"Um homem de gênio raramente foi arruinado senão por ele mesmo".
[ Samuel Johnson 1709-1784 ]


 
Aposto um samba de Lupicínio Rodrigues que o 250º aniversário de Mozart vai ser mais celebrado no planeta do que o 400º aniversário da primeira edição do Dom Quixote de La Mancha. Não tem para onde correr: em toda parte o público da música é sempre maior que o público da literatura. Não dou a mínima importância a isso, mas o precoce e polêmico Mozart, com essa história de tocar — e bem — cravo e violino, aos cinco anos, espanta até um boneco de Vitalino. Toco nesse conhecido fenômeno, para beliscar a curiosidade de meus milhões de leitores. Mozart talvez seja o tema desta crônica. O mundo anda tão falto de assuntos, todo dia é a mesma coisa: violência urbana, milhares de mortos, milhões de assaltos e as guerras de sempre, essa rotina que dá tédio.

 

Bem, meu pai vivia dizendo que Beethoven era o filósofo da música, Bach, o matemático, e Mozart, o poeta. Durante os meus 63 anos de baixíssimo índice de desenvolvimento humano, segundo a ONU, todas as referências e citações que li sobre o compositor austríaco eram fanaticamente elogiosas. Eu, de longe, porque não era o meu curral, continuo seguindo o aboio geral. O compositor nasceu no século 18, em 1756, e houve muito tempo para ser despejado da corte dos maiores. Se o não fizeram, é que o artista mereceu, mesmo, seu bosque de loureiros, ou seus advogados eram desses que libertariam o próprio Saddan Hussein.

 

Estava eu suando como burro velho, quando PUM! Levei um soco no olho. Quando zonzo o abri, estava lendo o artigo "O Rei da musak", de Norman Lebrecht, no caderno "Mais" do jornal Folha de S. Paulo. Eu não sabia o que era musak, felizmente o próprio articulista se encarregou de definir: "som ambiente de escritórios e elevadores" e, portanto, de salas-de-espera, de espera telefônica, essas coisas. Como Lebrecht denominou Mozart rei dessa droga, seria bom saber quais de suas seiscentas e tantas obras se prestam a tal subestimação.

 

O artigo é um soco, um pontapé, uma cabeçada na memória universal de um dos maiores ícones da música ocidental. "A Hulk modo", cheguei a listar 17 observações negativas sobre aquele artista. Não vou citá-las uma a uma, até porque o Salieri de bordel certamente não sabia que, quem toca no santo, apanha. Vejamos o que saiu de sua cloaca: "Mozart é uma ameaça ao progresso musical!". Outra: "Ele não foi tanto reacionário quanto retrógrado". Outra (esta comparou chimpanzé com agulha de crochê): "Mozart pode ter sido um gênio musical, mas não foi um Einstein!".

 

Tocou no santo, tem de apanhar. E a primeira pisa, quem a deu, no Brasil, foi o jornalista Alberto Dines, no artigo "Contracultura & Contramão" — "Folha se Atrapalha com Mozart", na bucha e no site Observatório da Imprensa.

 

Para a legião de brasileiros "mozárfilos" (será escrito assim?) indignados com a cafagestada do citado crítico, mas impotentes para reagirem, a resposta virtual de Dines foi uma lavagem de burro. Procura desancar aquele oxímoro ambulante, num de seus ódios a Mozart, o da Áustria vender certo tipo de chocolate com a efígie do compositor. E pergunta: "A associação do nome de Bach com um bar pode desmerecer a qualidade do gigante da música?". E quanto a ser ele qualificado como "Rei da muzak"? Dines usa um argumento semelhante para os casos de música-ambiente que usa composições de Tchaikovisk, Schubert, Bizet e Haendel. E, fugindo do gênero música, ainda pergunta: "O teto da Capela Sistina deve ser considerado 'arte menor' apenas porque algumas de suas imagens são usadas e abusadas pelos programadores visuais?".

 

No seu rastro, a Folha de S. Paulo presenteou o público leitor com uma enxurrada de matérias sobre o compositor. Na verdade, Alberto Dines fixou-se mais na atitude do citado jornal, por publicar tão velhacas e inverídicas acusações a Mozart, no ano em que o planeta celebra seu 250º aniversário de nascimento. Tem sido o papel de Dines criticar a ética do jornalismo brasileiro. No que se tem revelado um mosqueteiro imbatível. Ele lembrou que, originalmente, o pífio texto fora publicado em outro país, em 2005. Com toda a certeza, no periódico La Scena Musicale, traduzido por Luiz Roberto M. Gonçalves e publicado neste 2006, Ano de Mozart.

 

Meu pai, que, praticamente, só ouvia música clássica, mas gostava de alguma coisa popular, como Chico Buarque e Luiz Gonzaga (e quem não gosta?), fez-me ouvir, na infância, Mozart e outros compositores clássicos. Desse tempo lembro ter gostado de Liszt, Beethoven, Schubert, Vivaldi e Chopin, mas só pedaços esparsos de sonatas, sinfonias e músicas ligeiras. Da vida deles ficaram alguns flashes paternos já opacos, em especial de Beethoven e Chopin.

 

Só nos meados da década de 80, tive contato com a vida tumultuada e breve (35 anos) de Wolfgang Amadeus Mozart. Foi através do filme Amadeus (8 Oscars) de Milo Forman. O filme é uma adaptação de uma peça de Peter Shaffer, que também foi seu roteirista. Aos que reclamavam das imprecisões históricas, Shaffer alegava que não estava querendo ser propriamente um biógrafo do compositor, o que pretendia era criar, na peça e no roteiro, uma fantasia em torno de sua vida.Tenho um LP com a trilha musical. Lembro-me de que o filme castigava nas presepadas de Mozart e no roer de unhas da inveja de Salieri, principal maestro da corte austríaca. Hoje, parece que tomando carona nas celebrações, as locadoras já exibem a versão em DVD do filme. Para mim, ele não é uma fantasia, nem uma elegia, mas uma alegoria. Apesar de assisti-lo como a uma comédia, gostei do filme de Milos.

 

 

 

março/2006

 

 

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[Texto publicado originalmente na coluna "Marco Zero", da revista "Continente Multicultural", 2002]

 

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Alberto da Cunha Melo (Jaboatão/PE) — Poeta, sociólogo, jornalista. Vive em Olinda. Publicou 12 livros de poesia. É considerado um dOs Cem Melhores Poetas Brasileiros do Século, seleção de José Nêumanne Pinto (São Paulo: Geração Editorial, 2001). Mais no Plataforma para a Poesia.

 

 

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