villiers de l’isle-adam

 

 

Durante muito tempo, desde a conferência post-mortem feita por Mallarmé, a peça Axel (trad. Sandra M. Stroparo. Curitiba: Ed. UFPR, 2005) de Villiers de l’Isle-Adam (1838–1889), ficou conhecida sobretudo como aquela em que o protagonista principal, a exemplo do próprio autor, expressa seu desprezo pela existência real, abdicando de viver ("Viver!, prosseguiu, Viver? Nossos empregados farão isso por nós.") A legenda dessa renúncia elitista ao gosto, é verdade, de um certo decadentismo serviu providencialmente a Edmund Wilson, em O Castelo de Axel, como metáfora geral, não apenas do Simbolismo, mas da própria literatura, cujas grandes figuras na virada do século XIX para o XX eram justamente escritores vinculados de maneira direta ou indireta a essa tradição. Não se pode esquecer que o livro de Wilson foi publicado originalmente em 1931 e que seus julgamentos se colocavam na perspectiva da discussão sobre o contemporâneo e sobre o destino da literatura. Para o autor, a história da literatura de seu tempo se definia em grande parte pela "fusão ou conflito" entre Simbolismo e Naturalismo, entre a recusa do mundo e sua onipresença. Não me parece ser o caso simplesmente de dizer que a história do século XX deu razão ao argumento, mas, antes disso, de constatar que Wilson ajudou a instituir e consolidar essa visão do sentido histórico da literatura, que perduraria por mais meio século, pelo menos.

 

De fato, Axel é talvez o exemplo mais consumado da elaboração de uma "torre de marfim", produto do afastamento programático de certos autores do final do século XIX em relação ao mundo burguês e tecnocrático. Esse afastamento é enfatizado, tanto pelas ações descritas no texto, quanto pela presença constante de referências e alusões à teologia e ao ocultismo (lembre-se, de passagem, que o manifesto Rosa Cruz, filosofia da qual o livro está impregnado, apareceu no jornal francês Figaro, em 1891, alardeando um lema antipositivista: "Não acreditamos em progresso nem em salvação"). Como dizia Yeats, os decadentistas, os pré-rafaelitas, os wagnerianos compunham uma geração que reagia, tanto ao racionalismo do século XVIII, como ao materialismo do século XIX. São conhecidas, desde Baudelaire pelo menos, as declarações de desgosto pelo modo de vida da época e a reivindicação do exílio literário, identificado comumente pela crítica como uma retração, um auto-exílio da literatura a fim de salvaguardar sua identidade diante das transformações de valores culturais, das novas tecnologias de reprodução em larga escala e do prestígio de outros usos da linguagem (como o jornalismo, a narrativa romanesca, etc.) Alijada das grandes questões sociais, se é que um dia as teve em mãos, à literatura teria restado entreter seu próprio campo, consumando assim a separação entre cultura e sociedade. São sintomáticas as observações de Mallarmé sobre o autor de Axel. A ambição de Villiers de l’Isle-Adam era a de "reinar", porém, essa glória era impossível nos tempos que corriam; em conseqüência, teria restado a Villiers a ambição de reinar, mas apenas como "grande escritor". "A divisa ficou", se confirmou de alguma maneira, segundo a conclusão de Mallarmé. Descendente de uma família nobre arruinada pela revolução, é bem provável que o conde de l’Isle-Adam não recusasse a honraria.

 

Villiers não era o único a cultivar o artificialismo espiritual ou mundano dessa suposta radicalização da diferença entre cultura e sociedade. Basta lembrar que, num espaço de pouco mais de uma década, pode-se observar a publicação, não apenas de Axel (1890), mas de À Rebours (de Huysmans, 1884), de Poésies complètes (de Mallarmé, 1887), de Pelléas et Mélisande (de Maeterlinck, 1992) e de Les Nourritures terrestres (de Gide, 1895), obras seminais do chamado Decadentismo. Contes cruels, do próprio Villiers, seu livro talvez mais conhecido, havia sido publicado em 1883. Mas Axel tem um lugar especial nesse universo fin-de-siècle pois, além de tornar-se referência para toda a geração seguinte, como obra derradeira de seu autor, tratava-se ali de constituir uma espécie de suma literário-filosófica, de legado espiritual e poético. Ao morrer, Villers não o havia concluído, pois o projeto da peça concebia ainda uma quinta parte não escrita. Entretanto, dada a natureza especulativa e poética do texto, isso não chega a ser uma limitação e o próprio autor, antes de morrer, preocupou-se muito mais em acertar alguns problemas de perspectiva filosófica, do que em assegurar uma eventual continuidade. Para alguns críticos, o texto não tem propriamente um caráter teatral, sendo melhor definido como "poema dramático", ou "tragédia filosófica". Axel é, sem dúvida, uma obra de idéias, elaboradas de acordo com os tons de uma sensibilidade poética muito característica.

 

Escrita durante um período de 20 anos e concebida como obra total da inspiração e da reflexão de seu autor, Axel traz relações estreitas com a tradição do teatro romântico francês (sobretudo Victor Hugo), o que faz com que seja concebido por alguns como a "última obra" do teatro romântico, mas também com o texto e com mito fundamental do Fausto (Goethe), com o qual o autor gostaria de rivalizar. Apesar dessas e de inúmeras outras fontes, clássicas (Antígone) ou shakespearianas (Hamlet), é interessante lembrar que Axel não se vincula apenas à tradição teatral. Traz, por exemplo, notações musicais de grande precisão, o que revela o projeto de obra multiartística de Villiers (que também era músico e projetava compor ele mesmo a parte musical da peça). São notórias a influência e admiração exercidas pela música e dramaturgia de Richard Wagner, a quem o reservado Villiers visitou por duas oportunidades e que teve o privilégio de ler o texto pela primeira vez, ainda nos manuscritos.

 

As afinidades com a pintura também são importantes, do ponto de vista da composição, embora a crítica não faça referências explícitas a esse parentesco. A aproximação, entretanto, ajuda a esclarecer a posição literária da peça no tocante à sua visão de realidade e a explicar o interesse que despertou na geração decadentista. Se a pintura de Odilon Redon não está distante, em termos da atmosfera misteriosa, é sobretudo com o trabalho de Gustave Moreau (1826-1898) que podemos encontrar algumas analogias. Recuperando um mito sensível a toda uma geração de artistas, as salomés de Moreau, apontando com o braço suspenso algo visível ou invisível no centro da tela, apresentam corpos tatuados com uma fina camada decorativa ou hieroglífica ("Salomé dançando diante de Herodes", "Salomé apresenta o anel"). Os desenhos e pontilhados em branco, igualmente ("A aparição Salomé e a cabeça de João"), apesar de considerados como acréscimos do pintor no final de sua vida, compõem um mesmo resultado estético de sugestão de luxo e transcendência apenas visíveis em traços cintilantes e quase abstratos sobrepostos à obscuridade do mundo. Nessas telas, a sobreposição às imagens, desses arabescos quase transparentes, cria uma atmosfera excêntrica e quase sobrenatural que enfraquece sobremaneira o dado figurativo.

 

Um efeito semelhante, embora a partir de elementos mais intelectualizados, aparece em Axel, sintomaticamente mais presente nas cenas iniciais envolvendo Sara por exemplo, quando esta descobre o rosto em momento de grande intensidade ritual. As cenas de interior (palácio, catedral), impregnadas de um caráter ritual (dança, sacramento) e cercadas de assistentes (corte, irmandade) confirmam esse ar de família. A força da ritualidade se estabelece, dentro do texto de Axel, não apenas pela sua relevância para o enredo, mas pelo modo como as cenas vão sendo cercadas exaustivamente de descrições detalhadas, tanto da beleza da personagem, quanto dos aparatos que completam o ambiente. O que se perde em termos de ação é substituído por esse efeito, não de realidade, no sentido realista, mas de atmosfera de rito e de mistério. Nesse momento da peça, o texto é também recheado de alusões à teologia e à filosofia. São inúmeras as citações. Entretanto, essas citações, na maior parte dos casos, são modificadas, ou simplesmente inventadas; são repetidas como se não fossem citações, transformadas em fórmulas, com função alterada em relação ao contexto original. As atribuições feitas diretamente pelo texto são falsas, ou inexatas, abusivas, adaptadas ao contexto de idéias de livros dos santos ou de teologia. As informações históricas são inexatas, títulos de obras e epígrafes muitas vezes são simplesmente inventados. Tudo isso compõe um trabalho de sobreposição da ação por meio de teias de sentido que, como em uma tela de Gustave Moreau, deixa explícito (pela não-coincidência entre ornamento e suporte, entre atribuição e autoria) seu caráter artificial. Do mesmo modo, no momento em que Sara descobre o rosto, a notação de cena aprofunda essa artificialidade, por meio de cintilâncias e pontilhados de luz, atribuindo à ação uma atmosfera quase mística (com o auxílio, ainda, das vozes de fundo, em latim): "as opalas do colar místico cintilam através das fumaças de incenso (...) Ela se levanta, em meio a incensórios e velas (...) Sobre seus ombros brilham as lágrimas douradas do lençol fúnebre (...)" A estética do artifício, em Villiers, aliás, não se manifesta apenas na retórica textual, mas reaparece tematicamente em textos como A Eva futura (1886).

 

É muito sintomático que a crítica tome esse trabalho retórico como limitação do texto em relação, por exemplo, à letra da tradição filosófica e religiosa. As notas da edição da obra completa do autor, por exemplo, são pródigas em restrições quanto à erudição de Villiers e quanto ao bem fundado das referências realistas da peça (como um camponês poderia ter estudado em Heidelberg? pergunta-se, o organizador). A expectativa de realismo explica que a cobrança de exatidão se sobreponha ao pacto ficcional e, por extensão, que o resultado estético do texto seja formulado em termos de "afastamento do mundo".

 

É preciso lembrar, a esse propósito, que, desde de Baudelaire, a literatura já não expressa seu amor pela "verdade" (nem pela natureza, ou pelo indivíduo) mas pela "mentira", pela "maquiagem". Entretanto, como Baudelaire, Villiers não se contenta com o artifício criador de atmosferas ("estados poéticos", dizia Paul Valéry) a atmosfera do segredo, por exemplo. A ambição de muitos dos "simbolistas" é maior: não, simplesmente, a de criar um efeito estético, mas a de estabelecer uma relação sagrada com a realidade, isto é, de retomar o real naquilo em que ele se expressa de modo mais característico. "Mistério" e "segredo" são palavras-chave para se compreender não apenas a literatura da segunda parte do século XIX, mas para penetrar no âmago da própria modernidade. A condenação do positivismo, da democracia tecnocrática (ou do materialismo comunista, de outra parte), isto é, da modernidade compreendida a partir do papel fundador da técnica, da submissão da cultura às leis do econômico, é feita em alguns autores juntamente com a defesa do mistério. Nos melhores casos, esse mistério já aparece no próprio cotidiano (como em Baudelaire) e não apenas no ritualismo trágico (como em Villers). O "mistério" não exclui a realidade, mas a reinterpreta. Embora não se resuma a isso, o discurso do mistério tem uma inscrição profundamente humanista, ou seja, contém um projeto de humanidade, embora não possua força de transformação. Por isso, não se identifica exatamente com a "torre de marfim", no sentido costumeiro de abandono do real. A oposição estabelecida por Wilson entre Axel e Rimbaud (descontadas as limitações hermenêuticas da mistura entre análise temática e biográfica, que o próprio autor reconhece) é, portanto, problemática.

 

Para dizer duas palavras sobre o assunto, retomemos brevemente o enredo. Na primeira parte, "O mundo religioso", ambientado em um convento, na véspera de natal, a peça apresenta Sara de Maupers, de inteligência e beleza perturbadoras, que se prepara para aceitar a vida religiosa. Ao dizer "não", ela causa grande escândalo e foge, na seqüência, desaparecendo no branco da noite invernal. A segunda parte, "O mundo trágico", é ambientada em um castelo no fundo da Floresta Negra. O primo de Axel d’Auërsperg, em visita ao castelo, descobre que o pai de Axel, antes de morrer, havia escondido um tesouro naquela região, por ocasião de acontecimentos contemporâneos à invasão napoleônica; Axel, o jovem aristocrata que conduz asceticamente seu pequeno reino, discute com o primo, que o incita a abandonar a vida reclusa e aproveitar as vantagens que obteria ao devolver o tesouro ao Estado; Axel o desafia a um duelo e o mata, não sem antes ter discutido com ele sobre questões que vão, desde da relação entre a carne e o espírito, até o problema da ética da relação com a lei. A terceira parte, "O mundo oculto", apresenta uma discussão entre Axel e Janus, o mestre espiritual, supostamente designado pelo pai de Axel, à beira da morte, para educar o filho; em reviravolta inesperada, Axel renuncia à austeridade do cultivo do espírito e declara desejar a experiência de viver. Essa decisão se choca na quarta parte ("O mundo passional") com a súbita renúncia à existência por parte de Axel; ao encontrar-se com Sara nas criptas do castelo, no êxtase de uma paixão que antecipa todo o gozo da existência e o retém no limiar de sua decepção pela felicidade mundana, Axel convence Sara a matarem-se ali mesmo, antes que o dia amanheça. Os amantes bebem o veneno que Sara trouxera no anel e morrem.

 

O problema da relação com a "vida" é um tema central para o texto, evidentemente. Na discussão com o primo, este se define como a "vida real" ("eu me chamo a vida real"). E, de fato, o conflito em questão pode ser concebido como um duelo contra a vida "real", não exatamente contra o aspecto material da existência, mas contra os valores normalmente associados a ele: a vida ambiciosa, traiçoeira, cuja ética é a da consumação egoísta das relações, na lógica imediata dos sentidos. Axel quer ser, aqui, o herói, não do afastamento da vida, ela mesma, mas de sua versão canalha, dada canhestramente pelo primo como sinônimo de vida. A opção da peça não parece ser o da oposição ao sensível, mas de uma relação com a vida que não exclua o segredo, não fira o "direito" ao mistério.

 

Essa discussão se aprofunda pela referência à natureza da justiça humana. Contra a lógica do direito, afirmada pelo primo, segundo a qual Axel deve devolver o tesouro perdido, de posse do Estado, Axel defende a justiça segundo a qual ele não tem o dever, nem mesmo, de procurar tal tesouro, uma vez que o próprio Estado havia tentado desviá-lo, matando aquele a quem havia designado oficialmente como guardião (seu pai). Com essas "paradoxais sutilezas", segundo o primo, Axel se dá o "direito de recusar a preocupação" e a obediência ao Estado cujo discurso (do "interesse de todos") se choca com a exploração individual de fato. Ele se atribui o direito de não responder, nem à lei, nem à lógica que a fundou. A relação com a lei, para Axel, ao modo hegeliano, parece não se dar apenas como obediência à lei objetiva, mas coloca-se como atenção infinita às razões da interioridade, pela via de uma espécie de imperativo moral. Esse imperativo se desdobra, portanto, na ordem da honra, e não da legalidade. Assim fazendo, Axel instaura e reivindica uma outra esfera de poder fundada no mérito da ação, que não se identifica exatamente com a ética aristocrática.

 

A análise da "filosofia política" contida na peça seria, assim, de extrema importância. A cena do duelo com o primo é, de certo modo, a de um julgamento que coloca em questão a ética da "torre de marfim" e que termina com a defesa do direito ao "emprego de seu próprio tempo", da "abstenção singular", do silêncio, da liberdade do "Esquecimento". Essa posição alta ocupada pela torre de marfim reaparece no texto, mas na figura do "teto do mundo", cujo lugar não designa uma fuga da realidade, mas uma posição extrema a partir da qual se pode definir o modo de relação com a realidade. Se o discurso do mestre Janus, espécie de Mefistófeles da peça, é o discurso da ascese e da "destruição da Natureza", a posição de Axel oscila e deve ser considerada no todo de sua enunciação, não apenas no seu resultado final.

 

Embora constitua uma "sutileza" na ordem do argumento, é preciso lembrar, por uma questão de exatidão, que o suicídio dentro da peça não equivale a um abandono da vida, de modo geral, mas a um abandono daquilo que a vida entendida na sua conformação específica, da qual fazem parte o funcionamento iníquo das leis e o tipo de expectativa de prazer mundano representa como negação do "mistério", negação daquilo que excede o conhecimento dado, a lei instituída, a relação homem/mulher. Se, em Hamlet, o outro mundo sobrevém ao humano, em Axel, ele se limita a "chamar" o humano, a colocar questões ao humano, dentro da sua própria esfera. O suicídio não é sinônimo de filosofia ou de lei da autodestruição. Ele intervém, no contexto da enunciação, exatamente como ruptura com a lei irrestrita do gozo dos sentidos, a lei da pura sensualidade, dos limites do materialismo como horizonte do progresso. Do modo como é apresentado, o suicídio é um ato de insubmissão, de rebeldia, mais do que um abandono. As personagens não matam a vida, mas se matam pela vida, paradoxal sutileza. O suicídio não poderia, pelo fato de promover uma certa visão da vida, ser um "exemplo" ou uma lei de renúncia à vida.

 

Por outro lado, se quiséssemos generalizar essa hipótese de análise para o destino da própria literatura, teríamos que, ao realizar a alegoria da morte como preço a se pagar pela vida, o texto de Villiers de l’Isle-Adam (embora pródigo em elementos anti-cristãos programaticamente espalhados pelo livro) reitera um certo caráter sacrificial e cristão da literatura da modernidade. Matar-se é uma forma de afirmação pela via do sacrifício, é a paixão realizada na sua forma mais insidiosa. Como se, para poder interferir na vida, a literatura devesse realizar-se pela morte; para ter lugar no contemporâneo, devesse reconhecer-se tristemente condenada à periferia dos valores econômico-tecnológicos (ou então se colocar na continuidade desses valores, deixando de lado a própria crise poética que fundou o pensamento sobre o artifício na modernidade). Ora, ao não encarar os conflitos advindos do fato de que as próprias formas e conceitos da literatura quaisquer que sejam são resultado de um pensamento sobre a técnica (tecnologia, retórica poética), a literatura que herdamos do século XIX não dá conta de encarar a situação ambígua na qual se encontra quando se atribui uma visada crítica. 

 

Axel, portanto, não me parece ser apenas ou exatamente um libelo contra a vida, como ficou popularizado, embora também não seja um modelo de atitude crítica. É preciso lembrar que a peça empreende um esforço de compreensão filosófica e política das questões a partir das quais a crítica pretende julgá-la. Por outro lado, essa reflexão não oferece respostas satisfatórias, pelo menos da perspectiva do leitor contemporâneo. Nesse sentido, o reconhecimento das "sutilezas" que nos levam a colocar em questão a sua recepção histórica não deve ocultar as limitações que constroem a perspectiva sobre o assunto. Em primeiro lugar, uma certa atitude sacrificial, como vimos, reconhecível dentro da ótica cristã de negação da vida (no sentido a que lhe dá Nietzsche). Além disso, não há como negar o caráter sem dúvida elitista de uma espécie de religião do hermetismo que se apresenta como saída lancinante para a ruína moral do mundo presente. Conhecemos muito bem a atitude nostálgica e sem força de renúncia que funda muitos projetos de negação do contemporâneo. Por fim, igualmente, não se pode minimizar a suposição implícita no texto, segundo a qual os dados que compõem o universo do vivido são inalteráveis. Não é difícil para o leitor lembrar-se do longo discurso de Sara contendo a lista exaustiva (repleta de exotismos, para garantir a amplitude do leque) das possibilidades de felicidade terrena, à qual Axel simplesmente reconhece como resumo acabado da própria vida. Ao tomar uma lista de possibilidades como sinônimo da experiência, Axel pressupõe ou sugere que nada pode acontecer, nada diferente do que já se espera, como se a vida não pudesse ir além da reprodução de possibilidades pré-estabelecidas.

 

Não se pode deixar em segundo plano o sentido elitista e idealista de Axel. Entretanto, tratar as sutilezas da peça apenas como resultado da inconseqüência política da literatura da modernidade seria faltar com rigor analítico e perder a oportunidade de enxergar possibilidades de articulação crítica que, muitas vezes, situam-se  além da leitura que a história literária soube fazer das obras do passado.

 

 

[In: Villiers de L’Isle-Adam. Axel. Tradução de Sandra M. Stroparo.  Posfácio de Marcos Siscar. Curitiba: Editora da UFPR. 2005]

 

 

 

 

agosto, 2006

 

 

 

Marcos Siscar é poeta, crítico e tradutor, professor de Teoria da Literatura na Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus de São José do Rio Preto.

 
Principais livros publicados: A rosa das línguas, tradução e apresentação de Michel Deguy, com P. Glenadel (São Paulo/RJ: Cosac & Naify/7 Letras, 2004), Metade da Arte, poemas (São Paulo/RJ: Cosac & Naify/7 Letras, 2003), No se dice, poemas traduzidos por A. Cristobo (Buenos Aires: Tsè=Tsè, 2003), Jacques Derrida: Rhétorique et philosophie (Paris: L'Harmattan, 1998), Os amores amarelos, tradução e apresentação de Tristan Corbière (São Paulo: Iluminuras, 1996).

 

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