©jan groover
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
A última vez que a garota veio vê-lo parecia fazer tanto tempo que, por fúria ou em sinal de castigo, ele mordeu suas costas até deixar nelas várias manchas circulares, assim desenhadas por causa dos arcos dos dentes, e que, por sua vez, formavam um outro círculo, maior e mais perfeito, urdido com a simetria dos que acreditam no método acima de tudo. Ela aceitou a fúria, ou o castigo, com olhos semicerrados e as sobrancelhas franzidas dos sofredores, erguendo, enquanto isso, o quadril livre das manchas como uma tela em branco, esperando a destreza dos dentes nas nádegas, embora estas nunca, nunca mesmo, por mais forte que fosse a violência recebida, exibissem quaisquer sinais de maus-tratos. "Feitas para apanhar", dizia ele das nádegas, tomando a parte pelo todo. Hoje ela está atrasada e por um momento ele suspeita que ela não venha, que não venha nunca mais. Depois, entre um gole e outro de alguma bebida, ele se anima e acredita que sim, que ela virá, que, ali, no lugar que erigiram para a profanação, o espaço exíguo de uma cama, ela precisa tanto do sofrimento quanto ele precisa ferir. Não se trata de um sofrimento qualquer, infligido a qualquer um que o suporte, mas nela, que, apesar das fortes nádegas, não é nem jamais foi, e ele o sabe, talhada para a dor. O que ela suporta, pois, é como o heroísmo dos queimados vivos. Ela tampouco permitiria que outro a ferisse, porque ele, com seu método, tem a medida exata ao calcular o peso que depositará nas próprias mãos, grossas e largas, feitas para espancar, quando o chicote descreve no ar uma parábola, e só a ele, que lhe descobriu a vocação servil, cabe o direito à propriedade. Enquanto aguarda, ajeita delicadamente no aparador da entrada o maço de flores que comprou para ela, cantando repetidas vezes os versos you who wish to conquer pain, you must learn what makes me kind... com todas as suas variantes, e imagina-a entrando porta adentro, esbaforida, correndo para beijá-lo, tropeçando nos móveis, cheirando as flores e falando da visceralidade do último filme a que assistiu, do livro que está lendo, do poema que tentou escrever, sempre viscerais como o filme, porque essa é a única coisa que a atrai na arte. Eles conversarão então sobre livros e ele lerá, a pedido dela, mais algum capítulo de um romance interrompido na última vez. Beberão vinho e irão para a cama, onde costumam passar horas seguidas dedicados não apenas ao estetismo de seus corpos mas às trivialidades do cotidiano, às memórias vividas, que não raro despertam lágrimas e um poderoso sentimento de redenção. No começo, ela lhe beijará os pés por entre os dedos, deixando um pequeno rastro de saliva na superfície sinuosa, para depois se deitar sobre o peito dele, brincando com seus pêlos, devagar, como se já ensaiasse o sono que os afastaria. Ele a apertará contra si num gesto quase brusco, como que para despertá-la, cravando as unhas em suas costas até que no rosto dela se possa ver, com o canto do olho, a expressão de mártir. Com rapidez, alcançará uma sacola embaixo da cama, onde guarda o chicote, as cordas, correntes e algemas. Já não percebe a progressão na intensidade dos seus gestos que, de um tempo para cá, têm feito mais altos os gritos dela e mais duradouras as feridas. Com uma longa corrente, ele a amarrará dos pulsos erguidos no alto da cabeça aos tornozelos, criando motivos geométricos cuja intersecção se dá entre os seios, sobre o ventre e no meio das coxas. Apertará os mamilos com pregadores de roupas que ela recusará num primeiro momento, mas que, logo em seguida, ela mesma irá alcançar e estender-lhe com a boca, para seu regozijo. Ainda presa, mas com os seios soltos, terá seu corpo, incapaz de movimento, virado de bruços e espancado até a exaustão dos braços dele. Ele, logo que detiver os olhos em suas costas, admirará todos os ferimentos que causou, pensando que ela, sem dúvida, fica muito mais bonita assim, com o sangue na superfície da pele agora avermelhada corando sua eterna palidez de morta. Mas à dolorosa contração dela ao seu toque de carinho, será tomado pelo desespero dos sonâmbulos que despertam depois do crime. Arrependido, ele se amaldiçoará, ensejando o movimento de recolher todos os instrumentos do sortilégio e levá-los para o lixo, na impossibilidade de arremessar lá, também, as próprias mãos. Ela o deterá, advogando que antes o sofrimento na cama do que fora dela, e ele, por fim, instaurando o momento em que o ideal de cada um, tão oposto mas tão complementar, conflui para um mesmo ponto, cuidará de suas feridas, uma a uma, com zelo de samarita. Se ela vier.
 
 
 
março/ 2006
 
 
 
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Leila Guenther reside em Campinas. Graduou-se em Letras pela Universidade de São Paulo, onde foi finalista do Projeto Nascente, na categoria texto, nos anos de 1999 e 2002. Teve alguns de seus contos publicados na revista Ciência e Cultura, em Jandira — Revista de Literatura e no jornal Rascunho. Prepara a publicação de seu primeiro livro, O vôo noturno das galinhas.