©baerbel

 
 
 
 
 
 
 

O que significa "dominar uma língua"? Alguns dos escritores mais influentes e inovadores da língua inglesa aprenderam o inglês como segunda língua, e comunicavam-se em espanhol ou alemão em casa, filhos de imigrantes. A história da literatura moderna anglófona está repleta de tais casos. Joseph Conrad nasceu na Polônia, Vladimir Nabokov na Rússia, por exemplo. Ainda que nascidos nos Estados Unidos, alguns dos pilares da poesia modernista norte-americana falavam outros idiomas em casa, e tinham o inglês como segunda língua: é o caso de William Carlos Williams, Gertrude Stein ou Louis Zukofsky. Na literatura contemporânea, um caso bem conhecido é o de Rosmarie Waldrop, nascida na Alemanha em 1935, e escrevendo em inglês como poeta estadunidense, que aparentemente fala tanto o inglês quanto o alemão com um sotaque. Em suas próprias palavras, isto salvou-a de crer-se "dominando uma língua". Noções de pureza em linguagem, cultura ou etnia já nos levaram a grandes crimes. E não se trata apenas de conotações políticas ou ideológicas em tais crenças. Há mesmo implicações estéticas: desde o pós-guerra, quando poetas tornaram-se mais conscientes da relação entre linguagem e mundo, e com a maior divulgação das intervenções de Wittgenstein, várias noções entronizadas, como precisão vocabular ou idéias de mot juste passaram a ser repensadas, levando-nos a questionar o papel da linguagem como mera representação. Não se trata de defender o relapso em literatura. Trata-se de entregar-se a uma maior consciência das armadilhas que a própria linguagem nos traz, e de buscar entender seu funcionamento. Um poema de 2 linhas pode ser extremamente frouxo. Um poema de 300 páginas, um pilar de concretude. Muitos poetas brasileiros contemporâneos têm-se entregado ao epigrama: não atingem, no entanto, o conciso, ou sequer o fragmentário, mas o mero inarticulate. Trata-se de raquitismo, não de precisão. Muitos rapazes no Brasil parecem escrever como se acreditassem ainda que as palavras são realmente as coisas, revelando uma noção de concretude extremamente ingênua. Como se o fato de concentrar-se em substantivos concretos lhes salvasse da abstração e moleza. Muitas senhoritas, por outro lado, revelam uma relação mais ingênua ainda com o subjetivo, e nos entregam poemas líricos de 3 linhas, em que a precisão cede à mera dispersão. Só sobreviveram fragmentos de Safo, mas ela era capaz de cantar por completo.

 

O fragmento é algo muito mais sério.

 

Este tornou-se um dos clichês críticos e estéticos do modernismo: a existência moderna como fragmentária, a perda da ordem, da completude. A postura diante de tal fragmentação foi múltipla, porém. De um lado, houve escritores como T.S. Eliot, carpindo o luto pela perda do sublime, do sagrado. Seu poema The Waste Land, com suas imagens desérticas, seu ritmo brusco, sua construção elíptica e fragmentária (e não importa o quanto a edição de Pound contribuiu para isso, já que foi a escolha final do próprio Eliot publicar o poema desta forma) tornou-se receita de como enxergar a vida moderna. Para artistas como os cubistas, ou mesmo os ligados ao construtivismo, tratava-se de atualizar as noções artísticas da percepção humana da realidade às novas descobertas científicas. O fragmento foi utilizado de formas diversas por muitos artistas, de Novalis a Edmond Jabès, de Anton Webern a Béla Bartók (no que Arnold Schoenberg chamou de liquidation). Mesmo romancistas anteriores à moda pós-moderna o utilizaram como técnica, e penso aqui em Lawrence Sterne e Machado de Assis. No pós-guerra, a postura transformou-se, e o luto foi substituído em muitos casos pela celebração. Para artistas como John Cage (como para Gertrude Stein antes dele) o fragmento permitia uma aceitação mais saudável das limitações da percepção humana, assim como outras limitações biológicas. Um filósofo como Ludwig Wiitgenstein não se cansava de acusar a filosofia e suas ilusões de completude, ele que se dizia incapaz de forçar seus pensamentos em uma progressão linear — pois eles simplesmente afrouxavam-se, perdiam o impulso natural — e deu-nos sua obra estimulante, toda ela em forma de investigações e comentários.

 

 

 

§

 

Tradução, transcriação ou transcontextualização?

 

H.C. Artmann

 

liebe verehrte orchideengrüne primaballerina

aus windsor am kamp massachusetts udssr recommandé

ich sende ihnen diesen liebesbrief

dass sie ihn in ihren lac de cygne einbauen können

al seine anmutig zischende schwalbe mehr

am perlgrauen septemberhimmel am ultimobaldachin

der neurenovierten staatsopernpassage allelujah

ich bin ein schamloser in wahrheit ein höllsakra

ein johann sebastian orth am örthersee auf rollschuhen

weil ich es wage diesen brief an ihren pas de deux zu

                richten

aber ich befehle ihnen nichts ja ich bitte sie nur

meine ezzes hinzunehmen als das was sie sein wollen

alles was sie lieben gnädiges frl! prost du! servus!

mein federgeschriebener schlankerl mein weisser brief

mein ausserordentlich orig. pat. Petschaftberühmter

als nichts Andres bitt ich sie ihn hinzunehmen als

einen mann mir grundsätzen einen mg 59 einen jaguar 60

eine elfenixbeinerne locomotive 230 ph nach las vegas toi

toi toi

ein schlüsselfertiges badezimmer im berliner hilton

ein ballet rose auf groschenstöckeln und eine

filmwohnung

in döbling im dehmelschokoladetortenstil von dipl. arch.

und stadtbaumeister woswasdardeiföwiarahastdeadschu-

                schdea

und wenn das alles noch nicht genug sein soll dann sei er

                noch

ein strahlendes leitstarlet über ihrem nächsten auftritt

am 23. ds. um punkt 19 uhr 30 mitteleuropäischer zeit

                spuck spuck spuck

und ein applaus mit 69 vorhängen und regnenden tee-

                rosen dazu

gott über den berg! was soll les nicht alles

und was wrid es nicht alles sein mein briefchen

mein crèmeweisses

mein hübsches

mein zartes

mein du du

mein durch & durch veilchencrêpegefüttertes

luftpost par avion via aerea u.a.m.

auf der strecke zwichen aa und bee

 

 

in Gedichte über die Liebe und über die Lasterhaftigkeit,

Suhkamp Verlag, 1980.

 

Ricardo Domeneck

 

querida idolatrada orquídeanil prima ballerina

de windsor a kamp massachusetts u.r.s.s. recommandé

à senhora eu envio esta carta de amor

para que possa encaixá-la em seu lac de cygne

como um pássaro sibilante a mais a migrar

na pejada concha do céu junino da ômegabóboda

no recém-restaurado átrio da sinfonia do estado aleluia

eu sou em verdade um sem-vergonha um sacropândego

um heitor vira-copos a patinar campinas

por ousar dirigir esta carta a seu pas

                de deux

mas eu nada exijo não eu tão-só peço-lhe

que aceite as pérolas que lanço a seus corpos

todos os seus sonhos misericordiosa sra.! saúdo-a! sua bença!

minha filiforminha escrita a pena minha carta em claro

minha extraordinária orig. pat. insígniaficante

como nada mais peço-lhe que a aceite como

um homem de princípios um royce 59 uma ferrari 60

um trem polidactilianamente a engatinhar para las vegas tou-tou

                tou-tou tou-tou

uma banheira sob-medida no maksoud em são paulo

dois goles e um só coração num pub & cócegas em núcleos ricos de novela

em alphaville em estilo casa-grande-e-bengala do eng. arq.

e urbanista komudyabusxamavaoblableblufu-

                lanim

e caso tudo isso não lhe chegue aos pés pois seja

                ainda

uma diva radiante em sua próxima performance

a 23 do mesmo em ponto 19h30 horário de brasília

                merda merda merda

e uma ovação entre 69 cortinas e chuva de

                rosas champagne

deus sobre os montes! o que deveria nem tudo

e que por certo nem tudo será minha epistolazinha

minha clara-neve

minha belíssima

minha fofa

minha tu tu

minha toda toda papoulacreponizada

via aérea par avion luftpost u.a.m.

no trajeto entre aa & bee

 

 

 

 

agosto, 2006

 

Ricardo Domeneck. Paulista, vive em Berlim. Além de poeta, é tradutor, ensaísta, videomaker e DJ. Como DJ, organiza a festa semanal  Berlin Hilton. Edita o fanzine Hilda e é "content manager" do site Flasher, para o qual escreve artigos e entrevista artistas e músicos em Berlim e Londres. Co-fundador da gravadora Kute Bash Records. Publicações: Carta aos anfíbios (Rio de Janeiro: Editora Bem-Te-Vi, 2005); Cuatro Poetas Brasileños Recientes, organização e tradução de Cristian de Nápoli (Buenos Aires: Editorial Black & Vermelho, 2006); A cadela sem Logos (São Paulo/Rio de Janeiro: CosacNaify/7Letras, 2007); Ideologia da percepção, em Inimigo  Rumor — Revista de poesia, n. 18  (São Paulo/Rio de Janeiro: editoras CosacNaify/7Letras, 2006); When they spoke I / confused cortex / for context (London:  Pablo Internacional Magazine, 2006). Colaborações: Tentação do Homogêneo, em Cacto — Revista de Literatura, n. 4  (São Paulo:  edição de Tarso de Melo e Eduardo Sterzi/editora Unimarco, 2004); textos, traduções (Jack Spicer, Rosmarie Waldrop, Lyn Hejinian & Basil Bunting, do inglês; e Friederike Mayröcker, do alemão) e entrevista, em Inimigo Rumor — Revista de poesia, n. 17 (São Paulo/ Rio de Janeiro: editoras CosacNaify/7Letras, 2006).  Mais sobre Ricardo Domeneck: aqui.  

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