(um
beijo vendido, outro pela metade),
as
gôndolas de praxe e Carla Camurati
linda
em 1982.
para
Mara Coradello
As
donas de casa se profissionalizaram.
Ao contrário das putinhas — elas, nossas mães —,
não beijam na boca. O que acontece com as
putinhas?
Sabe,
Barletta, fui acusado de ter o pau macio e de usá-lo com doçura. Aí eu
disse que não, nem tanto. A verdade é que não tenho a libido de outrora
— nem a ciência — para escrever sobre a genealogia das bucetas,
mondongos e cus comprados e me recuso, outrossim, a pagar (nem que fosse
pra mamãe) para beijar boca de puta. Isso porque flerto com abisminhos
triviais e me apaixono por lésbicas no final do mês de setembro e começo
de outubro, sou um cara arbitrário, regrado (embora deletério) e, apesar
de tudo, acredito em Márcia Denser, Reinaldo Moraes e primaveras. Ética
é uma coisa que o sujeito — aprendi nas gôndolas do Carrefour — cheira,
mede, usa, evita e descarta conforme o prazo de validade e a necessidade
que imagina ter ao apaixonar-se por si mesmo. Assim, diga-se de
passagem, é que o diabo valoriza os ingressos na bilheteria e penhora as
alminhas em seus respectivos escaninhos e baciadas, comme il faut. A
crepitação e o tempo de cozimento ficam ao gosto do freguês — eu, por
exemplo, escolhi ser untado aos solos de bandoneón e dissipações em
praças impossíveis, barbitúricos fora de moda do tipo benzedrina
(elixires paregóricos...) e batatinhas sabor queijo provolone. Jamais,
porém, cogitei — nem quando arremetido em espirais pela tesão mais
cabeluda — em beijar boca de puta mediante paga. A fruição do prazer,
como queria G. K. Chesterton (ele mesmo de joelhos, vergado pelo próprio
peso), requer não somente eletricidade, mas diciplina e, creio,
principalmente, distância da boca das putinhas. Os lácteos e colostros,
bem como os produtos derivados da melancolia, estão, estiveram e estarão
diabolicamente e desde sempre — como veremos logo em seguida, Barletta —
dispostos em suas malditas, sedutoras e eternas gôndolas. Ah, meu
amigo.
Assim,
confesso que meio de supetão e encantado, vim parar no Rio de Janeiro.
Imagine só, Barletta. Me venderam um beijo. O que eu, diferente das
minhas batatinhas sabor queijo provolone e dissipações, poderia ter
feito? Sou um cara xucro e seminal. Só isso,
Barletta.
Tá
certo que às vezes é divertido você não saber qual a discrepância entre
a putinha bem sucedida e sua irmã, Barletta, devidamente matriculada
numa dessas fábricas de diplomas da vida. Tudo bem. As duas, enquanto
cinderelas — e aqui vai meu palpite — querem beijar na boca e chupar os
caralhos de praxe, a diferença sutil (?) — vos digo, meu caro — é que
embora ambas carreguem a maternidade e o germe das prendas domésticas
incrustados nos fundilhos da alma (a despeito mesmo das gôndolas do
Carrefour), sua irmã, aquela pobre coitada, branquela e comedora de
disque-pizza, está devendo um ano e três meses de faculdade. Taí. Não
ética ou cirurgia plástica que dê jeito! O que faz a diferença —
evidentemente que em favor da putinha — são as porras dos carnês
atrasados que a gordinha da sua irmã, Barletta, jamais vai pagar. O
resto — a música que elas ouvem, as roupas e conversas ao telefone, até
os olhos revirados na hora de negociar o beijo — é tudo igualzinho: o
mesmo shopping, o programa de computador e as sodomas às quais
inopinadamente são aniquiladas. Os carnês atrasados, Barletta, são uma
espécie de purgatório impagável. O inferno não existe nem pra sua irmã
nem pressas putinhas que beijam na boca. Mas isso é irrelevante. A
classe média — vamos ao que interessa — entrou nos eixos via boquete. Um
ajuste, aliás, merecido e há muito ensejado desde os tempos das soirées
dançantes de Sylvio Mazzuca & Orquestra, naqueles tempos
dourados.
Ademais,
os flats — a descontar beijos e aniquilamentos — oferecem serviços de
putaria e conforto que qualquer mãe, hoje (ou pelo menos as
responsáveis, aquelas que NÃO beijam na boca), desejaria para o seu
filho ou trocaria, sem pestanejar, por seus 25, 35 anos de fracasso no
casamento. Até aí beleza. O problema é não ter uma coisa, o dinheiro,
para trocar por outra, a felicidade — e é exatamente nesse ponto que
irrompem dona Zíbia G. & congêneres e VENDEM — agora você entende o
que é sobrenatural, Barletta? — a quantidade de livros que EU deveria
estar vendendo. Ética, meu caro, é uma biscate que não
existe.
Mas
logo no meu primeiro dia no Rio faltava alguma coisa na teta da mina que
eu fodia e aí ela quis me beijar na boca e eu perguntei: "O que
aconteceu com o bico da sua teta?".
A
mina saiu de cima da minha pica (cavalgava...), virou-se pro lado do
abajur e se pôs a alisar um bordado roxo de Ibitinga que pendia do
criado-mudo. Eu, a despeito do emjambement interrompido e da
minha falta de habilidade em lidar com criados-mudos, paisagens e
descrições eletrodomésticas em geral, insisti: "E aí, gata, tá faltando
um bico, qual é o negócio da sua teta?".
Um
carcará sobrevoou o moquifo escapado de um deserto morto e se escafedeu
pras bandas da praça Saens Peña. O céu — evidentemente cúmplice —
ameaçava peidos sufocados. "E aí, gata?".
Ibitinga,
famosa por seus bordados, é uma das muitas ex-cidades tranqüilas e
pacatas do interior de São Paulo que exporta cabeleireiras e gente
profissionalmente desqualificada pros quatro cantos do planeta e dista
poucos quilômetros de Barra Bonita, outra cidade na bacia do rio Tietê,
igualmente famosa por suas eclusas, pelas cabeleireiras em fuga e
responsável por minha nostalgia pré-transamazônica. Uma obra ruminante,
essa eclusa, Barletta — se formos ter em conta a orientação
grandiloqüente de um país de merda como o nosso e que, apesar das
jequices épicas e talvez por causa delas e apesar de tudo,
funciona.
Mas
tava faltando um bico numa das tetas da mina. Quando ouvi um sussurro
vindo lá dos arrasta-pés desse interior parabólico e/ou "por quilo" onde
você, meu caro, além do turismo bovino, pode adquirir lãs e malhas com
até 50% de desconto no cartão de sua preferência e já tem incluídos a
passagem de ônibus executivo, alimentação e hotel duas estrelas, ISSO,
Barletta, e os agrados para a fiscalização, enfim, dizia-me o seguinte
ao pé d'ouvido:
—
É de "nascência", gato.
Veja
só, meu amigo. Ela, a putinha sem um bico numa das tetas, disse e fez
questão de repetir essa ignomínia para mim, toda dengosa. Tive que
amolecer o pau. Por acaso, Barletta, você já ouviu falar de uma cidade
chamada Sertânia?
—
O quê?, então você não é de Ibitinga?
O
carcará, Barletta, se escafedeu pro lado da Saens Peña, via Ibitinga ou
uma porra de Sertânia que eu não sei onde fica. A mina alisava o bordado
roxo. Mas como é que alguém pode nascer sem o bico de uma das tetas,
alisar bordado de Ibitinga, querer me vender beijos na boca e cavalgar
minha pica ao mesmo tempo?
—
Chama o gerente, por favor.
Resolvi
reclamar. Expliquei ao cafetão que a mina não era de Ibitinga e que não
tinha o bico de uma das tetas e que, entre outras falhas, não sabia o
que lhe faltava.
O
sujeito fez um desconto especial pra mim. Sabe, Barletta, saí de lá me
sentindo um eleitor de Orestes Quércia, o tocador de obras. Tô
intrigado. Ao longo do tempo venho "trabalhando a minha sensibilidade"
e, desde aquele curso de origami e escopetas, noto que os matizes da
minha aura têm alguma coisa a ver com a lua cheia e a orientação de
Vênus no meu segundo quadrante em escorpião. Hoje, sem receio — e com
uma visão holística da coisa (é sério, Barletta!) — e apenas com um bico
de teta para lembrar, posso dizer que sou um sensitivo a contragosto.
Quer dizer, nem tanto. Ou serei um intuitivo? Bem, não
importa.
Vale
que tenho um discurso pronto e um caráter no lugar do repertório (e
vice-versa) — já disse isso... —, e vale, sobretudo (né, Barletta?), que
aprendi a não cuspir no meu interlocutor e que às vezes me enche o saco
repetir sempre a mesma ladainha e então eu começo a gaguejar para dar
mais veracidade e emoção ao meu discurso — isso também
funciona.
Algo,
meu caro Barletta, que vai além da canastrice e das triviais e ululantes
aberturas da prestidigitação. Isto é, sob os auspícios de escorpião na
última casa de Vênus, a terra em transe e a gambiarra que fiz com o meu
caráter influenciado por São Jerônimo da Pituba, consegui separar o
esperma da melancolia — num átimo pérfido e milagroso — e esporrar sem
levar maiores prejuízos. Ou seja, depois da punheta a contabilidade que
se estabelece é a seguinte: "legal, né?, economizei tantos reais me
punhetando". Depois, Barletta, perco o controle e essa gambiarra (ou
esse maldito milagre que é o gozo) encerra-se invariavelmente em crises
de choro, dedo no cu e Piazzola.
—
São
os meus desdobramentos, Barletta.
Virou
nisso. Um cara xucro e seminal desembestado no Rio de Janeiro. No meu
segundo dia, entendi que o Cristo ficava prum lado e o Pão de Açúcar pro
outro. Mas não conta isso pra ninguém, Barletta. Em seguida, catei uma
mina em Copacabana (com os devidos bicos nas devidas tetas) e a levei
pruma livraria onde fiz questão de presenteá-la com meu livro de
estréia: Um pouco de Mozart e genitálias, e tive — o que
raramente acontece — o bom senso, Barletta, de dizer que aquilo fazia
"parte do meu show" e advinhei o passado, o presente e o futuro da gata
por eliminação e por causa dos peitões dela: "são múltiplos os critérios
para as escolhas... que são múltiplas, baby". Aí, depois dessa
canastrice, ela me deu meia língua pra chupar e a gente mais se alugou
do que se arretou lá no posto 6, perto da praça Sara Kubitschek, onde —
segundo atesta Millôr F. — inventaram o frescobol.
Ops!
Desvia do cocô do mendigo, amor.
Aquilo
tudo — como diria Reinaldo Moraes no apê da Ledusha — "debaixo do sovaco
direito do Cristo Redentor". Embora o meu Cristo não estivesse
exatamente no mesmo lugar do redentor do Reinaldo, era primavera e
começo de setembro no Rio, vinte e um anos depois do "Tanto Faz". Eu,
caipirão, queria conhecer o Copacabana Palace, onde em tempos idos Ray
Coniff e recentemente Ray Coniff haviam se
hospedado.
Um
pouco antes era sábado e final de tarde — entre o posto 4 e a rua
Duvivier. Ouvi uma batucada em deslocamento da praia que passava pelo
apê do Ferreira Gullar via Ítalo Moriconi e ia em direção à Barata
Ribeiro, pro metrô. Aí, Barletta, veio outra batucada e trouxe uma horda
de crioulos apocalípticos a reboque. Eu não quis — em princípio,
Barletta — fazer minhas associações. Mas eu e a minazinha recém-lambida
(no contrafluxo do funk, digamos assim) acabávamos de sair do caixa
vinte e quatro horas, na avenida Atlântica. Lá, Barletta, naquilo que
algum dia devia ter sido a praia de Copacabana, pairava uma atmosfera de
genocídio e maresia que suprimia pesadamente o tempo e comprimia as
almas em reto-baixo e era pior do que decadência porque, embora pesada e
vagarosa, não estava parada, mas escorria — a lava dos baques —, vinda
de um lugar em direção a outro, enfurecida e arrastando carrinhos de
bebê, e tudo o mais que poderia ter sido esperança, azul e mar,
engolfava aposentados e enfermeiras, o tempo e o espaço e, enfim, o
cerco (eu lá, saindo do banco vinte e quatro horas com a mina
recém-lambida) estava inexoravelmente fechado — naquele instante,
Barletta, quis ser uma uzi israelense para me defender do Sérgio Cabral,
do Ruy Castro e do pôr-do-sol nas pedras do Arpoador, que fica —
dizem... — logo ali, no final da avenida Nossa Senhora de Copacabana bem
atrás do bingo pra quem vem de um sonho estragado, o meu,
particularmente, desde as ressacas do Carlinhos Oliveira em 1970 até
aquelas lambidas mal dadas no posto 6, depois de terem inventado o
frescobol. O coração das trevas, Barletta, do tamanho de um coração de
galinha e arregaçado a céu aberto para quem quisesse se arriscar debaixo
do sovaco do Redentor.
Naquela
primavera, Barletta, minha dieta consistia em cu fechado, bolinho de
bacalhau — Sérgio Sant'Anna íntegro apesar de tudo —, outro chope aí e o
caldo das negrinhas que sambavam no pé para alegrar o safári dos gringos
vindos lá do primeiro e único mundo. Eu, aliás, fazia questão de me
incluir nessa selvageria. Entrementes — volenti non fit
injuria... —, o bonde do Tigrão dominava tudo, o Rio de Janeiro
morria negligenciado em si mesmo e Ed Motta estragava mais uma canção,
acho que era "Wave", do Tom Jobim.
Então
eu e a minazinha subimos no primeiro ônibus e nos escafedemos pra
Ipanema de mãos dadas. Aos sábados têm feijoada e
caipirinha.
—
Cuidado
pra não pisar no cocô do moço que está dormindo na calçada,
amor.
Domingo
é dia de cozido. Os gringos e os canalhas em geral não se cansam de
descobrir... essas merdinhas maravilhosas. Eu, da minha parte,
antecipava o meu funeral e havia me empoleirado na esquina da Djalma
Ulrich com a avenida Nossa Senhora de Copacabana. Aluguei um moquifão
por três meses e adquiri um mau hálito de aviário pré bossa-nova já no
quinto andar do terceiro dia pantográfico da minha estada no Rio de
Janeiro. Do meu moquifo — sob o ponto de vista das cortinas pretas
(sempre) — eu acompanhava canelas rodopiando, lá embaixo, no mezanino de
um prédio redondo do outro lado da avenida, era uma escola de dança e eu
também via um pouco dos joelhos das bailarinas quase na bifurcação das
primeiras putas da noite e à direita de quem pensava em suicídio. E,
logo atrás desse prédio redondo, umas duas quadras até chegar em cima do
túnel da Barata Ribeiro, tinha um morro no meio do caminho, e de lá do
alto, fuzis e metralhadoras se alternavam aos vômitos como se
arrebentassem as sobras do pôr-do-sol ou despachassem pro céu uma cidade
inteira junto com as primeiras estrelas da noite crivada de balas. Uma
enxurrada, Barletta, que fazia "o contrário, outra vez" pro meu
desalento e em direção à lua recém-dependurada e até, finalmente, cobrir
de mortalhas aquilo que poderia ter sido a bosta de uma poesia. Ou um
começo de noite no Rio de Janeiro. Tanto faz. Isso, de certo modo, era a
música dos tocos e canelas do baile silencioso que eu não ouvia quando
cogitava sobre Myrna e o que eu poderia ter feito para que ela
acreditasse na minha solidão e nas minhas paisagens e nostalgias de
tocos e joelhos, dos outros e pela metade, de quem chegou depois da
festa. A praia de Copacabana tem mau hálito. E foi no travo do amargo da
garganta (com o tal bafo de aviário que sobe e desce elevadores
pantográficos) que aprendi a desviar do cocô dos mendigos e a fazer
associações românticas envolvendo os peitões da Carla Camurati, Nasi, e
eu em Copacabana de perfil, entornando chopinhos. Então, imaginei um
embate entre o vocalista do Ira! E uma platéia de adolescentes
idiotizada pelo doutorzinho da MTV. Nasi tentava explicar, em vão,
praqueles idiotas o que era Rock and Roll e o que eram os peitões da
atriz em 1982 — um treco caído, desnecessário como os adolescentes e
constrangedor decorrido todo esse tempo e eu, assim meio que barrigudo e
bêbado, tive álcool o suficiente e fiz minhas associações esquisitas ou
quis entender que depois de vinte, trinta ou quarenta anos de babaquice
estava tudo irremediavelmente perdido. Fuck
you, baby.
Aí,
Bortolotto, quer dizer, aí, Barletta, a gente chegou em Ipanema. No
"contrafluxo do funk", como resolvi chamar aquela merda saindo da praia
em direção ao metrô. Eu falava pra minazinha alguma coisa sobre as
auroras de Paulo Mendes Campos e me perguntava o que é que "aquilo" (meu
contrafluxo em particular) tinha a ver com a leveza do poeta e a Roma
Negra mal-ajambrada pelo Darcy Ribeiro.
Tudo
a ver. A antropologia ou aquilo que os baianos usam para enganar a gente
(penso nos falecidos livros do Jorge Amado e no autismo babão da Zélia
Gattai) sucumbia à realidade do Jardim Ângela. Hoje, Barletta, essa
impostura virou, no máximo e com muita boa-vontade, souvenir para
mau-caráter manipular deslumbramentos ou dar a bunda. Basta ver as
porcarias que o Ferréz escreve ou andar de ônibus por aí para entender
que a alminha brasileira não vingou.
—
Fudeu.
Quem
entende de compra e venda de negrinhas, almas vexadas, loteamentos na
periferia e comércio fast-food de acarajés, quem entende disso,
Barletta, é pastor da Igreja Universal do Reino do Edir: o resto são
crianças putas e o Brasil em volta, caindo aos pedaços. Taí, Barletta. É
o que tenho para chamar de antropologia. Um cara como eu, que anda de
ônibus por aí, não tem como escapar ao inferno tosco da verdade. E foi
assim, fugindo dessa verdade tropical, odara e criminosa, que chegamos a
Ipanema. Aí eu disse pra minazinha:
—
O insuportável só existe uma vez, baby (com exceção do Ed Motta, fiz a
devida ressalva, é claro).
Ela
pegou na minha mão e eu me senti um racista enternecido pelas auroras e
pela intolerância, quase um Hitler misturado com o autor de "Ossi di
Sépia" — tratava-se de outro contrafluxo, Barletta —, todavia sem os
molhes e os penhascos de Montale, porque estávamos perto do posto 9 e
nós (mais ela do que eu?) não devíamos ter cometido aquele beijo pela
metade.
Mãozinha
fria, a dela. Em seguida, Myrna escreveu o telefone no guardanapo,
"Myrna Corelli", e eu fiz questão de joga-lo contra o vento: na direção
sul, para dar um clima de deserto de Mojave na favela do Vidigal — e
para homenagear John Fante bem na hora em que o Hotel Marina acabava de
acender e eu e "Myrna, a garota do guardanapo", meio que sem perceber,
cantarolávamos umas canções da chupa-grelo mais talentosa (depois da
Ângela Ro Ro, é claro) da música popular brasileira. Um treco bonito.
Mas não conseguimos beijar pra valer. Em cima da gente tava fazendo —
como se isso "fazer uma lua", fosse possível — uma meia-lua turca e eu
tive que estragar o esquema ao enfiar a mão no rabo dela depois de dizer
que tudo o que eu lhe poderia dar era "solidão com vista pro mar". Myrna
corcoveou:
—
Por que você não enfia a mão na bunda da sua mãe? — foi o que disse
antes de ir embora.
Então,
Barletta, fiquei ali, ralhando com o ululante, sozinho e de frente para
o mar. O ululante era o seguinte: fazia uma meia-lua turca, como se isso
e a bunda da minha mãe fossem possíveis de frente para o mar, depois
daquele beijo.
Das
três minas que conheci no Rio, Barletta, essa, Myrna Corelli, foi a
única que me rendeu medias-lunas e algo parecido com um começo de noite.
As outras duas, além do sumiço, me deram um prejuízo de três a quatro
dúzias de reais (dois livros autografados) mais uma porção de salaminho,
camisinhas que usei a contragosto, azeitonas pretas e uns chopes
sorvidos com gosto de desespero e complacência pela figura triste e
obsoleta em que acabei me transformando. Ou seja, virei um tiozinho que
vestes largas camisas havaianas e dá tiros no pôr-do-sol. Virei um
tiozinho que escreve uns trecos bonitos. Às vezes exagero,
Barletta.
Tem
minazinha que acende o farol das tetas quando digo que "esse treco de
escrever é uma maldição", larguei tudo e não tem volta. O aluguel do
moquifo eu pagava com sofismas e a única lei era a do cheque especial da
minha mãe (e a da gravidade, porque nossa conta sempre foi conjunta)
misturada ou incorporada ao tráfico de tucanos e outras lorotas, uma
cruzadinha de pernas e araras azuis na serra da Canastra — em tempos
idos, querido(a).
O diabo do caráter que compromete. Daí,
Barletta, eu tinha que "limpar o 'espeto' entupido de sangue" (uma das
muitas gírias do meu repertório "junk" fora de moda) e explicava pra
elas, na medida de uma selvageria cuidadosamente distanciada, qual o
procedimento para se "interromper" a vida de um capangueiro
inconveniente e outra vez misturava alhos com bugalhos, o passado com o
presente (que era para valorizar a vidência) e também, Barletta, as
iniciava no processo de decupação dos brilhantes para, logo em seguida,
estabelecer a diferença entre a pureza das gemas e os melhores indícios,
marumbés e caboclos, para encontrá-los. Nesse ponto, fazia uma pausa,
retomava a cafungada e dizia pras minazinhas que, a despeito do
isolamento no garimpo e da eventual disposição do cozinheiro em dar a
bunda, dragas furiosas desviavam o curso do rio São Francisco para
chegar às piçarras, e Marivone, a "greluda", conseguia assorear até
cinco peões de uma só vez:
— Sabe, baby, eu era uma espécie de
xamã praquela gente. Um Rimbaud de Furnas e arrabaldes (etc., etc.
enfim, Barletta).
Ou um sujeito que mudava de signo
conforme a necessidade e/ou a intumescência dos mamilos das minas e que
não estava nem aí pras musas, endereços e paisagens. Isso tudo, porém,
com doçura, cinismo, algumas reticências sob medida e deturpações
generalizadas. Assim, Barletta, eu discorria sobre declives e a
primavera das lésbicas, caprichava nas falésias e alcançava o ápice,
veja só que situação curiosa (até para falar em "ambigüidade" eu fazia
um tipo) ao abordar as grandes depressões... onde? onde? No
Brasil meridional (?). Eia! A geografia mequetrefe da qual os momentos
mais dramáticos, você sabe, e os mais ridículos, como os pontos cardeais
— norte, sul, leste da p.q.p. e o oeste do deserto onde o Judas perdeu
as botas —, me foram se não legítimos, úteis; tanto na retórica da
vidência quanto na loteria dos mamilos. Se, por exemplo, Barletta, as
auréolas inchassem no litoral norte lá pras bandas de São Sebastião, eu
me obrigava a especular sobre restingas, marambaias e arquipélagos.
Quanto às flores, meu caro: eu usava orquídeas, principalmente:
— O corno é o último a saber — isto é
São Jerônimo da Pituba segundo Abelardo e agora você pode ir abaixando a
calcinha, meu amorrrrrr.
Ah, meu amigo. Não consegui pagar o
beijo e Myrna sumiu atrás das pedras do Arpoador. A partir daí escolhi
acreditar em dissipações, solos de bandonéon e noites únicas e
derradeiras. A extensão das carreiras cafungadas e das punhetas
intermitentes somada aos sonhos-de-valsa em papel celofane e aos
barbitúricos fora de época, imagino, devia ter alguma coisa a ver com
isso — no meu contrafluxo, Barletta —, e minhas gambiarras prediletas, a
bem dizer, acompanhavam esses e outros vagares relativamente brilhantes
depois de um tempo desperdiçado (sempre é tarde demais) e em virtude do
meu desalento, isto é, conhecendo-me como conheço — a cura e o perdão já
não surtiam o mesmo efeito de antes —, eu perco/perdia ou
estrago/estragava tudo aquilo que consegui ou cheirei a bem da verdade e
apesar dos pesares.
Ademais, Barletta, amanhã é feriado
aqui na cidade maravilhosa e eu não vou conseguir me suicidar antes do
meio-dia (o repertório, o maldito repertório... você me entende?). De
qualquer jeito, isso, "o meu repertório" e a morte são escolhas que fiz
e às quais me apliquei com esmero e dedicação e que, portanto, tenho a
obrigação de levá-los — a morte: ainda tenho alguma coisa comigo, eu vou
junto, sabia? — até o fim.
É isso aí,
Barletta.
Um forte
abraço do seu amigo e admirador,
Marcelo
Mirisola, Rio de Janeiro,
18 de
setembro de 2001.