"Tudo se move continuamente. A imobilidade não existe".

(Jean Tinguely, 1959)

 

 

Um sopro nos móbiles de Calder, energia do gás na máquina de Tinguely, frações circulares no Modulador de Luz-Espaço de Moholy-Nagy, convocados pelo construtivismo e dadá, entremeados pelas ruínas dos dentes e os grafismos na língua — ao som de Glass e resquícios do concretismo. O juízo de uma roda redentora, catracas em partituras e sinfonias esféricas. Diálogos mutantes com as artes plásticas: metafísicos. Fractais, "efeitos borboletas" e variações musicais notáveis/complexas são os batimentos poéticos longos, curtos e intertextuais do carioca Márcio-André em Intradoxos (Rio de Janeiro: Confraria do Vento, 2007), que semeiam a explosão do início ao fim (explosões de signos, de acordo com Guilherme Zarvos e Cinda Gonda), ou o contrário, do fim ao início, e surpreendem os leitores pela intensidade que desabrocham as palavras da natureza das coisas e o movimento das aparências, reverberando o vestígio na plasticidade das cores e ondas do brasileiro Abraham Palatnik, o axioma de que a vida é um fluxo e "só é verdade a parte que se desconhece".

 

O livro é o contágio da forma na linguagem e vice-versa, incursões cinéticas e experimentais que não se esgotam num simples ato ou vagido concretista. Seria um lote fragmentado a cosmogonia das palavras, frases e versos? Suas grafias? Articulações e sentidos? As três perguntas riscam os traços do autor. As tentativas de respostas, ânimo nas reflexões, começam numa simples linha: "medir palavras é desmenti-las". Revelações duma elasticidade e ousadia: invenções e ironias, muito além do lote fragmentado. Pois o começo do livro, ou o final, liga as inversões das capas, orelhas e páginas — um recurso simples —, que contamina o exercício estético, renovando a cadência das mãos/olhos e determinam a rotação interna necessária.

 

Chama a atenção um trocadilho constante, no qual a letra Q é substituída pelo CH, exaltando o giro no alphabeto, liberando as transposições que caminham sem cessar. Também em seu rastro, à deriva o pensamento, intercâmbios e sentimentos despertados por outra qualidade exposta: os aforismos. "E então fez-se a terra para que houvesse dança"."O tempo decorrido regressa a um nada tubular"."Não há princípio nem fim — o primeiro sonho são todos os sonhos". Ouroboros! Eternidade: esse é o cerne, a poesia em moto-perpétuo, magia, sinal inesgotável em rodopio, sempre em nível rompante. "Catraca-flor// todo nome é uma relíquia// um palimpsesto/ ligado por meio-fio". 

 

Transcendental - A extensão/inter-relação/correlação tripla da machine/cidade/corpo são temas encadeados dialeticamente nos poemas. "Não sou eu que não caibo na cidade / a cidade é que não cabe em mim". Todavia, em seu conjunto, a coragem do autor — em meio à Babel cuidadosamente organizada — incita ânimo e ao mesmo tempo impossibilidades: locomotivas em aflições nas passagens urbanas. Afirmando e negando, andando de um lado para outro, reitera a incapacidade contemporânea de criar uma síntese tragável. Márcio-André confirma e extrapola na criatividade ao demonstrar que a síntese é algo não pretendido no livro, um ponto final. Longe disso, são gestações de totalidades realizáveis enquanto poética/literatura. "ELETROHÉLICES" de um motor que ultrapassa os limites da machine/cidade/corpo, ampliando o foco de luz/som, sob a marcha duma mecânica enriquecida pela obsessão escatológica cintilada/afinada com seqüências de imagens/metáforas, razões geométricas próprias e eloqüentes. Lembram uivos, ecos — articulações cambiantes entre porta, janelas, quarteirões, ruas, nuvens e os meandros de um espectro que não quer sombras. Infinitos sonhos. Como o poema Os Ornamentos:

 

 

"e o homem foi arrancado da casca da noite

e acrescido de dentes e olhos

e foi trançado dia e dotado de ouvido

 

e ouviu:

o trigo roçando o éter de Galileu

os pés descalços

a grama úmida de hortelã —

 

e ouviu:

                                      a pele inviolável

                                      de seu corpo inviolável

[germinar lagartas nos arremedos de vértebra]

                                      flanco e dorso

                                      das carcaças de pachiderme

 

um hipopótamo sonhando entre os girassóis"

 

                     

Outras questões/afirmações poéticas interessantes estão relacionadas à cosmogonia das palavras. Ou seriam sinalizações de uma dialética do acaso?! Um paradoxo?! Agonias moventes?! Ontologias?! Cabe meditar com calma tais questões/afirmações. Sem preconceitos e conclusões apressadas, pois os mapas em trânsitos/fases permanentes de Intradoxos sugerem também uma cosmografia: uma descrição encantada do universo. E mais, o Big Band, o Ovo Cósmico e os deuses míticos da literatura (diálogos com vários autores do Ocidente e Oriente: Mallarmé, Pound, Drummond, Confúcio, Lao-Tsé, etc.) são invocados, refletidos e dilacerados por um senso de alquimista. As espumas das palavras fundam, elevam a semente e o princípio gerador: o próprio poeta enquanto demiurgo de um silêncio que enxerga as coisas.

 

Enfim, a leitura circular aponta o dedo do homem/deus como substância catalizadora/criadora transcendental. Por outro lado, na curvatura, a espiral que dá excentricidade — centrifugações — ao livro está no poema Reflexo, no qual toda carga existencial e fundadora do acaso do homem consigo mesmo, pulsões/pulsações, é transmitida num lampejo lapidar:

 

 

"um mar modula nuvens de metal

 

na areia-lâmina o homem

ghia o reflexo de uma bicicleta pelo céu

 

o olho-vagem de um felino

retém o escheleto de uma árvore

 

rachaduras em sua retina

 

a lua é uma pedra de carne seca

encuanto o próprio carvão não aceita aderências de luz

 

um ângulo mais agudo — o avesso

o lado oco da morte"

 

 

Os poetas ainda podem ser admirados. Pois no fundo são justamente as pessoas mais livres do mundo. Graças ao ar que respiram e à inventividade na linguagem, podem criar outros mundos possíveis, e despertar as imaginações estáticas. Intradoxos é um livro para as mentes e corações carentes de descobertas. O seu projeto gráfico e teor poético são movimentos genuínos — cinéticos ao extremo — que navegam sobre a cidade apressada.

 

O melhor remédio para acalmar esse acúmulo de visibilidades e equilibrar a energia urbana  é a poesia. Sem dúvida, a forma mais vitaminada e duradoura de liberdade. E a razão é bem simples: é que para combater as imaginações estáticas — que pensam estar em movimento, mas realizam uma dízima periódica cotidiana —, o melhor recurso ainda continua ser: ler poesias. E Intradoxos, com seus movimentos perpétuos, é um sopro de vida para as mentalidades carentes de desejos, que sonham luas e podem sentir girassóis.

 

 

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O livro: Márcio-André. Intradoxos. Rio de Janeiro: Confraria do Vento, 2007.

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abril, 2007

 

 

 

 

 

José Aloise Bahia (Belo Horizonte/MG). Jornalista, pesquisador e escritor. Autor de Pavios curtos (poesia, anomelivros, 2004). Participa da antologia O achamento de Portugal (poesia, org. Wilmar Silva, anomelivros/Fundação Camões, 2005), que reuniu 40 poetas mineiros e portugueses. Autor de Em linha direta (dissertação no campo da comunicação social, no prelo, pela Quarto Setor Editorial).
 
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