©danny mcbride
 
 
 
 

Prepare-se para entrar no território do susto e da epifania: fenômenos assombrosos ocorrem o tempo todo nos contos desta coletânea. Mas não espere golpes baixos e tremor de terra, pois tudo aqui é delicado e tranqüilo, como só os mais profundos mergulhos oníricos costumam ser.

Cuidado. Entre devagar nesse mundo em que a causalidade já não impõe mais sua triste e enfadonha lei. Nesses contos, edifícios nascem, crescem e morrem como qualquer pessoa, senhoras viajam na própria imaginação, meninos pensam que são patos e meninas tentam dialogar com porcos. Como eu disse, prepare-se para entrar no território do susto e da epifania.

 

Tereza Yamashita1

 

 

© Algum lugar em parte alguma, de Nelson de Oliveira.

Rio de Janeiro: Editora Record, 2006. Quarta capa.
 

 

 

Todos os domingos Madalena tira da caixa seu chapéu predileto, de cor indefinida, ora vinho escuro, ora cinza quente, com uma discreta pluma na lateral, veste-se com a melhor peça do guarda-roupa, um vestido cheirando a dezembro, vermelho e amarelo, e, depois de escancarar as janelas para que os primeiros raios da manhã possam incinerar seu quarto, desce as escadas do hotel onde mora há vinte e sete anos e dirige-se quase que instintivamente em direção ao parque, bom dia seu Estevão, bom dia dona Matilde, bom dia seu Antônio, cortando caminho pela feira de antiguidades, que todos os domingos se espraia na frente de seu hotel, e enchendo de bons-dias o coração dessa gente tão afável, ela também não deixando de ser mais uma antiguidade entre as demais, o sol radiante como sempre, afinal é domingo, todos os domingos Madalena põe seu chapéu, sempre o mesmo chapéu de feltro, veste-se com a melhor peça do guarda-roupa, sempre o mesmo vestido vermelho com grafismos amarelos, escandaloso, e vai, contando o número de azaléias que a acompanham ao passar ao largo de determinado edifício, o número de coqueiros enfileirados no canteiro que separa as duas pistas da avenida, o número de degraus que ligam a rua Maria Antônia à praça Gaspar Dutra, até o parque, até seu banco de madeira predileto, esse em que ela senta todos os domingos, posicionado diante do chafariz, tendo a lagoa à esquerda, o coreto à direita, a pista de corrida atrás e o extenso gramado à frente, sentada numa das pontas do banco Madalena abre a sombrinha — afinal, apesar de ninguém ter se lembrado de mencioná-la, ela jamais se esquece da sombrinha laranja com babados brancos, nem do colar de pérolas falsas — e põe-se a observar as pessoas ao seu redor, feliz por estar mais uma vez no local mais quente e agradável do continente, no centro do universo, um chapéu de palha com uma fita azul rola, levado pelo vento, na direção do lago, em seguida uma menina com um vestido azul combinando com a fita do chapéu passa correndo, vai no seu encalço aos gritos, ela corre tanto que logo cruza a frente do chapéu, não consegue parar, tropeça e cai na grama, ao cair, o dito-cujo, ainda à mercê do vento, torna a passar por ela sem se desviar um milímetro sequer da direção do lago, a menina não chora, não fala nada, levanta-se de um pulo, corre e novamente cerca-o, ao tentar pegá-lo ele escorrega por entre suas pernas, ela se vira, ele, dando meia-volta, torna a escorregar, ela solta um gritinho de excitação e se joga sobre ele, como um goleiro que estivesse sofrendo sucessivos dribles do atacante adversário, conseguindo apanhá-lo finalmente, para o alívio de Madalena que só então volta a respirar, a menina retorna saltitante, passando na frente do banco, o chapéu muito bem enfiado na cabeça e uma das mãos sobre ele, por precaução, pelo menos até que pare de ventar, o parque é grande e muita gente estranha passeia nele, Madalena observa de longe um grupo de velhos na orla da lagoa, todos parados, seis ou sete estátuas saídas de algum asilo das redondezas, olhando o espelho ondulante, como se dezenas de pedrinhas houvessem acabado de ser atiradas nele e, em vez de fragmentá-lo, tivessem apenas formado vários pontos em sua superfície, velhos muito bem vestidos, eles de terno e gravata, elas, como Madalena, de sombrinha e chapéu, o vento mexendo com suas saias, com as fitas e os babados, vento por todos os lados, levantando e levando folhas secas daqui para lá, movimentando o mundo e os devaneios, os velhos, por outro lado, estáticos, não se mexem, apenas olham o fundo da lagoa, talvez desejando se atirar dentro dela, um dálmata se aproxima mansamente do mais velhinho do grupo, um senhor encurvado, pré-histórico, apoiado numa bengala de mogno, alheio a tudo, aproximando-se mansamente o dálmata começa a farejar o traseiro do velho que num pulo põe-se na defensiva, ofendido, filho da puta deviam proibir a entrada de vira-latas nos parques públicos, os outros velhos viram-se pra ver o que é que está acontecendo, o velhinho farejado espanta o dálmata com a bengala e, devido ao movimento brusco, quase cai n’água, o dálmata afasta-se um pouco, pára e fica olhando o grupo a uma distância segura, fica olhando olhando, o olhar tão perdido nos velhinhos quanto o destes na lagoa, como se tentasse se lembrar de alguma coisa, alguma coisa há muito esquecida, mas não consegue, ou não pode, afinal jamais foi dado aos cães lembrar-se do que quer que seja, pelo menos não aos domingos, os integrantes da banda dominical vão chegando aos poucos, já são quase nove horas e Madalena, ao vê-los tão apressados e sorridentes, não consegue deixar de pensar como é engraçado o uniforme desses senhores, de cetim azul-marinho com galardões vermelhos — apesar de que pode muito bem ser de qualquer outro material, até mesmo de plástico —, pequenas escovas laranjas nos ombros, cordões brancos cruzando o peito, cinto cinza e botas pretas, boné também azul-marinho, traje parecido com o que os bravos soldados da sétima cavalaria devem ter usado antes de ser massacrados pelos sioux, moicanos, txucarramães ou seja lá por quem, o bumbo e três trompetes saúdam-se jovialmente, saltitam e valsam como adolescentes apesar de também eles terem bem mais de meio século de idade, estão todos ao redor do coreto, agora estão todos dentro do coreto, cada um ajeitando sua partitura, solenes e silenciosos, na certa se preparando para a estréia da Nona sinfonia ou de alguma tetralogia wagneriana recém-descoberta, mas o que vem em seguida, do sopro e da percussão, é o mais delicioso tango que Madalena jamais ouviu em toda a sua vida, ainda que seja o mesmo tango ouvido por ela domingo retrasado, ainda que seja o mesmo tango com que a banda abre os concertos domingo sim domingo não, a música cai sobre as pessoas naturalmente, ressaltando o que há de melhor nelas, suas roupas, seus penteados, a cor de cada um, de cada objeto, verde, amarelo, vermelho, cinza, destacando-as, como costumava acontecer nas antigas fotos de família, antes tão esplendorosas hoje tão desbotadas, depois do bolero vem uma valsa, depois da valsa uma polca, as crianças formam um cinturão em volta do coreto e põem-se a rodopiar, a princípio devagar, depois com tanta velocidade que Madalena tem de fechar os olhos para não sentir vertigem — Madalena sempre sente vertigem ao ver as crianças rodopiar —, uma garota de moletom azul senta na outra ponta do banco, não tarda e um rapaz de bermuda e camiseta vem encontrá-la, saindo da pista de corrida e sentando ao seu lado, exausto, o rosto pegando fogo, a garota tira de uma bolsa uma toalha e joga-a no peito do rapaz para que este possa enxugar o suor, Madalena empertiga-se sem dar na vista, a fim de ouvir o que dizem, todos os domingos Madalena tira da caixa seu chapéu predileto, veste-se com a melhor peça do guarda-roupa e, depois de escancarar as janelas, desce as escadas do hotel onde mora há vinte e sete anos e dirige-se quase que instintivamente em direção ao parque, a fim de ouvir sub-repticiamente o que as pessoas têm a dizer umas às outras, sempre que você deixa os tênis em cima da cama é como se eu voltasse no tempo então eu experimento novamente todas as vezes que meu irmão fez o mesmo quase sempre depois da aula de educação física que coisa nojenta tirar as meias suadas os tênis e deixá-los em cima da cama a tevê ligada um pacote de salgadinhos numa mão uma coca-cola na outra, o rapaz, no entanto, não dá a menor bola ao que a garota lhe diz, depois de enxugar o suor da testa e do pescoço atira a toalha de volta na bolsa aberta, reforça o laço dos tênis e volta para a pista de corrida, sem dizer uma só palavra, a garota resmunga qualquer coisa, fecha a bolsa, levanta-se e vai embora, talvez para casa, talvez para o apartamento da mãe, talvez pro inferno, deixando Madalena a ver navios, as orelhas sintonizadíssimas como radares em tempos de ataque aéreo, logo que a garota se vai um casal de velhos senta ao lado de Madalena, não exatamente ao lado, uma cesta de piquenique de quase um metro de largura separa-a do casal, mesmo assim, na certa por ela estar com os sentidos bastante aguçados, o intervalo que os separa não impede Madalena de ouvir sua conversa, porém eles pouco falam, estando como estão absortos na deslumbrante valsa vienense que vem do coreto, a trilha sonora mais adequada para o desfile de pantalonas, bermudas, regatas, minissaias, tomara-que-caias, miçangas, gargantilhas, chinelos, tamancos e sandálias que de uma hora para outra, sabe-se lá saído de onde, passa a turvar a visão que os três, sentados a poucos metros do coreto, têm dos músicos, eclipsando-os, Madalena, cercada de tamanha multidão, sente-se cheia de vida, inebriada com o mimetismo dessa gente cuja diversidade cromática a deixa quase cega, uma menina de uniforme escolar dá a volta no banco, rindo e gritando, fugindo de um amigo invisível, que é que uma menina estaria fazendo uniformizada em pleno domingo?, os três no banco parecem estar se perguntando a mesma coisa, subitamente quinze outras meninas, todas de uniforme, passam em desabalada carreira, rindo a bandeiras despregadas, dão a volta no banco, talvez porque estejam fugindo de uma matilha ou de algum duende, sempre às gargalhadas, fazendo Madalena levar instintivamente as mãos à boca, ai!, no rastro da garotada vem a professora, parem com essa algazarra todas em fila deixem de ser malcriadas, no rastro da professora, trazidas pelo vento, vêm folhas de todo tipo, trevos-de-quatro-folhas, melindres, cissus, dracenas-listradas, comigo-ninguém-pode, fitônias, tinhorões, todas rebolando ao som do samba-canção que a banda despeja sobre o público, quando a nuvem de interferências se dissipa a atenção dos três no banco recai mais uma vez sobre a vasta extensão de grama parcialmente ocupada por toalhas de piquenique de todos os padrões, xadrez, listradas, com bolinhas amarelas, de repente a figura sui generis de uma senhora vestida com trajes pesadíssimos, à Luís XV — sapatos afivelados, meias e mangas com babados, lenço de seda bordado com delicadas filigranas, além de uma sombrinha com cabo de marfim —, aproxima-se do banco e pára a uns dois metros de Madalena apenas para enxugar o suor da testa, o rosto pálido de tanta maquiagem, quase tão branco quanto a peruca que está usando, palidez que o deixa com certo aspecto de felicidade e imponência difícil de se encontrar hoje em dia, esse rosto exageradamente afetado, como se ela tivesse acabado de receber de algum ministro francês o título de Chevalier des Arts et des Lettres, que é que estará passando pela cabeça dessa mulher?, ela tem vontade de tirar da bolsa o maço de cigarros, e do maço um cigarro, mas não o faz porque sempre teve a convicção de que mulher não deve fumar, pelo menos não em público, ela parece preocupada, suas mãos não param de consertar o laço de uma fita, a dobra de uma manga, de vez em quando tira da bolsa — não os cigarros — o estojo de maquiagem a fim de se olhar no espelhinho, arranca um cílio, limpa uma mancha de batom, o suor da testa, que quarto é esse que aparece em seus pensamentos?, talvez se as cortinas fossem abertas seus contornos se fizessem mais nítidos, mas ninguém se arrisca a abrir as cortinas, os empregados nem sequer se aproximam da porta pois têm ordens severas de não incomodar a mulher que está aí dentro, o telefone toca em algum lugar, no corredor ou na recepção do hotel onde a mulher mora há mais de sete anos, alguém dá três batidinhas na sua porta, ela é chamada pelo recepcionista, palavras furtivas são trocadas ao telefone sob o olhar curioso de estranhos no hall de entrada, agora a mulher não está mais no hotel, ela está no parque olhando as crianças que brincam no playground, a banda, os ciclistas, os patos na lagoa, se perguntando, de onde o mundo tira energia para se manter sempre alegre e colorido?, se perguntando e esperando, ela está à espera de quê?, das entidades mágicas, subterrâneas, que vivem sob as plantas e as pedras?, um homem, saindo do grupo de bancos, vai na sua direção, a mulher abre um delicioso sorriso ao vê-lo, teriam ambos um nome?, Madalena acredita que sim, até mesmo o ser mais insignificante da terra tem um nome, seus passos são leves porém decididos, o sol da manhã resplandece na ponta de seus sapatos limpos e engraxados, ele passa na frente do banco onde Madalena está sentada, logo se vê que esse homem e essa mulher são de dimensões totalmente diferentes, enquanto ela desfila seus trajes de duzentos anos atrás, ele se veste como um típico cidadão de sua época, blazer azul-marinho de lã, jeans branco e camisa listrada de algodão, óculos, cinto, cueca, meias e sapatos, a mulher assim que o vê fecha a sombrinha e corre na sua direção, os dois se encontram no ponto mais ensolarado do parque, ele, todavia, não a recebe com tanta efusividade, limitando-se a beijá-la na face, um toque de lábios tão asséptico, tão leve, que a deixa profundamente decepcionada, Madalena, antenas ligadas, tenta ouvir o que estão dizendo, mas há muito ruído em volta, difícil entender o que dizem, ou estariam falando em outra língua?, os dois parecem estar se comunicando por meio de um imbróglio fonético típico das tribos mais primitivas do Quênia, pois tudo o que Madalena consegue ouvir são palavras de cinema mudo, sem nenhum sincronismo com o movimento dos lábios, como numa dublagem malfeita, desapontada, Madalena passa a ler suas feições, o movimento de suas mãos, de seus corpos, como se conhecesse a fundo a linguagem dos surdos-mudos, gestos, dêem-me gestos repletos de significado, ela lhes pede com os olhos, uma enxurrada de gestos é o que o casal lhe dá, os dele são decididos, frios, levemente rudes, os dela são desolados, perdidos, implorando clemência, minutos depois ele já não está mais lá, foi-se, deixando a mulher quase falando sozinha, ela fala?, não, apenas ouve, ela ouve os ruídos confortáveis do seu quarto, mesmo estando a dezenas de quarteirões do hotel, e esses ruídos ela os ouve curvada sobre si mesma, não prestando mais nenhuma atenção na multidão que a cerca, nem nas flores, nem na marcha triunfal que a banda está tocando, sem o saber, em homenagem ao dia mais espetacular do ano, todos os dias são espetaculares, pensa Madalena, principalmente os domingos, um realejo encosta ao lado do banco, a melodia da banda mistura-se com a do realejo formando outra melodia, outro gênero musical cujo nome ainda não foi inventado, o macaquinho treinado em tirar papeizinhos da sorte salta no espaldar, corre por trás de Madalena e passa a encará-la fixamente, quê?, ela grita, curvando-se instintivamente para a frente, o velho do realejo solta uma gostosa gargalhada com o susto da mulher, o macaquinho, apavorado, esconde-se atrás do velho, em seguida, talvez por achar que ali não é um lugar muito seguro, entra na sua pequena jaula e fecha a porta antes escancarada, sem sequer tirar da gaveta um único papelzinho da sorte, quando Madalena volta a procurar a mulher do vestido démodé ela também não está mais lá, no seu lugar há agora dez ou doze anões aparentemente de uma mesma família, batendo palmas e dançando, diabos, ela resmunga, aborrecida com o macaco, o velho e a música do realejo, onde?, a banda esmera-se noutra polca, os sopros mais do que a percussão, um redemoinho de gente dança quase dentro do coreto, Madalena estica o pescoço à procura da mulher, de repente, surgindo sabe-se lá de onde, ela está bem diante do seu nariz, tão perto que Madalena já não consegue mais vê-la por inteiro, passando a observar outros elementos de sua figura absurda, os brincos, por exemplo, o par de brincos é elaboradíssimo, parecendo dois pequenos lustres descendo de um teto imaginário, Madalena se detém na observação dos brincos, os pingentes resvalam uns nos outros produzindo um tlintlim suave e mais sedutor do que, por exemplo, o som do movimento da Terra em torno do sol, nesse momento tão audível quanto qualquer outro som, Madalena olha de lado e só então se dá conta de que está sozinha no banco, o casal de velhos desapareceu, isso a aborrece, tem medo de que a estranha mulher venha sentar ao seu lado, uma coisa é observá-la à distância, outra bem diferente é tê-la ao seu lado, sentir a ponta do vestido roçar seu braço, sentir seu perfume, que deve ser tão elaborado quanto os brincos e tudo o mais nela, mas, ó Jesus, que é isso?, a mulher que se aproxima parece ser bem mais velha do que a outra, vista há pouco conversando com o cavalheiro, a maquiagem está borrada em vários pontos, as unhas estão quebradas, o vestido, antes tão claro e luminoso escureceu, ficou encardido, manchou-se de ocre e verde-musgo com a sujeira das ruas, ainda mantendo aqui e ali alguns detalhes amarelos, o tecido da sombrinha está descosturado e a armação, amassada, seus passos são os de quem já tomou muita chuva, sem ter aonde ir — os passos de uma mendiga — e o fedor, ah, o fedor!, quanto tempo faz que ela não toma banho só Deus sabe, mesmo assim, despudorada, não tem a menor vergonha em se achegar, em ficar frente a frente com Madalena, essas feições não me são estranhas, de onde será que nos conhecemos?, um grito de horror entala na garganta de Madalena, como se ela subitamente reconhecesse na outra alguém da família, uma das irmãs, ou a própria mãe, não pode ser, balbucia, nisso a mulher se abaixa e senta exatamente onde Madalena está sentada, ocupando seu espaço, num minuto onde antes havia duas há agora apenas uma, Madalena e a vagabunda são a mesma pessoa, o mesmo vestido, o mesmo sorriso tolo nos lábios, as mesmas memórias fora de foco, estou aqui de novo, e isto é, não, não posso — por que não dizer?, porque dói, será por isso que venho? —, estou novamente no hospício, Deus, e hospício é esse branco sem fim, onde nos arrancam o coração a cada instante, trazem-no de volta e o recebemos, trêmulo, exangue, sempre outro, hospício é este pequeno lapso da razão, quando nos damos conta de nossa verdadeira realidade, ínfima, grotesca, que pode não ser a verdadeira, pode tratar-se apenas de mais um sonho, o mais real deles, do qual em breve iremos despertar, então voltaremos para essa realidade cheia de cor e luz, que talvez não seja a verdadeira mas é pelo menos a mais bem arquitetada de que dispomos, do hospício passamos para a rua, onde o lixo se amontoa e cola no corpo, onde nunca pára de chover, onde o cavalheiro que nos beijava, num belíssimo quarto de hotel, há dezenas de anos se recusa a nos beijar novamente, da rua voltamos ao parque, seis japoneses de quimono, que poderiam muito bem ser tibetanos, comem sushi e conversam, cheios de cerimônia, em sua incompreensível língua natal, pra cada ideograma pronunciado, como não podia deixar de ser, fazem uma pequena reverência com a cabeça, um brinde com saquê, uma reverência, mais um sushi, outra reverência, imediatamente o ar fica repleto de reverências e Madalena quase não consegue respirar, dois deles, na certa monges budistas, discutem sobre a bandeira que tremula no alto do coreto, o primeiro diz, é a bandeira que se move, o outro retruca, não não não o vento é que se move e ao se mover move a bandeira, um terceiro, ouvindo a discussão, sapeca-lhes uma bordoada com um bastão de vime, resmungando, não se trata nem do vento nem da bandeira o que se move é a nossa mente quantas vezes tenho que dizer isso?, Madalena, sufocada com tantas sutilezas, sente vontade de gritar, teriam mesmo dito isso, como poderia ela saber se jamais estudou japonês?, de repente o mais velho deles se volta para ela e, talvez com o intuito de demonstrar uma difícil equação filosófica, lhe diz, o rústico porque é ignorante vê que o céu é azul mas o pensador porque é sábio e distingue o verdadeiro do aparente vê que aquilo que parece céu azul nem é azul nem é céu, quinze metros os separam mas mesmo assim Madalena consegue distinguir claramente suas palavras, o saxofone deixa cair acordes dissonantes sobre o labirinto intestinal do cérebro de Madalena, ela sorri de impaciência, sua cabeça dói com toda essa cacofonia, a fala dos japoneses misturada com a fala dos integrantes da banda misturada com a fala das centenas de pessoas que estão no parque misturada com a fala de toda a cidade, procure sintonizar uma só estação, pensa ela, mas qual?, a que estiver mais perto, rápido, se não quiser enlouquecer, nesse exato momento um rapaz e uma garota sentam na outra extremidade do banco, onde o casal de velhos esteve sentado, ambos estão muito bem vestidos, na certa porque estão apaixonados, a fim de escapar do redemoinho que aos poucos a está engolfando, Madalena prepara-se para ouvi-los, o rapaz segura a garota com firmeza, ela tenta se safar empurrando-o sem muita vontade, pedindo-lhe, me solta aqui não você não está prestando atenção ao que estou dizendo ele me pagou quinhentos pelas duas telas sensacional não? com essa grana podemos nos casar no mês que vem, ele então afrouxa o ataque, outra vez esse papo de casamento por que simplesmente não alugamos um apartamento e passamos a viver juntos? seria tão mais simples, agora é ela quem não presta atenção ao que ele diz, acomodando-se no banco ela continua a lhe contar, ele comprou as telas e no dia seguinte me convidou pra expor na sua galeria disse que me daria mais dois mil de adiantamento e disse que a exposição tem boas chances de ser um grande sucesso pára com isso aqui não, ele se irrita, por que não? ninguém está olhando, ela, Francisco me disse que fazia dez anos que não via num jovem pintor “tamanho domínio cromático e tal poder de observação”, ele, quem é esse Francisco?!, ela, também começando a se irritar, você não me ouve? ele é o meu marchand! quem mais podia ser não agora não me solta, ele, enlaçando-a com vigor, tentando mordiscar-lhe o lóbulo da orelha, por que não?, e olhando na direção de Madalena, você se importa com a presença dessa criatura estúpida? olha só pra ela seus olhos parecem que nunca viram a luz do dia não dê bola pra essa indigente ela nem ao menos sabe que estamos aqui, de repente um lapso, uma queda n’água, o intangível som de instrumentos musicais, criatura estúpida estúpida estúpida, todos os domingos Madalena, com seu chapéu predileto de cor indefinida, ora vinho escuro, ora cinza quente, ostentando uma discreta pluma na lateral, a sombrinha laranja com babados brancos e a melhor peça do guarda-roupa, um vestido cheirando a dezembro, vermelho e amarelo, após o término da apresentação faz o caminho de volta para casa, passando os dedos delicadamente pelos botões de rosa da avenida João Petrarca, cumprimentando os conhecidos da feira que já começa a ser desmontada, boa tarde dona Antonieta, boa tarde seu Nicolas, o mundo mais uma vez devidamente recomposto, porém hoje ela não estende a mão para as rosas, nem dá boa-tarde a ninguém, nem se preocupa em recompor o mundo ou em colocar tudo no seu devido lugar, hoje Madalena sobe os degraus do hotel onde mora, fecha a porta do quarto e estica-se na cama sem sequer tirar o chapéu, preferindo ficar assim, quieta, estupidificada — criatura estúpida! — por um longo tempo, os dedos passeando pelas contas do colar de pérolas, ela, mais uma vez toda ouvidos, atenta a um ruído estranho, pontiagudo, a alguma coisa muito distante que não pára de gritar.

 

 

 

 

agosto, 2006

 

 

 

 

 

Nelson de Oliveira nasceu em 1966, em Guaíra, SP. Escritor e mestre em Letras pela USP, publicou,  entre outros, Naquela época tínhamos um gato (São Paulo: Companhia das Letras, 1998), contos; Subsolo infinito (São Paulo: Companhia das Letras, 2000), romance; O filho do Crucificado (São Paulo: Ateliê, 2001), contos, também lançado no México; A maldição do macho (São Paulo: Record, 2002), romance,  publicado também em Portugal; Verdades provisórias (São Paulo: Escrituras, 2003), ensaios; e Algum lugar em parte alguma (Rio de Janeiro: Editora Record, 2006). Em 2001, organizou a antologia Geração 90: manuscritos de computador (São Paulo: Boitempo) e, em 2003, Geração 90: os transgressores (São Paulo: Boitempo),  com os melhores prosadores brasileiros surgidos no final do século XX. Ainda em 2003, editou com Marcelino Freire o número único da revista PS:SP. Foi um dos curadores dos Encontros de Interrogação, realizados no Instituto Itaú Cultural em 2004, e é um dos criadores da coleção Risco: Ruído, da editora DBA. Dos prêmios que recebeu destacam-se o Casa de las Américas (1995), o da Fundação Cultural da Bahia (1996) e duas vezes o da APCA (2001 e 2003). Atualmente, coordena, em várias instituições, oficinas de criação literária para escritores com obra ainda em formação.

 

 

Mais Nelson de Oliveira em Germina

> Conto

> Escadas para o inesperado

> Sinais do Sinai 

> Divagações Sobre o Círculo