"AINDA PRECISAMOS DA DIGESTÃO PARA APRECIAR

Bach",

escreveu Damásio, o da

cabeça, num livro quase que de

prosa pessoana (aquele da Vênus e do

Newton abraçados).

 

Bach e digestão: o poeta Damásio assim diz

que

no caso de uma coincidência de processos

(Bach pessoanamente digerido por

por exemplo

Gabriela Llansol ou coisa — shakespereana — que a valha)

"precisamos" do apreço

e da apreciação “ainda”

inda que possa o sono

— como certos pássaros sobre cabeças de ferro —

a fuga de

,quem sabe,

uma carceragem a quatro vozes.

 

 

 

 

 

 

BLUE, DE DEREK JARMAN

 

Luz azul: e os olhos muito abertos a ponto de

dali

no que devolve a dança luminosa

ver-se: um grito, um passo e

antes de mais

um abismo, outro.

 

Que assim seja, que a preguiça dos dias

amorne o canto de horas tantas:

chora o menino que ouve o azul

anunciado por pupilas dilatadas com o uso

terminal

da beladona.

 

Olhe-se para todos os lados: luz azul:

e os olhos inda abertos a ponto de

dali

nada ser visto.

Da dança luminosa um patamar

escuro

um espelho de olhos

bem

azuis.

 

Manchas no braço

(o que poderia encerrar uma trilha

uns passeios, os casos):

sim, azul iluminado,

sim, quimera azul,

o inferno em terra é

também

esperar:

em salas, esperar em

macas esperar que despenquem

cabelos e anjos e que o corpo

ou melhor

o que se finda

deite-se marcado como

usado deleite.

 

Beijam-se os dias, azulam-se

as bocas que deslizam em direção ao tempo do

calendário. Tudo pode

parecer-se à eternidade.

Silente e vagaroso, o dia escapa em direção a

um lugar sem princípio.

 

Ainda em todos os lados: luz azul:

e os olhos mais abertos por flashes de inocentes

máquinas que desconhecem cantar.

 

 

 

 

 

BANDEIRA X

 

vai um sujeito,

sai um sujeito de casa com a roupa de rua mesmo rumo

à banca de jornal mais próxima

de casa

e compra um vídeo pornô de proeminência

sádica que se pode

nesses dias

comprar essas coisas nesses lugares.

é a vida.

 

o sujeito volta a casa com a compra embrulhada

em plástico branco

envergonhado

e uma virgem cem por cento perto

do elevador

(de ambos)

e olha a menininha com um olho sujo

e olha os dois pés da menininha e seus

olhinhos virgens.

é a vida.

 

pensa o sujeito que a vida

ainda

não é tão sórdida quanto deveria.

 

 

 

 

 

 

OVERLAPPING 3

 

eu lhe diria: quem és tu?

que estas armas me têm maravilhado de

estupendas.

e ele, certo de pena e braçadeira,

ele

do ocidente capitão de maura lança

ele em silêncio:

"eu sou este notável

e grande ponta, da lança em obra

nunca feita gêmea, sou

de quem falas, sou aquele quando

o luxo nada mais é

que

alimento":

 

sei:

Zinedine Zidane

ou

 

eu lhe dizendo quem ele é

que estas formas me têm, maravilhado,

de pertença.

e o ar

dos sintomas sombra em azul hereditário

o ar em silêncio:

eu sou este, tremido

quando falo, sou decerto quando

o luxo nada mais é

que

evidência.

 

 

 

 

 

 

RAINY RIO

 

assim

sim

gosto:

teto baixo

deus descido

céu

assim

à mão do homem:

 

outra a paisagem

outra a cidade

assim

com olhos de perigo

olhos de uma gente naufragada

sim

a ver-se

 

 

 

 

(Do livro A.)

 

 

 

 

(imagens ©misha gordin)

 

 
Luis Maffei (Brasília-DF, 1974). Poeta, compositor e músico, autor, em parceria com Marcelo Gargaglione, do disco Na mesma situação de Blake (2005). Faz Doutoramento em Literatura Portuguesa na UFRJ, onde foi professor desta disciplina. É também crítico literário, com artigos publicados em diversas revistas especializadas. Publicou os livros de poemas A (Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2006), Telefunken (Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2008), 38 círculos (Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2010), Pulsatilla (Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2011), Signos de Camões (Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2013) e 40 (Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2015). Vive no Rio de Janeiro desde a infância.