INERME

 

depois de tudo, a cintura entre os dedos

absorvo o silêncio encantado

 

ela ainda pulsa, não entende,

quando calado sorvo todo encantamento

 

porque a palavra nesse instante é vã

e a resposta no suor desfalecido

é, sem dúvida, mais válida

 

- deixa o corpo descansar sorrindo

deixa o silêncio ecoar bebendo

a rosa cálida de sabor divino

 

mas ela, aflita, pousa em mim uma vontade

ainda tesa e retesada e até no rosto

a vontade repetida reitera.

 

 

 

 

 

 

O CIMO

 

O sumo da fruta me embaraça o paladar

é um fruto doce como se fosse mel

acumulado

 

o sumo da fruta me abraça o céu da boca

e desliza suave como se fosse algodão

acumulado

 

o sumo da fruta me entorpece o paladar

e sufoca os sentidos como se fosse ópio

acumulado

 

o sumo da fruta me enobrece o céu da boca

e suprime o marasmo como se fosse um susto

acumulado

 

o sumo da fruta me agita o paladar

e sacode o tempo como se fosse guerra

acumulada

 

o sumo da fruta me agride o céu da boca

e batalha com a saliva como se fosse loucura

acumulada

 

então eu surto amolecida mordo a vida

e suspiro profunda lambendo o fim do sumo

acumulada

 

 

 

 

 

 

ONÍRICO

 

Vagas contra pedras

cobertas de musgo;

 

na orla, a espuma

adorna a areia

 

do sonho da concha,

um canto profundo:

 

deitadas nas rochas,

líquidas sereias

 

desmancham os cachos

dos belos cabelos,

 

navegam nas águas

em forma de seios,

 

e o corpo das ondas

repousa no musgo,

 

onde a vaga espalha

as verdes guedelhas

 

das tranças molhadas

desfeitas em prata.

 

E após a ressaca,

retorna, incendeia

 

o sol que se espraia

no adorno da orla,

 

e o brilho das pedras,

metal no marulho,

 

sonâmbulo canto

da concha na areia,

 

no espelho das águas,

na língua de espuma

 

do sonho na concha:

úmido silêncio.

 

 

 

 

 

 

EMBEBIDA

 

E o nítido arranjo

dos lábios, um a um,

e o despudor de vê-los

inocentes,

desnudos num

ir e vir medonho,

embebedada duma

realidade úmida

e carnuda, a coxa nua

roça pele contra pele, o quase

encontro e desencontro

de mim dentro daquela fresta

que ora sobra, ora se insinua

num abre e fecha; as pernas

embaraçadas sob a mesa,

a sombra trêmula

dos pés no chão, o torso

dele na camisa

entreaberta, a cabeleira

em caracol evoca

a noite estrelada

em Holanda brilhante

e turbulenta,

e o deleite ainda evola

feito de um gole de absinto.

 

 

 

 

 

 

FETICHES

 

Olhos feito mãos dentro das coxas

as pupilas vibrantes entre as frestas

roçando o rendilhado branco

no meio túmido entre as pernas

 

Ai, quanta deselegância

eu provocar tanto constrangimento!

mas depravada ainda sinto o grão prazer

daquele breve erguer das sobrancelhas.

 

 

 

 

 

 

DA ARTE DE SEDUZIR

EM DETALHES

 

perfumar o corpo jasmim

     e sândalo nos ombros nus

a cabeleira em desalinho

     se derramando a meia-taça

da peça íntima escolhida

     previamente exibe o contorno

robusto um decote preciso

     valoriza o colo e os seios

insinua o torneio das pernas

     na meia-calça cor de noite

o vestido justo elegância

     na curva dos cílios na sombra

dos olhos a prata dos brincos

     de argolas num salto a sandália

brilhando a fivela dourada

     destacando a graça singela

e espantosa dos tornozelos.

 

 

 

 

 

 

POLIEDRO

 

Ao meio-dia, a praia queima,

o mar verdeja, a sombra rubra,

o sol golpeia as ondas e

as águas, líquidas fagulhas,

 

virando onda, e, de repente,

como se a areia crepitasse,

feito de um vidro incandescente,

espalhasse o brilho, estilhaços;

 

e ao mar, a língua de fogo

do vento laranja subindo,

trouxesse o ímpeto dos fortes

e a aparência dos guerreiros,

 

e como um elmo prateado,

o cintilar sobre o cardume,

e a vivacidade das cores,

compondo um quadro impressionista.

 

E a praia, como um espelho,

um poliedro envidraçado,

a batalha de rubro e prata,

e o enorme incêndio nas águas,

 

como reflexos de tinta.

 

 

 

 

 

 

DA SEDE SEMPITERNA

 

Quando no seu corpo me ausento

de mensurar tempos, espaços;

quando nenhum embaraço passa

a ser nó e outra vontade

será a mesma sede dos bichos

debruçados num riacho:

não sou plena, mas me basto

feito se transformasse

todo o desejo em

                           saciedade.

 

 

 

 

 

 

SUSPIRO VERMELHO

 

I

 

Mulheres que saem da sua pele

retiram dos seios

vultos dilacerados

afogam os dedos

no fundo da carne

 

Mulheres que saltam dos seus poros

esvaem das veias

 

desfalecidas

as línguas estiradas

sob um suspiro vermelho

 

 

II

 

Verter amor na sede. Ferida no mar.

Cicatriz. A onda rude que me abate.

Ou não haver margem

para escapar.

 

Pleno deserto. Há flores de sangue.

Corolas. Mulheres líquidas

que esvaem.

 

 

 

 

 

 

MARCIAL

 

sugo

aflita e fluente

o gosto firme do teu sexo

 

 

 

 

 

 

OUTRA VEZ O CORPO

 

O fruto da bondade

não explodiu nesse solo rude.

Somos o Corpo e outra vez o corpo.

Animal divino que saqueia e fere,

cobre de lírios esse ventre estrangulado.

 

 

 

 

 

 

PEDINTE

 

Quando esse amor perder o seu brilho imortal

estarei submersa

no esperma vermelho da morte

pedindo um segundo.

 

 

 

 

 

 

ATÉ QUE SE APAGUE A CENTELHA DA NOITE

 

Me bate. A centelha da noite

fincou sua estrela bendita na carne.

Me bate. Me bate.

Até que se apague

a centelha da noite

e o brilho da morte

seja maior do que a estrela

perdida na carne.

 

 

 

 

 

 

NO SUMIDOURO

 

Ao redor do quarto

migra um cortejo de aves. Não vemos

pois estamos fechados.

 

Ao redor do quarto

     um barco repousa em um mar sem ondas. Não vemos

pois estamos partindo.

 

Ao redor do quarto

baleias abertas e peixes mortos cobrem a angra. Não vemos

pois estamos sangrando.

 

Porque estamos sozinhos não vemos

suicidas engolfados nas brânquias tóxicas

dos cardumes. Não vemos

 

a morte solitária dos corais. Não vemos

a embarcação vazia permanecer

no silêncio das águas. Não vemos:

 

     pois estamos no escuro.

 

 

 
 

A MARCA DAS ORIGENS

 

Deus despeja sua ira: o Corpo.

E toda vida se abre e tudo é possível.

Você abandona sua força no meu dorso,

e a marca das origens

vem ferir suavemente minha pele que brilha.

 

Não sou só o corpo nem só o corpo me habita.

Sou o que move o mundo e o seu canto,

o que me faz mulher e a sua fibra masculina;

alma que ultrapassa o sonho das partículas:

penetra mais fundo para senti-la.

 

Deuses bárbaros povoam as costelas.

Sereias minúsculas mergulhadas na vagina.

A mágoa de deus, oceano:

borboleta verde-azul que se debate infinita.

 

Seus músculos, o rosto, um coágulo

peixes sob o útero: a flor carnívora.

Sou novamente o corpo e além do corpo

a alma das partículas:

- Penetra mais fundo para senti-la.

 

 

 

 

 

 

ÁGUAS SÃO DESERTO

 

I

 

Não há porto, amor, não há porto.

Nosso mar é um corte de água no tempo.

 

Não há orla, amor, não há orla.

Há cordilheira, floração, cratera

nessas marés.

 

Para nós, leme e prumo são sonhos da ventania.

Por isso respeitamos o rumo das águas insones.

 

Mas as âncoras dos bons, as âncoras dos puros

estão fincadas no fundo de um mar sem ondas.

 

A multidão é um fantasma sem tormento.

Navio desembocando no inferno:

mulheres frígidas e homens santos.

 

 

II

 

As águas. Eram turvas.

E dali, podíamos ver uma flor de narciso.

Sinto sono. Corpos nus.

Não podem ser vistos, mas dançam.

Águas são deserto. Não podem refletir.

Estamos submersos. Surge um cão: o Cão.

Vai arrancar nossa cabeça.

Somos devorados. Vejo satisfação

em cada um dos olhos cegos.

 

 

 

 

 

 

HIMENEU

 

I

 

Um perfume aloé

e romã entre os lábios

deve furtar o bom senso

de todas as mulheres

 

Nesse corpo que é virtude

qualquer das almas

se perde É natural

portanto ver as mulheres

 

despidas de sua casta

impostura enfim

despidas entregues

nesse corpo que é virtude

 

Mas agora entre os brincos

esse rosto enfeitado

de rubro e as maçãs

à espera da marca

 

prometida no olor

amargo do aloé

Desejo partir embora

fique desejo ficar

 

embora fuja desejo

beber dessa taça acre

e ver na bebida o sangue

esvaindo amado

 

 

II

 

O amor é meu rebanho

Em disparada invade

descampados onde é rude

invernar onde é rude

 

o veraneio onde é rude

qualquer tempo pois há sempre

tempestade e guardar

o rebanho dos males

 

sua como um regalo

E se cuido desse gado

e alimento com finas iguarias

a manada e apascento

 

meus bichos como quem

em si a si afaga

desata o armento

mais obstinado por montes

 

outeiros em vã disparada

o amor não me permite repouso

o amor não me permite

consolo o amor sequer

 

me abandona onde encontro

manjares que saciem

parte de sua fome

desmedida aceito

 

viver em combate

sorver a ferida

sempre aberta sempre

ferida aberta o amor

 

 

III

 

Cantos floridos ecoam

de Hebrom e belos sírios

e belas sírias venham

dançar em nosso rito

 

Nossas bodas são pagãs

e abrigam toda casta

Mas trazei passas senhor

sem demora maçãs

 

pois estaremos fracos

depois de tamanho baile

E como são belos e ágeis

nossos gentis convidados

 

Convidemos os mais hábeis

para adentrar nosso quarto

e acompanhar de perto

o deleite puro

 

Bendito o corpo

profana tudo

enquanto de velhos cantos

tecemos guirlandas.

 

 

 

 

 

 

A MORTE CANTA. O CORPO SONHA.

 

Horas em chamas

Bebe a chama escura das horas,

o sangue do tempo.

Deita na sombra que estiola

no corpo sedento.

 

Cada segundo é uma porta aberta

Vejo seu dorso.

Quero tapar todas as frestas.

Mas você foge entre os dedos, nos seios,

no meio das pernas.

 

Enquanto a morte canta

Esse sopro de gelo na espinha é a morte que canta:

Não se retém o amor na concha das mãos.

Não se retém.

O amor, não se retém. Fica.

Enquanto puder.

 

O corpo sonha

Não vive a despedida com afinco.

Mas suga o primeiro pasmo até a última gota.

 

Há tanto mistério a ser capturado em pleno dia.

Há tanta noite umedecida no sonho do corpo.

 

 

 

(imagem ©magda o.)

 

 

 

 

Maiara Gouveia nasceu em 1983, em São Paulo. Possui poemas e artigos sobre cinema e literatura publicados em sites da internet, revistas e jornais. Entre eles, o ensaio "A Plasticidade na Poesia de Cesário Verde", publicado em agosto de 2006, na revista eletrônica Agulha. Foi vencedora do 3º lugar do I Festival de Música e Literatura das Faculdades de Filosofia Letras e Ciências Humanas da USP, na categoria poesia, e finalista da 15ª edição do Prêmio Nascente, realizada no ano de 2006, com o livro de poemas, ainda inédito, O silêncio encantado. A obra inaugural sofreu alterações e hoje se chama Pleno deserto.