delírios de gari
 

os urubus
são aves
do paraíso
 
os anjos
são urubus
travestidos
 
(dei-me o luxo
de catar isso)
 
 
 

imagens
 

o T de tv:
antena externa
 
o V de tv
antena interna
 
(a imagem é minha)
 
 
 

fora do circo
 
domar a fera
é mais que o espetáculo
de levar ao público
as garras já domadas
 
domar-se a fera
é não entrar na jaula
 
 
 

fóssil
 

quantos marinheiros
fizeram a pedra
do meu porto
 
hoje náufragos
fazem a lápide
do meu corpo
 
sou um porto de emoções
o cais (meu coração)
tem outra história ancorada
 
 
 

(Do livro As lãs da insônia)
 
 
 

par ou ímpar
 

bem casados
para os quatro
cantos do mundo
 
desunidos
pelos quatro
cantos da casa
 
na cama de casal
dormem
e sonham separados
 
 
 

duas margens
 
quando o tempo
me cobrir os céus
com a anágua suja
da tua espera
e teus lábios
forem duas margens
um
gritando calmaria
outro
clamando tempestade
eu voltarei
de corpo e barco
e por ti
seguirei minha viagem
 
navegarei
entre teus braços
e segredos
eu
serei teu búzio
tu
serás o meu degredo
 

(Poema musicado por Chico César)
 

cabo branco
 

extremo Cabo Branco
estranho trampolim
ao contemplar o Atlântico
o mar mergulha em mim
 
 
 

memória das águas
 

sei do mar
do seu sal
suas palavras naus
e toda paisagem
uma vista de Portugal
 
sei do mar
do seu longe
sua história mangue
e o mergulho das ondas
numa linguagem lusitana
 
sei do mar
que o mar
ainda é um silêncio
e a palavra mar
um oceano de palavras
 
 
 

maria das águas
 

eu sou
Maria das Águas
nome e fado
que a mim
me foram dados
pelo movimento
dos barcos
 
eu sou
Maria das Águas
desde Maria menina
quando só Maria
e ainda
pelo mangue
sob os céus
brincava
de transportar nuvens
em barcos de papel
 
dos meus nada sei
salvo o talvez
tenham ido
nos barcos de antes
 
e tenho uma vaga
na lembrança
que ainda de laços
sargaços e tranças
já tentava esse mar
sem ser de mais dadas
a cada maré que vinha
Maria eu ia
tomando corpo
e o cais tomando gosto
pelos prazeres Maria
que ao porto fui servindo
antes do vinho
da primeira sangria
 
e foram tantos
quantos os barcos
que a mim me chegaram
com suas almas
nos mastros hasteadas
 
e foram tantos
quantos os barcos
que em mim me deixaram
sem velas
e com enjôo dos mares
 
me chegavam
com suas falas diferentes
com seus falos urgentes
e me vestiam a rigor
para suas fantasias
 
eu me despia
eu me vestia
eu me trocava
(enquanto suas mãos
em meu corpo faziam cruzeiros
eu contava as estrelas)
onde sou lodo
fui veludo
 
leito de tantos deleites
pelos quatro cantos
do porto
para os quatro cantos
do mundo
 
confesso que vivi
confesso que bebi
goles e goles de mar
até o mar derradeiro
até saber-me sozinha
até beber-me Maria
garrafa sem mensagem
 
de mim
todos os barcos já partiram
e sou só ruínas
de um corpo antigo
onde marujos saciaram
suas sedes
aos beijos no gargalo
de minha boca
 
resta em mim
o que esqueceram
em mim
 
as marcas de mastros e dentes
a ferrugem das âncoras tatuadas
um iceberg no copo d'água
e o endereço de um mar
 
veio de mim
esse mar
que hoje bebe
 
veio de mim
esse mar
de amar sobejo
 
veio de mim
ser de Maria
Maria das Águas
 
Maria que canto
com olhos
que olhos d'água
 
e quando rio
eu rio doce
orvalho na lágrima
 
 
 

(Do livro História Flutuante)
 
 
 

lado que cavo/ que covas
 

quando de um lado
cavo
de um outro
covas
 
é no cimento armado
                     armando
a arquitetura prolixa
de não sobre sim sobre não
 
quando de um lado
cavo
covas
de um outro
 
 
 

morte absoluta
 
quando morto
aos cães
sirvam-me os ossos
aos urubus
sirvam-me a carne
sirvam-me a mim
o meu silêncio
e apaguem-me o nome
para que eu morra
em absoluto
 
 
 

passagem
 

olha que eu sol ignorante
e venho do profundo oceano
das coisas que não sei
e me faço luz para que claro
fique que nada saberei
senão mergulhar no espaço
na espera do ocaso de todo
este encontro com um raio
dessa luz que ainda é minha
 
 
 

(Do livro Lado que cavas/que covas)

(imagem original ©jorge jacinto)
 
 
 
Lúcio Lins - Paraibano de João Pessoa, autor dos livros Lado que cavas/que covas (Ed. do autor, 1982), As lãs da insônia (João Pessoa-Paraíba: Editora Idéia, 1991), Perdidos astrolábios (Recife: Editora Universitária, 1991) e História Flutuante, da coleção Literatura Paraibana Hoje (João Pessoa-Paraíba: Edições Varadouro, 2000). Começou publicando poemas em jornais, como o "Correio das Artes", "Suplemento Literário de Minas Gerais", entre outros. Nos anos 70, incorporou-se ao movimento Jaguaribe Carne, ao lado de Pedro Osmar, Paulo Ró, Águia Mendes e outros. Nos anos 80, criou e fez funcionar o bar Travessia, que foi ponto de encontro de artistas e professores de João Pessoa. Nos anos 90, integrou a revista Ler, com Hildeberto Barbosa Filho, Edônio Alves e Wellington Pereira, entre outros. Na música, tem parcerias gravadas com Adeildo Vieira, Byaya, Chico César, Fuba e Zé Wagner. Segundo o poeta Sérgio de Castro Pinto, "mais racional do que instintivo, Lúcio Lins trabalha o poema com acuidade, deixando-o meio lúdico, envolvendo-o numa atmosfera que mais sugere do que diz, como é o caso de Lado que cavas/que covas". Foi embora em 16 de abril de 2005. Seus poemas foram enviados à Germina pelo poeta Lau Siqueira.