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Noite fria, névoa na Atlântica, o Cristo melancólico, luz pálida detrás da cortina garoada, a cidade cansada, insone. 

As espeluncas da Prado Júnior com as portas cerradas, não a nossa, e nós ali, boêmios da enrugada e velha guarda, calados, nos copos, cerveja estagnada, chocha, choca, sobre a mesa, marcas deixadas por garrafas, nos pires, guimbas amassadas e cinzas voláteis, silêncio esfumado, luzes camufladas.

A porta abriu-se barulhenta, ela entrou, levantamos as cabeças, devagar, com preguiça, um perfume violento invadiu nossas narinas, coloriu a fumaça adormecida, a energia que trouxe com ela chocou-se com nossa letargia mórbida, nós, ruínas do passado, ela, incandescente beleza.

Olhares empapuçados se cruzaram, ninguém a conhecia, jamais fora vista nos palcos devassos, uma corça, é isso que ela era, filha de quem ouve o canto de pássaros e guarda no coração o ar da montanha, mulher dentro de mulher.

Veio exibir-se para o bando de desajustados? Envolver-nos em sua magia?

Carlão, que não passava nem um dia sequer totalmente sóbrio, achou que era a Cinderela, a eterna virgem, gemeu e desfaleceu, deixou a cabeça cair no prato de pastéis. Contou-me depois que sonhara um sonho do qual não se lembrava e no dia seguinte, depois de pedir-me dinheiro, foi para o seu cortiço, mandou-me de volta a grana sem ser cobrado, milagre: alguns encontram salvação numa pizza dormida, outros, num rosto de mulher bonita.

Tudo pode acontecer num bar escuso e escuro, refúgio de sobreviventes alquebrados, clube de suicidas, de mutilados cerebrais, de venenosos répteis urbanos, e eu, a quem meus pais ensinaram a não encarar pessoas desconhecidas, peguei meu copo com cerveja quente, pelo canto do olho vi os demais fingindo tédio, ouvi uma cadeira ser arrastada, alguém se levantando e fazendo a eletrola piscar suas luzes pecaminosas, inútil tentativa de espantar o desespero. 

Segurei Dolores, cafetina aposentada, mulher do Ricardo Coração de Rato, que sorrateiro e ligeiro entregara à bela da noite um copo com bebida, tirado não sei de onde, a madame empunhava uma faca, queria furar a menina.

Tentei ver detalhes do rosto dela, a semi-escuridão me impediu, mas assim mesmo eu sabia, eu tinha certeza que ela sorria, seu corpo inteiro sorria, seus olhos cintilavam, brilhavam, iluminavam meu interior, sua pele translúcida emitia uma aura angelical, o nome dela iniciava com a letra S? Eu amara dezenas de mulheres com o nome iniciando com S, três Sônias, quatro Saras, duas Sílvias, Serena, Solange, Sabina, Sálvia, Samanta, Sandra, Selma, Sheila, Shirley e até uma Sebastiana, não ousei perguntar, gritar, — seu nome começa com S? —, como explicar o que eu sentia? Não há em nossa língua palavra que possa explicar meu colapso, minha prostração, talvez se me esforçasse, se os pensamentos não se amontoassem em desordem, se conseguisse raciocinar, me acalmaria, mas não nesse local pútrido, saí pra rua, na noite fria, à procura de estrelas inexistentes, olhei as luzes congeladas na escuridão, talvez fosse hora de remodelar meu destino...

Formado em Direito, com louvor, desisti, que ficassem com as suas leis, com o seu latim, praticar advocacia nas ruas com as mãos, com os pés, com o corpo, com o copo, impossível, a primeira e inocente namorada: eu arrombara a garota-modelo e cuspira no rosto da lua... tudo é algo que não é, todos estão sempre em lugares que não deviam estar, talvez seja essa cidade, estar nessa cidade safada, sacana, que me fazia sentir como tudo era diferente, que toda mulher não era apenas mulher, todas arrancavam algo de si, os segredos, te despiam e desapareciam,  mas ela, a corça me devolveria o passado, certeza absoluta... voltei à vulva de estimação, entrei na espelunca a tempo de escutar Tim Rin Tin Tin se vangloriar de que soprara ao ouvido dela palavras mágicas e que ela lhe concedera favores, ninguém acreditou, nem mesmo ele, que num grito sofrido insistiu:

o que é que uma garota como você veio fazer num antro como esse?

Eu também queria saber o que nós todos fazíamos ali.

Olhou-nos, não respondeu, mulher igual a ela só ouve o que quer, mas não é assim que todos agem?

O perigo nos persegue, não há como saber como e quando nos alcança, sonhamos demais, a criança presa dentro daquela garota, selada com lambidas da esperança, nadando em direção das glórias, estava fora do nosso contexto, deslocada, em desarmonia, aqui não era uma pensão para senhoritas, mas apenas um pesadelo sórdido numa cidade assassina, e ela à mercê de estranhos, seu hálito de corça inalado por moscas, baratas e escorpiões.

Surpreendeu-nos, pegou uma cadeira, subiu nela, esticou os braços, alongou o pescoço, alcançaria as estrelas? pulou sobre a mesa, sapateou sobre nossos dedos, pisou nos nossos nomes, descalça, bailou sobre o piso ladrilhado como se para crianças desabrigadas,

não  me abandone, querida menina, por uma colheita num campo de trigo,

tirou o vestido,  parecia despir-se das lembranças, dançou para nós, seus amantes-faz-de-conta, era o mito surgido de um outro universo, era o banquete tão desejado, a corça que atravessou o campo amaldiçoado, que graciosa e sorridente nos olhava, olhamos de volta.

A música parou e eu também parei, observei-a enfiar pela cabeça seu vestido vermelho desbotado, calçar seus sapatos remendados, aparecera-nos sem aviso, numa quase madrugada triste, soprando névoa de perfume barato, seu rosto agora, pareceu-me disforme, como se visto através de uma janela empoeirada.

é Stela, seu nome é Stela, não é?

Um silêncio monástico acompanhou-a até a porta, levou consigo o ar das montanhas, minha infância.

 

 

 

 

Iosif Landau (Bucareste-Romênia, 1924) - Vive no Rio de Janeiro desde 1940, onde se formou em Engenharia e se casou com uma brasileira, teve quatro filhos, oito netos, se aposentou depois de viajar pelo país inteiro a trabalho, começou a escrever (tinha 70 anos), publicou 12 livros — o primeiro foi Comissário Alfredo (Editora Record, 1995) e tem alguns, inéditos. Mais aqui.