Jorro

 

 

Sim, a minha antigüidade me levou para a minha inocência. Morderam-me seculares serpentes; deitaram-me em túmulos de látex; amaram-me em camas de nardo. Quando pude falar, surpreendi. Eunucos garanhões adoraram-me. Abri torneiras e tudo que estava preso jorrou: sêmens, larvas, mágoas, olores. Garças aproximaram-se, disseram-me que a vida é tecer, arder — tudo mais é morte, mamilos apodrecidos, detritos de auras, cólicas de cadáveres, ásperas línguas em ruínas. "Mas mesmo assim ainda é vida", murmurou-me uma antiga brisa que — há pouco — por aqui passou.

 

 

 

 

 

 

Esplendor

 

 

Desde que nasci, sinto-me assim: um país seqüestrado. Sustentada por esquálidas paixões. Incendiada. Minhas vestes de mulher selvagem foram queimadas. Minha língua cortada. Multiplicada. Dividida. Transformada em veludo. Álacre demais para os mortos vizinhos. Doce demais para corações à deriva. Deitei-me no Pátio da Poesia e esperei. O Amor escutou o meu chamado. Veio em carne viva, ergueu copos e taças. Caímos juntos. Crianças aladas nos levantaram. Era o Esplendor — nada mais.

 

 

 

 

 

Outras pérolas

 

 

Porque o ódio não me pertence, eu não odeio.

Crivo-me de ternura.

 

Evoco o meu destino.

Sagradas catedrais, protejam-me.

 

Doce ainda é o meu coração ajoelhado.

Doce ainda é a minha alma golpeada.

 

A juventude se despede

e outras pérolas aproximam-se.

Sábias. Com esmero.

 

Metade flor. Metade espelho.

 

 

 

 

 

 

 

Solar

 

 

Cadáveres despertam depois do amor.

Lágrimas choram e se estrangulam.

 

Não sou a mulher que você vê.

 

Não sei o que é o inverno

— nunca vi a neve.

 

O meu ofício é reinventar asas para o sol.

 

 

 

 

 

 

Quase Hécuba

 

 

Venho de lugares amplos.

Lugares onde a tristeza é só tristeza

— não é desespero, urro, desastre.

 

Estou rasgada, por isso retorno assim:

Querendo que um filho venha ao mundo

e me salve da tirania das ausências.

 

Neste jardim, celebro renúncias.

O que está perdido, não está perdido.

Tudo retorna. Mais secreto.

Mais intenso. Mais silencioso.

 

Espelhos naufragam.

Dor e desejo me socorrem.

Rainha ou rei?

Após perdas e perdas para Delos retornarei.

 

 

 
 
 
 
 
 
 
 
 

 

Meu segredo

 

 

Silêncio: ouço chegar o fogo.

Ofereço-lhe a minha casa e o meu zelo.

 

Lá fora o mundo chora

— essa dor é o meu segredo.

 

Namoro a flor que tocou o pássaro que tocou a noite que tocou o amor.

 

 

 

 

 

 

Suspensa

 

 

Oráculos me suspendem.

Ouço o Amor chamando.

Em cada país um diferente ungüento

para suportar a viagem.

O desejo é a curva.

O grande véu com o qual me cubro

— e prossigo.

 

Se você não voltar

os bailarinos ficarão órfãos.

Se você não voltar

a vertigem será silenciosa.

E não será o fim.

Será o início do grande segredo.

 

 

 

 

 

 

Nova ordem

 

 

Um silencioso menino senta ao meu lado.

Ele é tão leve que me faz procurar asas

no seu pequeno corpo.

 

Deve voar, penso eu.

 

Liberta-me o que ele me diz:

Sou o seu último amor. Sua nova ordem.

 

Amparo-me na lua que se mostra vermelha

— destinada ao extravio.

 

Agora sou mulher-folha, mulher-livro, mulher-esquife.

Tornei-me fiel ao canto do deserto.

 

 

 

 

 

 

 

Deus não veio

 

 

Eu não vi Deus.

Eu estava cega quando ele se mostrou.

Também não o ouvi.

Eu estava surda. Eu estava escura. Apagada.

Só os homens me interessavam.

Só eles podiam me matar com suas espadas pesadas,

com  seus dentes podres e suas flechas de ódio.

 

Quando caí, a senhora Traição me abraçou.

Algemaram-me as mãos e a alma.

Arrancaram rosas do meu coração.

Racharam-me inteira.

Dos meus cabelos fizeram grossas teias.

 

Depois, jogaram-me na fogueira.

 

Labaredas subiram ao céu.

Deus não veio.

Eu não pude esperar.

 

Queimei.

 

 

 

 

 

 

Assombro

 

 

Corais paralisam suas presas.

Observo neste aquário tubarões de terrível beleza.

 

Quem me lançou dardo, deitou-se comigo.

Quem me amordaçou, gozou em silêncio.

 

Tenho na bolsa um coração assombrado.

Mas tão inocente e jovem que dá medo.

E me sustenta.

 

 

 

 

 

 

Inteira

 

 

Iluminada por oráculos

alimento anjos com asas quebradas.

 

Não é de vendaval que eu preciso

mas da língua do amor guardada à beira-mar.

 

Não entendo de círios

mas de verões e sargaços bailarinos.

 

Acolhida pela província,

arrisco-me  a enlaçar orquídeas em árvores.

 

Sempre sofri.

Sempre tive febre.

Sempre estive inteira em todos os infernos.

Nunca quis ser abandonada.

Mas aprendi a perder.

 

O naufrágio me ensinou a ternura dos afogados.

 

 

 

 

 

 

De seda

 

 

Sepultei-me.

Mas o meu coração me trouxe de volta.

 

Eis-me de seda. Molhada.

De onde estou,

consigo ver o que perdi:

um convés adornado de falsos ciprestes.

Estou entre seres de pêlos, penas, folhas.

Eles sabem quem eu sou, de onde vim,

quanto lutei para não ser tragada.

 

Sepultei-me.

Mas não estava fugindo.

Foi o meu jeito de não me perder.
 
 
 
 
 
 
 
(imagens © theo berends)
 
 
 
 
Marize Castro (1962), poeta, jornalista, autora dos livros Esperado ouro (2005), Poço. Festim. Mosaico. (1996), Rito (1993) e Marrons crepons marfins (1984). Tem textos publicados em revistas nacionais e internacionais, como as norte-americanas International Poetry Review e The American Voice. No Brasil, a poeta publicou em jornais e revistas como Exu (BA), Nicolau (PR), O Galo (RN), Estado de São Paulo (SP), Jornal do Brasil (RJ) e Poesia Sempre (RJ). Sobre sua poesia disse Haroldo de Campos: "Em seus versos há algo de fundamental, algo entre o belo e o verum, a verdade em beleza, um cuidado especial com a síntese, um encontro com a poesia".