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O primeiro fato a se observar nesta segunda edição de Estilhaços no Lago de Púrpura é a assinatura autoral: Joaquim Palmeira. A pergunta que logo vem à mente é: para onde foi o Wilmar Silva? Ou, o que se fez daquele que assinou a primeira edição? Na tentativa de elucidar esse processo criativo caracterizado pelo transbordamento do espaço versificado é que inicio esta reflexão citando Foucault:

 

"[...] não basta, evidentemente, repetir como afirmação vazia que o autor desapareceu. [...] O que seria preciso fazer é localizar o espaço assim deixado vago pela desaparição do autor, seguir atentamente a repartição das lacunas e das falhas e espreitar os locais, as funções livres que essa desaparição faz aparecer". (2001: 270)

 

         Se o caro leitor tiver a oportunidade de comparar as duas edições verá que Joaquim Palmeira também é aquele do qual se fala nas referências sobre o autor da obra. Assim, afirma-se um grau de complexidade entre Wilmar Silva e Joaquim Palmeira, uma vez que ambos se fendem e se anunciam como um alterego recíproco.

Mais forte que a identificação espelhada, pode-se dizer que um e outro se afirmam como a voz que instaura a persona do outro. Claro é que Wilmar Silva aparece, como na primeira edição, anteriormente a Joaquim Palmeira. Todavia, Joaquim traz à tona a homonímia familiar, o que o coloca como uma expressão dialética no tempo. Falando por outra via, Joaquim se faz no agora como uma presentificação do passado. Um passado rememorado de diferentes épocas, vozes e pessoas, revelador de uma tradição secular: o nomear como expressão do atualizar os fluxos das gerações anteriores. Dessa maneira, Joaquim é anterior, posterior e simultâneo a Wilmar.

Palmeira também acrescenta e reforça esse conceito de tradição ao tornar possível a conexão entre o espaço nominal e o geográfico. Se se observar que o local de nascimento coincidente de Silva e de Palmeira é Rio Paranaíba, poderá se associar a sua presença natural à designação comum às plantas da família das palmas, especialmente às de porte arbóreo, característica desse município. Assim, verifica-se uma ligação entre o nome e a terra por meio da verticalização vegetal de Palmeira. Aqui, seria interessante lembrar a imagem poética de Oswald de Andrade que associa a envergadura das folhas desses vegetais ao cocar indígena ― "E os cocares revirados das palmeiras / São degraus da arte de meu país" ( 1990:135-6) ―, em "Ocaso", poema que encerra a parte "Roteiro de Minas", de Pau-Brasil. Fica insinuado pelo nome Palmeira esse estreito laço hereditário, essa marca do nome e da terra a fruírem para o espaço poético.

Joaquim Palmeira são multiplicidades de vozes a engendrar um Wilmar Silva poético, sujeito em construção plástica por excelência. É com essa carga que se deve encontrar no quarto verso do poema a persona wilmar silva. Esse eu em metamorfose, a perambular por uma noite de intensa duração, dá-se como uma ruína, uma fragmentação em erupção imagética a fluir para o "lago de púrpura" da escrita.

A identificação desse eu com a criação da poesia pode ser verificada em várias das trinta estrofes que compõem o texto, como no excerto vinte e oito: "cavalgar a noite é como cavalgar os poemas / que escrevo com sangue neste lago de veneno". Aqui se pode comprovar a presença da voz criadora dessa persona. Também se deve observar a sua ação visceral ao se lançar nesse percurso peçonhento, nessa "represa" que é "este wilmar silva". Escrita e poeta se fundem nesse exercício poético ― "desabrigado sou eu este poema no cadafalso" (18ª estrofe) ―, revelando uma condição na qual o sujeito e o seu objeto são indistintos, são instaurados um pelo outro em um espaço imaginário qualificado pelo devir poesia.

É esse ser em movimento contínuo que predomina em todo o poema. Suas transformações perpassam os reinos animal ― "eu gambá / sou este almíscar que fenece nos poemas" (4ª estrofe). ―, vegetal ― "visgo letal esta chama que exaure meu caule" (12ª estrofe) ― e  mineral ― "eu sou / esta terra com toda a fome e toda a sede" (27ª estrofe). Dessa forma, a poesia age velozmente sobre as qualificações do eu que a instaura e sobre si mesma, provocando uma sensação vigorosa de perda dos referentes. O que faz pensar em uma tessitura capaz de se urdir como lugar de aparecimento dos devires desse eu, um espaço de agenciamento artístico das potências e vontades do sujeito criador.

Suplementando esse processo de metamorfose, pode-se observar a materialização de funções tais como a do "caçador", a do "campeador" e a do escritor, presentes, respectivamente, nas estrofes dois, dez e dezessete. As três categorias impulsionam o eu para o papel de agente que domina o seu ofício e, ao mesmo tempo, se coloca em risco porque na luta, na caça ou na escrita nãogarantias de um sucesso predeterminado, uma vez que predomina o caráter de jogo dessas atividades.

Por outro lado, a face de "madona de lodo" (6ª estrofe), a de "imensa mulher" (16ª estrofe) e a de índio tupi (8ª e 19ª estrofes) apresentam o que há de feminino e de natural nesse eu. Pode-se afirmar uma tendência para a manifestação de uma força delicada e grandiosa que se conecta com um fluxo da natureza. Por essa via, pode-se inferir uma dialética na constituição desse eu-escrita, colocando-o em vizinhança com a imagem do andrógino, acrescido de uma vitalidade primeva.

É por meio da imagem de "fenda no caos", presente na décima sexta estrofe, que se pode reiterar um sentido poético voltado para o cósmico. O eu-escrita é aberto, é fissurado pela velocidade em seu processo de identificação, o que o presentifica como "dissonante da devassidão dos dissonantes" (18ª estrofe), dobra e desdobra daquele que se faz na diferença como a afirmação da própria singularidade. Nesse sentido, caminham as imagens de "eu / um volátil que dispersa os semens em floemas" (18ª estrofe); "sou este que me persegue / apenas para fenecer no escuro da noite" (21ª estrofe). Ambas apontam para o se esgarçar desse eu tanto pela linha de força da mudança acelerada quanto pela linha de força do se arruinar na obscuridade.

Outra imagem decorrente dessa poesia é a da solidão: "sempre sozinho na revoada onde sou tempestade" (25ª estrofe) vem ilustrar uma consciência difícil porque agitada, perturbada, violenta em sua maneira desordenada de se apresentar nesse eu. Como esse sujeito é a própria escrita se pode afirmar, com Blanchot, que ele "pertence ao risco dessa solidão" (1987: 12). É que se verifica uma reflexão efetivada pelo poético, na qual o eu demonstrar uma sabedoria sobre si mesmo diante do agora que lhe escapa na percepção do movimento ágil, estremecido, irregular e repetitivo do acontecimento.

Uma poesia de saberes: "sei que jamais serei compreendido/ calado" (14ª estrofe); "sei que tenho fome e tenho sede por você" (15ª estrofe); "sei que dizer cravos para adornar seu rosto / é o mesmo que traçar pélvis e púbis a dedos" (17ª estrofe); "e sei que perdi uma pantera, uma draga de laços" (20ª estrofe); "sei a quem oferecer uma orgia em meu sexo" (26ª estrofe); "eu sei que sou este wilmar silva com os campos" (27ª estrofe). Compreender a incompreensão sobre a própria voz, o desejo pelo outro, o estado de perda e a si mesmo no aberto das possibilidades é o exercício dessa poética.

Todavia, é preciso enfatizar que nessa tessitura não se trata de uma fala oral ou de uma fala do pensamento, diretamente ligadas às referências cotidianas. A fala que se expressa é a da poesia "como um potente universo de palavras cujas relações, a composição, os poderes, afirmam-se, pelo som, pela figura, pela mobilidade rítmica, num espaço unificado e soberanamente autônomo" (BLANCHOT, 1987: 35). Isto se dá exatamente pelo fato de a escrita se constituir por imagens, como se pode ver no trecho "longe um lobo eu no escuro / um lobo eu faminto / distante, mais distante que a distância de nós" (3ª estrofe).

Percebe-se uma consciência sobre a dupla distância que separa os sujeitos formadores desse "nós". Por um lado, se verifica a existência de, pelo menos, duas figuras que apresentam um segmento intervalar entre si menor que o afastamento certificado pela fome do devir lobo. Por outro lado, existe a certeza da proximidade entre as figuras, o que implica um espaço entre ambas, transitável em ambos os sentidos. Pode-se inferir desse movimento uma dupla distância dobrada sobre si mesma, enfatizando a força do desejo que acontece nesse fluxo poético. É nesse lugar chamado de poesia que a imagem se fende mostrando a sua ambigüidade e as posições que escalonam o processo da construção de sentido.                             

 

"Aqui, o sentido não escapa para um outro sentido, mas no outro de todos os sentidos e, por causa da ambigüidade, nada tem sentido, mas tudo parece ter infinitamente sentido: o sentido não é mais uma aparência, a aparência faz com que o sentido se torne infinitamente rico, que esse infinito do sentido não tenha necessidade de ser desenvolvido, é imediato, ou seja, também não pode ser desenvolvido, é tão-só imediatamente vazio". (BLANCHOT, 1987:265)

 

         Esse estado de plena potência instaurado pelo imaginário engendra o eu-escrita de sua face noturna: "sou o mesmo noturno nesta noite sem madrugada, / sem luas, foices, machados, enxadas, enxós / eu" (21ª estrofe); "com fome e sede e sou eu esta noite de feno / mesmo que seja para uma febre no outono: eu" (23ª estrofe). Da primeira imagem se pode depreender uma duração ilimitada para a noite, uma vez que não há a madrugada. Além da falta enumerada pelo nomear celestial e terreno. Essa noite inacessível, porque ter acesso a ela é ter acesso ao exterior, é ficar fora dela e perder para sempre a possibilidade de sair dela" (BLANCHOT, 1987:164).

Assim, as imagens eróticas anunciadoras da força desejo se repetem ao longo de todo o poema sem, no entanto, atingir um nível de satisfação positivo, deixando se entrever a face de arruinamento predominante nessa linguagem artística: "eu / que venho trazendo uma fauna e uma flora / eu e minha fazenda de poemas a seus pés, / unhas, joelhos, coxas, bichos-pau, paus / subo o corpo que me escorrega, sou lívido, / um lúbrico na libido de quem diz: não nós / mas o que faço eu com esta seiva no sangue?" (19ª estrofe). Há um problema anunciado sobre o se entranhar do sentimento no ser e a sua incongruência com o fato de não se estabelecer uma correspondência plena. Aqui o eu desejoso do outro está impossibilitado de escapar dos aspectos noturnos vivenciados, seja pela irreversibilidade do tempo, seja pela negação de uma continuidade na reciprocidade amorosa.

 A segunda imagem acrescenta um lado ameno sob a forma de uma vontade do sujeito que ama. Ela se quer uma noite como um espaço acolhedor, um lugar de estabilidade nutricional, melhor dizendo, ela projeta o desejo de acolhimento do amado como a forma de realização plena do processo de sedução. Todavia, é uma ânsia de ter, é um desejo ardente dirigido para o outro no agora. Esse presente exacerbado pela paixão se afirma efêmero como a "febre no outono" e, portanto, o que prevalece é a imagem e os movimentos da noite da qual não se pode e não se quer escapar, pois, ela também é a extensão amorosa. Essa noite dominante sempre o outro, e aquele que o ouve torna-se outro, aquele que se aproxima distancia-se de si, não é mais aquele que se acerca, mas o que se distancia, que vai daqui, de lá" (BLANCHOT, 1987:169).

A dobra amaviosa dos sujeitos constituintes dessa poesia se desdobra na relação de Wilmar Silva com Joaquim Palmeira. Ambos se fazem por meio da distância que estabelecem do outro e de si mesmo, revelando uma noite ensurdecedora como a própria extensão do ato de nomear. Ambos, desejosos um do outro, põem em vigor a linguagem poética como expressão do sujeito que a enuncia sob a condição de fendimento e de singularidade própria. Estilhaços no Lago de Púrpura presentifica uma impossibilidade de centralização do eu porque este se atualiza e se realiza pelo descerramento. Essa poesia instituída pela força do aberto pode se concretizar como o exposto, o extenso em seu momento de ação.

 

 

Referências bibliográficas

 

 

 

 

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O livro: Joaquim Palmeira. Estilhaços no lago de púrpura. Belo Horizonte: Anome Livros, 2007.

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dezembro, 2007

 

 

 

 

 

Wagner Moreira (Belo Horizonte-MG, 1966). Doutor em Literaturas de Língua Portuguesa, pela PUCMG. Leciona no ensino superior. Pesquisador da área literária e editor da "Scriptum Livros" e da "ATO – Revista de Literatura". Publicou Eu não sou Vincent Willem van Gogh (poesia, edição do autor, 1998), selêemcio (poesia, edição do autor, 2002), transversos (poesia, Scriptum Livros, 2003), blues (poesia, SAC-Dazibao, 2004), A escrita como lugar de encontros (ensaios, Universidade de Itaúna, 2005) e experiência (poesia, Dezfaces, 2007).

 

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