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Os senhores do escritor angolano radicado em Portugal, Gonçalo Tavares, lançados no Brasil pela Casa da Palavra,

revelam uma forma de vida e podem ser lidos como uma transgressão

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Petrarca sobe o monte Ventoux. E lá entende que está ali apenas para tirar proveito da vista que alcança com o olhar desde o cume. É a experiência desinteressada com uma paisagem que começa a pressupor uma transgressão: a do deserto. A experiência do cume é a tensão espiritual, porque ela abre o olhar para um fora: o desejo. O estado contemplativo no cume termina provocando o esquecimento de si, e coloca Petrarca entre algumas noções da ambigüidade moderna: distância, separação, ausência, fracasso, remorso e, principalmente, às voltas com uma idéia de vontade. A contemplação de Petrarca é um contra ao princípio de Santo Agostinho quando disse que olhar o mundo visível é faltar a si mesmo. Petrarca opta por ermar no espaço, por uma errância, mas comprime-se em punição sem repouso porque gosta de viajar, de provocar a si um deslocamento; provocar a si "um curso vão do desejo", diz dele e desta circunstância o filósofo francês Jean-Marc Besse.


Há um escritor português, nascido em Luanda, em 1970 (cidade com mais de 13 milhões de habitantes que é um desarranjo como lugar, uma violência ao espaço e um embate como paisagem; Capital de Angola, com uma crise política sem fim e com quase toda a gente vivendo numa condição de miséria atroz), Gonçalo M. Tavares, que vive em Lisboa desde muito pequeno, que num projeto a que ele chama de O Bairro se deu a escrever algumas personagens, a que ele chama de senhores, como forma de construção de um estado contemplativo transgressivo, do deserto, da queda, do deslocamento. Estes senhores são alguns escritores da predileção de Gonçalo, tomados por alguma idéia de vontade, de onde ele vai lhes retirando a posse do nome, da assinatura, do livro, da escritura e, principalmente, propondo um certo apagar das pegadas. Estes senhores, moradores do bairro, somam 38. Sete já foram publicados em Portugal, começando pelo Senhor Valéry, e quatro lançados no Brasil pela Editora Casa da Palavra: O senhor Brecht, O senhor Juarroz, O senhor Calvino e O Senhor Kraus.

 

A idéia do projeto parece infinita, são muitos os moradores e, provável, eles venham a convidar outros. Depois, Gonçalo escreve muito, aos 37 anos tem cerca de 20 livros publicados, recebeu muitos prêmios e estaria muito perto de uma esfera cruel que acontece, por exemplo, costumeiramente no Brasil: muitos livros, muitas feirinhas, muito festinha, muita panelinha cretina, muita política de poder e ingerência do dinheiro público sempre num mesmo lugar e sem distância, e quase nenhuma literatura de risco nesta esfera. Tudo de mais legal neste país se cumpre à margem, amém. Mas o fato é que há na escritura de Gonçalo um gesto que se expõe para outro lugar, que se abre a um fora, como deserto, como desejo; basta ver o movimento que faz com o texto em seu romance publicado no Brasil pela Cia das Letras quase recentemente, e que é um texto que insiste cumprir e inacabar uma participação, um término ativo ao gênero romance, uma escritura toda ela de radicalidades. É este mover, por exemplo, que faz do texto de Gonçalo uma experiência de risco, interessantemente de risco.


No Bairro vai tocar algumas questões potenciais em volta destes nomes que escolhe e desta idéia de uma comunidade. E aí, se pensarmos que uma comunidade inscreve em seu traçado, de alguma maneira, diz Jean-Luc Nancy, a impossibilidade da comunidade, estamos cumprindo a leitura da comunidade perdida. Ou seja, o ser em comum está como aquilo que com-parece, mas não se pensa como um sujeito coletivo e percebe que só é possível comparecer a nada. A comunidade termina por ser o limite do humano. O projeto do Bairro de Gonçalo é, me parece, antes de qualquer coisa, este limite, ou seja, um projeto político para a literatura, não como salvação ou sobrevida, mas como possibilidade, um ir mais longe, uma deriva da deriva. É como se nos perguntasse, serenamente, qual o sentido do esquecimento de uma assinatura, de um nome, de um livro? E ainda esticasse mais um pouco para um quando: quando tomar o lugar de escritor é não fazer o próprio livro, mas sim um outro? E um segundo quando: quando propor uma literatura é apenas nomear algum saber esquecido?


Assim, não consigo pensar que estes senhores de Gonçalo sejam uma homenagem aos artistas que ele recolhe, porque a homenagem legitima o nome e não o apagar das pegadas; nem muito menos que Gonçalo seja um dos mais importantes escritores portugueses ou um dos maiores, isto é publicidade da qual nem ele nem sua literatura carecem. Diz ele: "Cada linha faz parte de uma espécie de biblioteca" e "Escrevo sem qualquer estrutura, escrevo uma frase sem saber qual é a frase seguinte, sem saber nada do que está para a frente. Se sei o que quero escrever, desinteresso-me, e já não escrevo". Ora, por estas duas falas de Gonçalo é possível ler o seu projeto numa clave a um dever político dos mais radicais no seu trabalho, e como literatura: dignidade e risco, de um lado, e a biblioteca e a cena de leitura, do outro. A potência e a delicadeza da escritura de Gonçalo se armam, nestes Senhores, como uma forma de vida, uma forma de vida que é toda ela um deslocamento contra o poder. E trabalhos assim, sim, podem ser lidos como transgressão.

 

 

 

[Publicado, originalmente, no jornal O Povo, em 14/07/2007]

 

 

 

 

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Os livros: Gonçalo Tavares. O senhor Brecht, O senhor Juarroz, O senhor Calvino, O senhor Kraus.

Rio de Janeiro: Casa da Palavra. R$ 19,90 cada.

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setembro, 2007

 

 

 

 

 

Manoel Ricardo de Lima é professor de Literatura Portuguesa da UFSC. Autor de As mãos - The hands (tradução de Antonio Sergio Bessa) e Falas inacabadas (com Elida Tessler), entre outros.
 
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