Às vezes desconfio que o poeta-crítico Ronald Augusto, dono de uma inusitada forma de ligar-se "ao mundo dias-pórico das letras" e de um salmodio lacunoso e áspero, negue-se a escrever qualquer coisa que possa resultar em algum esboço de realização ou ponto de chegada. A natureza esquiva de seu texto, que a rigor não se presta somente a um projeto definido — livro, tal como acostumamos a manuseá-lo, desvia-o radicalmente dos trilhos de uma estética avassaladora, patética, da poesia como proeza demonstrável.

Seu texto, principalmente agora "por ocasião de" No Assoalho Duro (Porto Alegre: Éblis, 2007), parece menos resumir uma vontade específica de construção plástica, que cumprir uma etapa de exercício crítico. Tal ousadia, composta pela difícil interligação pensamento-arte, resulta em alguns poemas que, negando uma linha pormenorizada e programável de elaboração e acesso, compõem uma arena de impasses significantes.

Esse comportamento radical nos autoriza a colocar No Assoalho Duro como etapa, transcurso, inventivo abandono, irônico, de um terreno lingüístico experimentado em obras anteriores, inclusive por reconfigurar poemas expurgados, sei lá por que razão, dos projetos antigos (há poemas de 1989 ou menos). A "negação da conquista" é quase explícita!

Ronald continua evitando o contato óbvio e farsante de propostas interjetivas como ferramentas de abstratos estados de espírito. Alguma eventual entourage motivadora (mundo, homem, morte, negro, vida, solidão, dor), por mais privilegiada aos olhos da cidade-leitora, se não é adiada, pelo menos não é posta à frente de seu cartão de visitas, isto é, jamais é adotada como leme ou gosma justificante do seu dispersivo discurso transgressor. Até porque, sem nenhum aviso prévio, tais problemáticas são descarnadas/sugeridas logo ali, sobre e sob a superfície crespa da linguagem. O leitor que legitime sua escolha.

Poesia extremamente avara em fornecer âncoras lexicais, em No Assoalho Duro aquela escritura entre lacunar e corrosiva ainda perpassa o trajeto logopaico. Vejamos (p.22):

 

Felizmente minha fabulação manca

Estou com travas na fala trancas

Não há indulto possível para poeta

Que não se toca ou diz não à caixa-preta

 

Logo adiante, versátil, o autor permite-se reler, desler em felatio, o outro, a outra irene lisboa (p.23), sem luv(p)as acadêmicas, despaginando os entulhos com os dedos também molhados por alguma viscosidade vital:

 

sem os antiumectantes da metalinguagem masculina

masturba-se com delicadeza e depois

cheira os dedos da mão

úmidos de investigar as origens da vida

irene boa

 

E dada essa constante mudança de foco, a terrível ênfase na peripécia verbal balbuciante, conclui-se que na poesia de Ronald Augusto paradoxalmente, e principalmente nesse último livro, tudo e nada é negado. De qualquer forma, No Assoalho Duro cai como um compósito sujo, punk anti-antológico, que fende mil discursos, mil im/posturas políticas e estéticas, autêntica "escrita fissurada".

Embora linguagem de fissuras, rebelde até a um "todo manipulável", os livros passados tendem a um projeto mais ou menos definido, uma nitidez propositiva, o que não ocorre aqui No Assoalho Duro, livro onde preponderam cunhas de ruídos, ranhuras de invenção e, como visto, ironia erotizada.

Tal como estão no livro, estranho como poemas malandramente datados pelo autor ainda oferecem suas fendas semânticas fruíveis. O poeta acaba por instaurar uma falsa revogação-exílio de sua linguagem efêmera. Raro artifício que desafia todo um manual de zeladoria proposto pela pós-modernidade devotado, quase sempre, ao "aprimoramento". Enfim, linguagem rica que se permite ainda detrimentos, detenções, para outros saltos, é o que importa. E aqui, o objeto LIVRO serve como uma senda provisória por onde pode se escanear esse múltiplo trajeto de tantas salgações. Embora poesia da experiência, o poeta parece olhar de soslaio, sem chorar sua cabeça no assoalho duro (vejo Cruz e Souza no vagão vacum), rindo de muitos que, com pretensões professorais, perdem o sumo das defecções da língua.

 

setembro, 2007

 

Cândido Rolim é poeta e crítico, com publicações na web, em jornais e revistas do país. Publicou os livros Exemplos alados (1997), Pedra habitada (2002) e Fragma (2007), entre outros. Vive em Fortaleza.
 
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