Segunda-feira

 

Não estou morto e respirei aliviado

 

Veio o sol e não sei nada

Nem me eternizo

 

Não tenho ninguém para ficar comigo a esta hora

E as pessoas patéticas e tolas

Saíram para não sei quê nem onde:

Fabricam sonhos nas ruas

 

Os barulhos indômitos refazem a cidade

De pernas pro ar

Sorrio e choro, lavando o destino

 

Nenhuma ressurreição no tempo:

O sisifismo louco dos dias

E a contagem regressiva das horas

 

Coabita comigo as imagens de ontem

E a migração dos ponteiros no corrimão tortuoso da manhã

 

Ademais, me deprimo com tudo isso:

tudo no espelho

 

Não estou morto e respirei aliviado

Com o amanhecer.

 

 

 

 

 

 

Batismo de fogo

 

Há muito que o meu coração espera!

 

Por um cêntuplo de vezes evitei

Não abjurei meus sonhos

Nenhum perjúrio lavou-me o pecado

A minha inquisição

 

Quem me acolherá?

Que direi assim tão só

Compungido

Minguando nas cinzas

Da primeira vez

Do primeiro amor

Da primeira?

 

Há muito que o meu coração poreja

Na pia, no nome, aniquilado e só

 

Não serei consagrado em meu sacramento

Apenas, confirmado entre os humanos

Na minha pletora alucinação

 

 

 

 

 

 

Primeira canção

 

Minha vida em tantas páginas

Por vezes penso que todas as coisas fossem nada

E se desfizessem ao menor contato

 

O que surpreende e atira fora

Sem mira, sem razão, à toa

Sou eu

 

Eu escuto a memória das palavras

E excitam meu coração

 

É preciso ter algo a dizer

Nada mais que o amor

E só ele é suficiente

Para expressar o que há

 

Só o tempo exibirá a fonte

O meu corpo, a minha argamassa

 

Uma só palavra basta

Para que o poema valha a pena

 

Se alguém me procurar que seja amanhã

E não terei mais nada para dizer

Só.

 

 

 

 

 

Blue Gershwin

 

Agonizo devagar. Não tenho nada a dizer, nada na absoluta catarse.

 

Os meus pedaços se perderam de mim no labirinto da sobriedade de Cage. Devotei meu olhar a reinventar o muro à cabeça. Criei meu tautócrono com meus versos abstrusos e a loucura me cerca. Comunhão. Ah, Meu tormento Van Gogh, minha solidão Almafuerte, instigado pela descrença e frivolidade das coisas.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Noturno

 

É noite na boca, santa agonia na calmaria

De quem mais seria?

É noite no olhar, flagrante atento

E o mais que invento

E quem mais vem lá, bem-vinda

É noite de vez saudável esperança

De braços com a dança pra lá e pra cá

É noite no dia assaz rebeldia não soube conter

É noite que fala o silêncio delatado

Quem faz de rogado?

É noite pra tudo que nem vem-vem

Na santa nobreza de não ser de ninguém

 

 

 

 

 

 

Endecha

 

O sax soava no quintal e luzia na tarde mansa

Quando o mundo ouvia um silêncio e Brasil tricampeão mundial de futebol. E a dor do nunca mais.

 

Tarde calma, a tez grisalha da música fazia horas emoções a fio ao redor da minha solidão. Até a preta gorda vir buscá-lo pro jantar. O Brasil tetracampeão de futebol e a vida do nunca mais

 

O sax soava no quintal e o solo de brasileirinho sob o pinheiro mantinha aceso dentro de mim aquele frêmito feliz.

Quem sentia falta do lar nesta hora?

E o Brasil campeão em nada e a dor dos que choram na lama.

 

O cabelo em desalinho e um vago olhar sobre o muro de um moleque menino de nada espantar.

E o Brasil era imenso e não era nada para os donos de tudo

 

Anoiteceu e faz frio. O sax ainda soando no quintal. O velho de pé com seus cabelos brancos, acordes do coração que anoiteciam comigo enquanto o Brasil adormece na escuridão.

 

 

 

 

 

 

O fervor da insônia

 

Quero apenas um copo d’água, nada mais.

 

Condenado eu fui, açoitado por todos. E apesar de saudável será examinada a minha doença e eu serei declarado imundo e me lançarão por fim fora do arraial

 

Roubaram meu sono e previ a insônia. Tenho a casa na glória do vento, meus bolsos vazios. Fui até o fundo do inferno e estou armado de luz. Nenhum céu me salvará. Anjo algum me avisou e me acrescenta o que perco, quixote dos meus ideais. E num caleidoscópio todos as lembranças desfiando meu rosário.

 

Na minha morte me recusarão o chão. E confesso, não estou arrependido e nem importa se perdoado. O coração a bombordo lutando contra meus próprios moinhos de vento.

 

A solidão me eletrocuta, sou estrangeiro aqui. Por vontade própria optei pela solidão. A insônia e a loucura. A minha crença no chão.

 

 

 

 

 

 

Close de maio

 

Estou nessa rua e vou só. Minha morte se completa.

 

Graças aos céus, sou um sujeito de sorte errando na vida.

 

Mordi a maçã sem o conselho da serpente e nos meus olhos soturnos ainda sedentos toda alucinação.

 

A vida é pouca aqui, repousa a comiseração. Tende, portanto,

Piedade dos meus chicletes.

As tardes vão como as noivas passeiam por maio. E eu sobrevivo ao exagero do afago e ao carinho dos nubentes.

 

Não há nada na minha euforia, apenas mormaçados desejos de maio no meu vadio coração.

 

 

 

 

 

 

Depoimento

 

Quando souber de mim lembre de como a tarde cai ou de quanto tudo se esvai na última gota do canto do cisne.

 

Não sendo apenas o fim disso e sim o olhar vidrado com a nascente clara e límpida do despertar superior. É que a luz abrasa a calma, alenta a alma pelo cismar surpreso por outro dia ignoto, tácito na esquina e em sendo amanhecido espreita a jogada plural que desemboca na loucura civil e seminal.

 

Devia ser desse jeito e sendo assim será feito o céu que inexiste infinito e grande, capaz do inacessível, do inalcançável que não se concebe.

 

Quando souber de mim, saiba do riso quente e detentor da maior bandeira desejada, mais esconjuro que bênção dum porto seguro mais aberto que o oceano, mais falível quanto o engano, mais enamorado quanto dado ao lado do amor.

 

E quando souber saiba quantas cartas extraviadas foram jogadas no interior das garrafas bebidas e sacralizadas no dia-a-dia de nenhum dia, de nenhum vintém, de nenhum ninguém nem de nada.

 

Em sabendo tal sabença saiba quanto foi difícil sustentar a curva da loucura relatividade para ignaros e avarentos sem tempo de beber no vento a boca da maior verdade.

 

Ao saber não saberá nada, nem onde vai dar qualquer estrada ou desejo ou razão. Ou senão da verdade mais guardada pelos esotéricos, pelos condutores elétricos ou herméticas explicações dum doido lúcido no labirinto da vida.

 

Não saberá porque o sorriso não é só o outro lado da tristeza nem a distância de sofrer e amar, de perder e de se dar, de não ter o que ganhar no prazer efêmero do contendor ou na soberba do vencedor, ou na derrota eterna da angústia certa de quem não ganhou sequer um aplauso, acaso houvesse platéia tácita. Em crendo seria mais atéia que a desilusão, sem saber jamais saberá do que trata a mão nua nem do beijo que despolua a intenção. Não saberá dos braços abertos nem do olhar incerto do menino amanhã. 

Quando souber de mim será notícia invalidada. Já terei quadra formada num poema sem fim. Não terei que agradecer pelas lembranças, nem de respeitosamente requerer mútua estima, nem solenemente disfarçar uma hipocrisia esgrima pra tolerar tal dança de estimar. Terei apenas que mostrar quando souber algo de fato, nada saberá daqui, dali, dacolá, dessa insólita emoção de mostrar o coração a quem possa apenas amar.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Bodas de Sangue

 

Eu me disse sim, me disse assim, me disse sim mais de mil vezes no meu sacrário que se pode ultrajar.

 

Noutra hora, ainda os demônios da noite no tempo e todos os dias no pêndulo e as batidas do meu coração. E o meu cordão umbilical no ninho das enfermidades, a boceta de Pandora, a repugnância pela maledicência, Oh não!

 

Estou pro que der e sucederá e tantas vezes fui ao encontro do amor padecendo à custa de avassaladora paixão.

 

Tantas vezes fui desfalcado por amor, vento algum recusará que me faz falta e até maltrata o bem-querer e o querer-bem.

 

O amor me deu e só o amor levará na vontade de viver por todos os continentes, na minha eterna gratidão à habitação dos vivos e dos mortos.

 

Tantas vezes fui ao encontro do amor e por isso sete vezes perdoei para poder fugir duma prisão pelo sortilégio do amor. Setenta vezes ousei amar e busquei uma meizinha do estrume de Jauaraicica para me curar de paixão profunda e proibida. Setecentas vezes amei com um pensamento vivo de que tudo transcende este universo absoluto. E amarei sete mil vezes até que arrebente a alma e não me saiba mais.

 

 

 

 

 

 

A Solidão de Toulouse

A penumbra da noite francesa

Nas pernas sedosas que se arqueiam no Moulin Rouge

A crise nervosa nas calcinhas fofas das bundas tesudas

A rodopiar no salão do Moulin Rouge

Esbanjando sexo, fumaça e bebida no ar quente

 

A lembrança de Malromé cintila nas coxas impunes

Ameaçando um grande amor

Tudo ameaça um grande amor

A excentricidade nos devaneios de putas ébrias

Esperando príncipes em fodas coloridas

Nos quartos escuros de Paris

 

A boêmia na obsessão da loucura

Comandando as cores e as telas

De um cenário viciado para o templo do Louvre

E o artista sucumbe a um grande amor

 

A escadaria e um estigma

Nas pernas miúdas e desajeitadas

A escadaria e o puto aristocrata do pai

A escadaria e a doce divorciada da mãe

A escadaria e o tombo

O tombo e o último gole

O último gole e a loucura

A loucura e Gironde

E o artista sucumbe a um grande amor

 

 

 

 

 

 

Beija-flor

 

O beija-flor trissa no meu coração

Não tenho pão

Nenhum louro

Vou pela noite

Vou pelo dia

 

Hoje é véspera das estrelas

Amanhã será o seu dia

 

Vamos noite afora

Às portas do vizinho

Cantando todos os céus

 

Acendo em tuas mãos

A minha luz

E delas recebo o teu sol

 

Haverei de amanhã

Chover em ti

Para perenizar nossos frutos

 

Tenho visto de tudo

Nada me comove

Só o corpo é mortal

O avesso é não

 

Dever de guerreiro é lutar

E a guerra é não

 

Da água pro sangue

Das rãs pros mosquitos

Das moscas às pestes

Das úlceras ao granizo

Dos gafanhotos às trevas

Das trevas à morte do primogênito

 

O beija-flor trissa no meu coração

Não tenho pão

Nenhum louro

Vou pela noite

Vou pelo dia

 

 

 

 

[Todos os poemas fazem parte do livro inédito O Trâmite da Solidão]

 

 

 

 

(imagens ©toulouse lautrec)

 

 

 

 

Luiz Alberto Machado. Poeta, escritor, compositor musical e autor teatral pernambucano. Editor do Guia de Poesia do Projeto SobreSites, escreve regularmente para jornais, revistas, alternativos, além de blogs, sites e portais da internet. Já publicou 6 livros de poesias, 5 infantis, 2 de crônicas e tem vários textos publicados em veículos impressos e virtuais do Brasil e exterior. Parte de seu trabalho está reunido em seu site: www.luizalbertomachado.com.br