A mulher do Anacleto".

                  

Em outro viés, no cotidiano da cidade, estão suas tiritatibes ficcionais e não-ficcionais contra a modernização, a reforma urbana, o cinema, o carnaval e, sobretudo, o futebol — visto por ele como "instrumento e meio de estrangeirismo", de assimilação de elementos, valores e hábitos copiados em prol de um "pretenso, falso, artificial e detestável progresso bem a gosto desta República de bacharéis e aristocratas". Além de muitos artigos e crônicas, o futebol é criticado irônico-sarcástico-impiedosamente em contos como "A biblioteca", "Quase ela deu o sim, mas...", "A doença do Antunes" [Cf. Lima Barreto e o futebol, Mauro Rosso, Rio de Janeiro, 2006].

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E como é inerente a um grande cronista de costumes, o que nunca deixou de fazer também nos textos ficcionais, Lima Barreto criou e recriou situações da existência humana, desfila  personagens insólitos, exóticos e comuns — mas intensos e vívidos — e destila sua demolidora ironia em contos permeados, uns de amarga crueza, outros de franco lirismo, como os celebrados "A nova Califórnia" e "O homem que sabia javanês", como o antológico "O moleque", como "Uma noite no Lírico", "Como o homem chegou", "Agarius auditae", "Um músico extraordinário", "Mágoa que rala", "A barganha", "O único assassinato do Cazuza", "Manel Campineiro", "Milagre de Natal", "Foi buscar lã...", "O jornalista", "O tal negócio de 'prestrações'...", "O meu carnaval", "Fim de um sonho", "Lourenço, o Magnífico", "O pecado", "Um que vendeu sua alma", "Porque não se matava", "Uma conversa", "O caçador doméstico", "Dentes negros e cabelos azuis", "A indústria da caridade".

 

 

 

II

 

 

Não mais fosse por outros argumentos, mormente por motivos ideológicos, criticado  foi [por vezes e por alguns ainda é] pelas "imperfeições de estilo" e pelo "tom caricatural" com que retrata seus personagens. Quanto ao primeiro aspecto, os exemplos de "erros gramaticais" apontados em sua obra ficcional não caracterizam necessariamente um desconhecimento das regras do escrever, e sim o que filólogos configuram como "concordância ideológica": segundo o professor e filólogo Silva Ramos, defeitos e irregularidades em Lima Barreto decorrem não de uma "imperícia gramatical", mas provêm de uma escolha feita pelo autor, dentre mais de um processo de expressão, que possibilita a tradução de seu pensamento ou sentimento: não são as palavras, a ordem em que são dispostas que valem, mas as idéias que exprimem, os sentimentos que fazem vibrar. "Lima Barreto não sabe é alinhar palavras vazias de sentido que só encantem pela sonoridade de expressão. Jamais consentiria ele que um vocábulo soasse oco e não revestisse uma noção. A verdade é que nos tempos que correm já se não compreende que alguém pegue uma pena se não tiver alguma coisa para dizer. É que não nos contentamos mais com palavras, queremos idéias; e seus romances, novelas e contos obrigam a pensar". [carta de 21/06/1919].O segundo elemento, que absolutamente implica em "superficialidade", encontra resposta à altura por parte de Lucia Miguel Pereira, segundo quem Lima Barreto, assim como Machado de Assis, tem sua escrita contística caracterizada por "explorações em profundidade, suas criaturas sempre indagando a existência".[in, Prosa de ficção: de 1870 a 1920. [Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 1950]

 

Lima não recebeu nesse particular um estudo à altura. E da mesma forma e na mesmíssima proporção, talvez mais grave ainda, que esses equívocos interpretativos, há de se lamentar profundamente que, a par da intrínseca e incontestável relevância histórico-literária de Lima Barreto, tamanha riqueza temática — poucos a praticaram com tanta consistência e coerência — e importante prenúncio  estilístico — anunciador do modernismo —  não tenham merecido o obrigatório tratamento editorial ao longo de todos esses anos, desde 1920, quando veio à luz Histórias e sonhos, pelo editor Gianlorenzo Schettino, Rio de Janeiro, a única coletânea publicada em vida por Lima Barreto. Se os romances barretianos têm merecido edições cuidadas (em maior ou menor grau) e freqüentes, o mesmo não se dá na obra contística — cuja história/estória de edições e publicações é um complexo enredo — ou melhor[pior], um "minotauristico" labirinto — de erros, omissões, equívocos, mistérios e descaso.

 

Todas as edições contemporâneas de contos de Lima Barreto são incorretas, equivocadas e confusas: com critérios de seleção e organização discutíveis, inserem em certos conjuntos contos que deles não são, constituem blocos incompletos e errados, não fazem menção a textos importantes. É sabido o quanto Lima Barreto encontrou e  enfrentou dificuldades nas  edições de suas obras, de um modo geral  — haja vista que, no tocante a contos, teve apenas uma coletânea publicada em vida —, mas nada justificam os equívocos e omissões praticados  ao longo do tempo, mormente em períodos recentes. E os elementos emblemáticos mais incisivos, a tipificarem e sintetizarem toda a lamentável história/estória das edições de contos barretianos, são os já citados "contos argelinos" e aqueles referidos 34 contos de "mesmo espírito de crítica política" —, mas não de mesma linguagem, estilo, ambiência, personagens, etc. Os "argelinos" e os 34 contos, no total de 47, apareceram apenas na III Parte da 2a edição de Histórias e sonhos,  em 1951 (Gráfica Editora Brasileira, Rio de Janeiro), nunca antes e depois: apenas os 13 argelinos foram editados, "desaparecidos" e "enterrados" os demais 34.

 

Lima  Barreto escreveu ao todo 105 contos, assim publicados:

 

. 7 contos, como "apêndice" na 1a edição do romance Triste fim de Policarpo Quaresma  (Rio de Janeiro: Typ. Revista dos Tribunais, 1915) — alguns desses contos considerados entre os melhores de sua lavra, que  não aparecerem em qualquer das edições de Histórias e sonhos, estão na edição de Prosa seleta (Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 2001. Org. Eliane Vasconcellos), e na edição de Contos reunidos de Afonso Henriques de Lima Barreto (Belo Horizonte: Editora Crisálida, 2005. Org. Oséias Ferraz);

 

. 19 contos na citada 1a edição de Histórias e sonhos (Rio de Janeiro: Livraria Editora de Gianlorenzo Schettino, 1920), contendo ainda um prefácio de Lima Barreto, uma introdução à Errata que aparece no final do volume, e uma "Observação final", a respeito de Prudêncio Milanês a quem o livro é dedicado;

 

. 18 contos, também como "apêndice" na 4a edição do romance Vida e morte de M.J. Gonzaga de Sá (Rio de Janeiro: Editora Mérito, 1949) — abrigando contos publicados em jornais e revistas da época, que, da mesma forma, não aparecerem em qualquer das edições de Histórias e sonhos, estão na edição de Prosa seleta (Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 2001. Org. Eliane Vasconcellos), e na edição de Contos reunidos de Afonso Henriques de Lima Barreto (Belo Horizonte: Editora Crisálida, 2005. Org. Oséias Ferraz);

 

. fez-se a 2a edição de Histórias e sonhos, em 1951 (Rio de Janeiro: Gráfica Editora Brasileira. Org. Francisco de Assis Barbosa), contendo uma I Parte com 17 dos 19 contos da 1a edição, excluídos "Sua Excelência", incluído no volume póstumo Os Bruzundangas (Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos Editor, 1922), e "A matemática não falha", incluído no também póstumo Bagatelas (Rio de Janeiro: Empresa de Romances Populares, 1923); uma II Parte intitulada "Outras Histórias", com 14 contos, não constantes da 1a edição de Histórias e sonhos; e uma III Parte, denominada "Contos argelinos" com os 13  propriamente ditos e mais aqueles 34;

       

. uma 3ª edição de Histórias e sonhos integra a Coleção Lima Barreto, em 17 vols., de 1956 (São Paulo: Editora Brasiliense. Org. Francisco Assis Barbosa, Antonio Houaiss e M. Cavalcanti Proença), contendo na Parte I os 19 contos das 1a e 2a edições; na Parte II, os 14 da 2a edição, os 13 "contos argelinos" — mas não aqueles 34 [curioso e estranho, porque o organizador, tanto da 2a como da 3a edição, foi Francisco de Assis Barbosa; uma explicação registrada em "Nota prévia" dessa 3a edição, sem justificar satisfatoriamente, fala em ditames de "padronização da 'Coleção', para atender à uniformidade dos 17 volumes quanto ao número de páginas" (sic!).]

 

A par de inúmeras edições, específicas, esporádicas e "episódicas", de coletâneas  — algumas com  fins pretensamente didáticos e paradidáticos, por parte das editoras tradicionalmente  atuantes nessa área, a maioria de cunho nitidamente comercial [do tipo "A Nova Califórnia e outros contos de Lima Barreto", "O homem que sabia javanês e outros contos de Lima Barreto",  "Os melhores (sic!) contos de Lima Barreto", etc.], reunindo  discutíveis seleções de contos —  duas das mais importantes  edições  pecam por incompletudes difíceis de entender:

 

. Prosa seleta (Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 2001. Org. Eliane Vasconcellos), abriga sob a rubrica "Histórias e sonhos" 26 contos, sem  nenhum daqueles do livro  sob esse título, e sob a rubrica "Outros Contos", apresenta apenas 11 dos "contos argelinos" — ausentes "A solidariedade de Al-Bandeirah" e "O desconto" — e mais 9 dentre aqueles 14, englobados no bloco "Outros contos recolhidos", na 2a edição de Histórias e sonhos, de 1951;

 

. Contos reunidos de Afonso Henriques de Lima Barreto (Belo Horizonte: Editora Crisálida, 2005. Org. Oséias Ferraz), que abriga apenas 58 contos, justiça seja feita, sob seleção correta e criteriosa, mas omitindo  os "contos argelinos", aqueles citados 34 contos que aparecem na  2a edição de Histórias e sonhos, de 1951, e os 2 "exercícios  teatrais" de Lima Barreto.

 

Pairando sobre todas as vicissitudes e incongruências, superando as incompreensões de que Lima Barreto foi vítima, suplantando os erros e omissões das edições de suas obras contísticas, permanece o vaticínio de Antônio Cândido, no ensaio "Os olhos, a barca e o espelho" [in Suplemento Cultural, a.1, nº 1, O Estado de S.Paulo, 17/10/1976; in A educação pela noite. São Paulo: Editora Ática, 1987],  em que refere-se a "um caso típico da literatura brasileira: Lima Barreto". Um Lima Barreto para quem  "a literatura devia ter alguns requisitos indispensáveis. Antes de mais nada, ser sincera, isto é, transmitir diretamente o sentimento e as idéias do escritor, da maneira mais clara e simples possível. Devia também dar destaque aos problemas humanos em geral e aos sociais em particular, focalizando os que são fermento de drama, desajustamento, incompreensão. Isto, porque no seu modo de entender ela tem a missão de contribuir para libertar o homem e melhorar sua convivência". Afirma Cândido, que "Lima Barreto é um autor vivo e penetrante, uma inteligência voltada com lucidez para o desmascaremento da sociedade e a análise das próprias emoções, por meio de uma linguagem cheia de calor".

 

Em qualquer tempo ou lugar, em todas as efemérides possíveis, não há como, em hipótese alguma, deixar de reconhecer — e homenagear, com pompa e circunstância — o extraordinário mérito literário de Lima Barreto, muito menos seu destacado papel de enunciar nas páginas que escreveu — ficcionais ou não-ficcionais, romanescas ou jornalísticas, croniquescas ou contísticas — um projeto de nacionalidade brasileira.

 

 

 

Cronológico das edições de contos de Lima Barreto

 

junho/2006

 

Mauro Rosso. Pesquisador de literatura brasileira, ensaísta e escritor, autor de São Paulo 450 anos: a cidade literária, organizador da coletânea Lá no sertão...: contos regionais brasileiros; Cinco minutos/A Viuvinha, de José de Alencar: edição comentada (a publicar); Trilogia Lima Barreto: Lima Barreto e o futebol, Lima Barreto e a mulher, Lima Barreto e a política (em preparo). Prepara ainda uma edição comentada de Contos femininos de Machado de Assis.