Mais uma vez a noite chega e o iTunes do computador joga em meus ouvidos "Modinha", de Tom e Vinicius, cantado por Elis Regina; depois, a "Modinha" de Francisco Mignone pelo violoncelo de Antonio Menezes.

 

Mais uma vez a memória e as sensações me jogam para uma vida anterior, uma vida pregressa acho, não tão longe mas já tão distante, de tantos vazios, de tantas noites insones, tantas elucubrações em torno de uma fantasia vã.

 

A casa era enorme. Eu ficava no terceiro pavimento, transformado em escritório, com estantes de jacarandá e, na frente, a companhia solitária de um computador. Nem mesmo o barulho das meninas conseguia me tirar daquele transe que começava na sexta à noite e se estendia até segunda de manhã.

 

Aí, acordava, ia andar nas ruas do condomínio, pensando em uma cortina de veludo que me separasse das lembranças de guerra fratricida recente, de feridas ainda não cicatrizadas. Com esse estratagema conseguia me libertar um pouco e sonhar, pensar em outras eras, em outros momentos, sentir saudades do futuro que nunca chegava, e completar a caminhada.

 

Como conseguia evitar o pânico, a depressão, a loucura, lá sei eu. Você começa a elaborar hipóteses, criar pequenas flores de fantasias no pântano, juntar raciocínios que idealizavam situações que, de cabeça fria, eram claramente inviáveis. Mas, com o mundo afundando ao meu redor, aqueles truques funcionavam como pequenas bóias, ajudando a atravessar a semana até a noite da sexta-feira seguinte, quando voltava a mergulhar na solidão do escritório.

 

Meu Deus, como são as armadilhas que a cabeça nos prega! Como Minas Gerais pesa! Tinha passado a vida com medo do acomodamento. Bastava um mínimo de perspectiva de estabilidade, para o vulto de meu pai aparecer em meus sonhos, com a longa agonia dos seus negócios, com sua perda de pique, sua luta solitária e incessante até ser derrubado por um AVC. E aí entrava em um medo pânico da morte, como se estabilidade significasse morte.

 

Quando cedi e procurei a análise, certa vez comentei com o analista meu receio de jogar muitas expectativas nos ombros das filhas. Ele me tranquilizou, me garantindo que era bom, pois sua mãe não criou expectativas para você? Criou, respondi-lhe. E ele falante e lampeiro perguntou quais? E eu lhe disse que ela me incumbiu de mudar o país. Ele ficou mudo e me olhou com ar de pena.

 

Foi quando a conheci, jovem demais, com uma paixão irrefreável pela vida. Em um primeiro momento, percebi a delicadeza sutil, escondida em uma falsa agressividade com os ectoplasmas que habitavam os primeiros programas de chat. Depois, descobri a delicadeza das canções que me sugeria, dos poemas que me enviava, de Cecília Meirelles, de Clarice, de Vinicius, de Bruno Tolentino. A cada dia, um poema que refletia, com pontaria certeira, meus sufocos de cada momento. E, mais surpreso ainda fiquei quando descobri que guardava aquelas jóias apenas para ela, não compartilhava com namorados, os agroboys disponíveis para as mocinhas do interior.

 

Com ela aprendi a paixão, descobri todas as nunces da delicadeza, recebi aulas de carinho e lições de nobreza. Quase dez anos depois, me encanto a cada dia com cada gesto, cada ritual doméstico, quando coloca "anjinhos" no pescoço das meninhas, para que sonhem o sonho bom ou quando fica até tarde bordando camisetas com o apuro das jovens senhorinhas d’antanho, para presentear amigas, funcionárias. Quando levanta de manhazinha para preparar os cabelos das filhas, penteando, colocando fivelas.

 

Ou quando ensinou a mocinha evangélica da empresa a se enfeitar. Na sua festa de formatura, trouxe-a para casa e, com suas mãos mágicas fez tranças em seu cabelo, maquiou seu rosto magro, bordou bordados de rainha em seu vestido humilde, colocou sonhos de princesa em sua imaginação. Ou quando escreve cartas de pura magia, poesia pura como uma Clarice rediviva.

 

Na guerra diária, veste a armadura dos guerreiros e parte para a frente de batalha com o destemor de uma Joana D'Arc, enfrentando com fúria os que ousam ameaçar os seus. Depois, à noitinha me espera lendo e bordando, e se refugia nos meus braços contando seus feitos, repartindo seus receios, me inundando de paixão.

 

Em noites particularmente nostálgicas, quando ouço "Modinha" e a vejo, e as menininhas, quando percebo as grandinhas se firmando, me passa a sensação de que minha solidão permanente, agora, tem companhia.

        

 
 
agosto, 2006
 
 
 
 
 
 
 
Luís Nassif, introdutor do jornalismo de serviços e do jornalismo eletrônico no país. Comentarista econômico da TV Cultura. Vencedor do Prêmio de Melhor Jornalista de Economia da Imprensa Escrita do site Comunique-se em 2003 e 2005, em eleição direta da categoria. Membro do Conselho do Instituto de Estudos Avançados da USP e do Conselho de Economia da FIESP. Autor de O jornalismo dos anos 90, e Menino de São Benedito, finalista do Prêmio Jabuti de 2003 na Categoria Contos/Crônica. Em 1995 lançou o CD Roda de choro, solando bandolim, semi-finalista do Prêmio Sharp de Música Instrumental. Edita o blogue Luís Nassif Online.