©willem de kooning
 
 
 
 
 

 

 

           

1.

 

A mãe acordou o menino no meio da noite. Ela tinha chorado e por isso a voz estava entalada na garganta.

— O que foi, mãe? — ele perguntou.

— Meu filho, aconteceu uma coisa muito triste. Lembra de quando fomos visitar o vovô no hospital? — e ela virou um pouco de lado, soluçando.

O menino estava com sono, mas a expressão da mãe e os soluços o puseram rapidamente em guarda.

Ele se lembrava. No último dia, tiveram de sair, para as enfermeiras ajudarem o avô a respirar. Foi o que a mãe lhe disse então.

Tinha escutado o barulho da máquina. Parecia uma máquina da sua casa, uma que era pouco usada.

Enquanto a mãe ficava abraçada com a tia que tinha chegado e chorava muito, tinha andado devagar até a porta do quarto, que estava meio aberta.

Aos poucos, deslizou para dentro do quarto.

— Ainda tem, dizia uma enfermeira para a outra. Faça mais uma sessão.

O corpo do avô era grande, deitado de costas na cama. Uma das enfermeiras estava em cima da escadinha de metal que ficava ao lado da cama. A outra, no chão, do outro lado da cama, segurava os braços do avô.

O que ele via, apenas com um dos olhos, pois tinha posto apenas metade do corpo para dentro do quarto, entre a parede e a porta, era a moça do alto da escada tentando enfiar alguma coisa pela boca do avô.

O corpo do avô se arqueava sobre a cama. A moça que estava no chão deitou-se sobre ele, para prender a outra mão.

Nesse momento a mãe o tinha descoberto, e puxado para fora.

— Lembro, sim. — ele disse. — por quê?

— O vovô não está mais no hospital, meu filho. Ele já não está mais entre nós.

— O vovô morreu? — ele perguntou. — Está morto agora?

A mãe o olhou e já não parecia a que estava soluçando. Seu rosto estava triste, mas o olhar era firme.

— Sim, meu filho. Ele descansou.

O menino não disse nada. Continuou olhando para ela.

— Nós vamos agora para a casa deles — ela continuou, no mesmo tom. — Você vai ver muita gente chorando lá. Eu mesmo talvez chore. Mas não é preciso chorar, entende? O vovô morreu, mas não há porque chorar por ele. E não faz sentido chorar por nós mesmos, você entende?

O menino não entendia, mas fez que sim, com a cabeça. Compreendeu que não era para ele chorar, e que muita gente estaria chorando na casa dos avós.

Ele não tinha vontade de chorar. O avô era um homem alto, de poucos cabelos, todos brancos. Tinha também um bigode branco. Quando andava pela casa, arrastava as pernas e tossia. E quando se sentava para tomar sol, nos dias frios, ou no escuro da sala, nos dias de calor, gostava de chamar o menino, para conversar, mas o menino não gostava de ir. Sentia que o avô gostava muito dele. Dera-lhe uma égua e vários outros presentes. E também lhe ensinara, certa tarde, o segredo dos segredos, que era a combinação de números para abrir o cofre. E todas as coisas erradas que o menino fazia, ou por querer ou por não saber fazer melhor, eram sempre recebidas, pelo velho, com bom humor e uma frase de carinho.

Mas não gostava de estar perto do avô, porque as crianças pequenas não gostam de estar perto dos velhos, de responder a perguntas e de ficar sentadas, tanto faz que o dia seja bonito ou feio, que os cães estejam encolhidos nos ranchos e debaixo do beiral, para fugir da chuva, ou andem cheirando cada canto de cerca, sob o sol da tarde; que os sanhaços cantem na jabuticabeira perto do tanque de roupas e nos mamoeiros do fundo do quintal, ou os pardais, pingando água fria, busquem abrigo nos caibros, embaixo das telhas, olhando desconfiados os movimentos das pessoas.

Quando saíram, o dia começava a nascer. Estava chovendo. Quando deixaram o asfalto e entraram no caminho de terra, o fusca começou a dançar sobre o barro. O pai sabia como conduzir nas pequenas estradas. Punha as duas rodas do mesmo lado sobre o meio da pista, onde se acumulava uma camada espessa de areia e lama. Se o carro escorregasse para os lados e o fundo se apoiasse no "facão" (era como o pai chamava o monte do meio), as rodas começariam a girar em falso e a cavar pequenos buracos sobre os quais o carro ficaria suspenso. Tinha acontecido uma vez, há muito tempo. Mas o pai era cuidadoso, por isso não acontecera outra vez e talvez não acontecesse agora.

A tensão no carro era grande. A chuva caía de forma regular, os vidros embaçavam. A mãe levava no colo a irmã menor do menino, que dormia. Ele ficava em pé entre os bancos, enquanto não o mandassem sentar, porque assim conseguia ver o facão e observar o balanço do carro e os movimentos rápidos da direção, para escapar do acavalamento. O motor parecia a ponto de morrer, tossindo. Um barulho sufocado, como a respiração da irmã, que estava gripada e com um pouco de febre.

O pai não falava nada. Tinha os lábios apertados e os olhos estavam cheios de lágrimas. De vez em quando, uma escorria e caía sobre a camisa, aumentando a mancha escura, que só não era mais visível porque o quebra-vento estava aberto e grossas gotas de água iam se formando a partir das pequenas que se grudavam no vidro. O carro ia devagar, mas o vento que soprava do lado esquerdo empurrava as gotas para cima até que elas se precipitassem para dentro do carro. Quando isso acontecia, espirravam para todo lado e chegavam até o rosto do menino.

— Feche o quebra-vento, por favor. — disse a mãe. — Ela está gripada. — E inclinou-se sobre a irmã, como se quisesse apontá-la com o queixo.

— Se fechar, o vidro vai ficar embaçado e não vou conseguir enxergar mais nada. — Ele respondeu. — Por que você não a cobre com o lenço?

Ele esticou o corpo para trás, arrancou o lenço do bolso e o estendeu, sem tirar os olhos da estrada. Sua mão tremia e ele ergueu tanto o braço que o cotovelo que esbarrou de leve na cara do menino, mas ele não pareceu dar por isso. A mãe pegou o lenço e cobriu o rosto da menina.

Esse foi o diálogo, e a única ação dentro do carro. O resto era apenas a repetição do ruído do motor. Os vidros já estavam todos embaçados. O pai limpava o pára-brisa com uma flanela laranja. O menino, cansado de observar a estrada, encostou o rosto no vidro lateral, em cuja superfície esbranquiçada abriu dois pequenos círculos com o dedo indicador. Do lado de fora, as árvores apareciam e sumiam, conforme o carro oscilava sobre o facão. Ficou olhando e pensando em quem estaria chorando na casa dos avós. E adormeceu.

 

 

2.

 

Acordou quando o carro parou na frente da porteira. O pai buzinou, porque a irmã estava no colo da mãe e não devia tomar friagem. Mas nem precisava ter buzinado. Alguém vinha correndo, do lado direito, onde um grupo de pessoas conversava, sob a cobertura do rancho.

Não chovia mais. Apenas uns grossos pingos se despejavam da mangueira sob a qual o pai estacionou o fusca, depois de deixar a mãe e a irmã na frente da casa. O menino escutava o ruído das gotas grandes na capota e no capô do carro, enquanto olhava a movimentação no rancho, em volta de um bule que soltava fumaça.

Desceu com o pai, e caminharam de mãos dadas até a casa. A areia do terreiro, molhada, rangia sob os pés, e as pessoas do rancho retribuíam, com o rosto pesado, ao cumprimento lacônico do pai.

O menino viu os cachorros logo que desceu do carro. Nero, Pretinha e Sansão vieram correndo cheirá-lo, embora o pai os enxotasse, com medo de que sujassem as roupas de ambos. Prudentes, ficaram à distância, abanando o rabo. O menino caminhava olhando sobre os ombros, e sorria para eles, embora tivesse a idéia de que não devia sorrir num dia como esse.

Acompanhados pelos cães, passaram pela segunda porteira, que ficava sempre aberta, e rodearam a casa pelos fundos, passando pelo poço, pela jabuticabeira dos sanhaços, em direção à varanda.

Conforme se aproximavam, ouviam mais distintamente o ruído do choro das mulheres e, sob ele, as conversas dos homens, que estavam na varanda e falavam baixo. Quando entraram, o menino sentiu o cheiro forte do chá de erva-cidreira, que circulava em grandes garrafas térmicas e era bebido em copos americanos.

A mãe já tinha posto a irmã na cama e veio até eles. O pai foi cumprimentar as pessoas. Muitas choravam. A mãe se agachou e olhou-o nos olhos, enquanto passava a mão sobre os cabelos dele, até parar com ela sobre a sua nuca.

— Vamos ver o vovô, meu filho. Mas não tenha medo, está bem? É o seu vovô. — ela disse.

Então caminhou com ele até a escada que separava a varanda da pequena sala de visitas. As pessoas se afastavam, quando eles iam chegando, abrindo o caminho da sala escura, onde algumas velas estavam acesas.

O menino apertou a mão da mãe com mais força e subiu a escada.

O caixão estava em cima de uma mesa alta, e um véu branco, como o que algumas mulheres usavam na igreja, descia pelos lados. De onde estava, o menino via apenas o crucifixo comprido de latão, e o rosto das pessoas que olhavam para dentro do caixão, com lágrimas nos olhos vermelhos.

Quando chegaram mais perto, a mãe o pegou no colo, para que ele também pudesse olhar para dentro.

O avô estava ali, mas não parecia o avô. A boca parecia mais funda. Ele não tinha passado muito tempo olhando para o avô, mas sentia que não era assim que ele era.

As mãos estavam cruzadas e o véu estava encostado nelas. Enquanto estava ali, olhando, uma velha curvou-se sobre o caixão e beijou as mãos do avô, através do véu. As mãos eram as mesmas. O menino podia reconhecer o formato das unhas e o anel. E mesmo o jeito como estavam postas, uma sobre a outra, era familiar. Era assim que ficavam, sobre o arco da bengala, quando o avô tomava sol, ou quando se sentava, no calor, na sala escura onde agora estava deitado no caixão.

O menino fez sinal que queria descer e a mãe o pôs no chão.

Estava meio zonzo com o cheiro das flores. Só quando olhara para o avô, tinha visto que o caixão inteiro estava cheio de flores. E dali de cima vira também as coroas, colocadas do outro lado, junto à parede. Tinha visto também a avó, e agora caminhava, levado pela mãe, na direção dela.

A avó era muito gorda. Estava em pé, entalada no canto da parede. Ele chegou perto dela, ouviu a mãe lhe dizer alguma coisa que não entendeu bem. A avó o olhou, mas ele desviou a vista. Não gostava dela. Era uma mulher brava e falava sempre muito alto.

Mesmo naquela hora, estava zangada. O tio tinha sido o portador da notícia. Perturbado, tinha vindo correndo pela estrada, na noite de chuva. A caminhonete, saltando sobre as valas. Era o que ela contava para as outras mulheres. E continuou contando:

— E ele perdeu a capota! A capota! Santo Deus! — ela dizia, enquanto gesticulava com as duas mãos. — Hoje quando mandei buscar, a lona estava toda mascada pelas vacas. Toda suja e mascada de vacas! Era uma capota nova!

Ela falava e olhava para o causador do acidente, que soluçava, sentado numa cadeira, com o rosto entre as mãos. Era o segundo filho dela. O mais velho ainda estava a caminho.

O menino não queria ficar ali. Começou a puxar a mãe na direção da escada. Ela deu um passo ou dois, tentou voltar para perto da avó. O menino insistiu e ela o soltou, dizendo que não se sujasse muito, que ficasse por perto e se comportasse direitinho.

Quando começou a descer as escadas, ainda ouvindo a história da capota e sentindo raiva da avó, que tinha uma voz horrível e gritava assim também com ele, viu os três do outro lado do terreiro. Eles levantaram a cabeça, mal ele pisou fora da varanda e vieram trotando na sua direção.

Ele não os esperou. Fez um sinal e os três pararam imediatamente. O menino então virou para a esquerda e seguiu para a cozinha. Os três levantaram as orelhas e ficaram esperando, abanando o rabo.

Pouco tempo depois, o menino voltou. Olhou para os lados, atravessou o terreiro e se dirigiu devagar para o lado das mangueiras, seguido pelos três cães. A princípio, vinham caminhando, respeitando os gestos que ele lhes fazia, pedindo silêncio; mas depois, sentindo o cheiro da comida, assanhados, começaram a pinotear em volta dele. Enquanto arrumava um banquinho, junto à pilha de tijolos, recebia no rosto, nos braços e um pouco por toda parte, muitas lambidas de agradecimento. Tirou então a comida dos bolsos e jogou um pouco o mais longe que podia. Os dois cães maiores correram para buscar a metade da salsicha, mas Pretinha ficou ali, olhando para ele. Ele lhe deu a outra metade, que ela comeu imediatamente. Sansão tinha pegado o pedaço que jogara longe e, junto com Nero, voltava galopando. Antes que chegassem lançou, por cima da cabeça, com toda a sua força, uma outra metade de salsicha, de modo que eles tivessem de voltar. Deu mais outra metade a Pretinha e, logo, uma inteira para Nero, que era mais lento do que Sansão e por isso não tinha comido nada ainda.

Até que acabassem as salsichas, ficou ali, rindo e atirando pedaços de comida sobre o chão molhado.

 

 

3.

 

O carro preto estava parado na frente da casa. Tinha correntes nas rodas, por causa do barro. Na primeira viagem, quando trouxera o corpo, a estrada ainda não estava tão ruim como ficou depois, com a chuva continuada e o acréscimo de trânsito. Mas não tinha chovido o dia inteiro e a estrada parecia mais seca.

Por isso o dono do carro e o tio mais velho do menino discutiam se não seria melhor tirar a corrente.

O dono do carro preto dizia que não.

— E se o carro atolar, como vai ser? — ele dizia. — Não é uma coisa-à-toa! Se algum acompanhante fica no caminho, isso não é um problema, mas se eu não chegar na hora, isso, sim, é um problema!

— Mas a estrada está boa! — dizia o tio — Se for com as correntes, vamos todos ter de esperar, quando chegarmos ao asfalto, porque você vai ter de parar e tirar essas correntes.

— Sim, mas ao menos a gente chega ao destino, com certeza. Não quero correr o risco de encalhar ou rodar barranco abaixo. — E completou, carrancudo: — Cada um sabe o que é melhor para o seu ofício!

O pai do menino interveio e disse que estava certo. O caminhão da família acompanharia o cortejo, para o caso de alguém ficar preso no barro. Então era melhor mesmo que o carro funerário seguisse com a corrente, até chegar ao asfalto.

Era um carro bem grande. Parecia uma camionete adaptada para a função, com os vidros pintados de preto em toda a volta da carroceria e com uma cruz prateada desenhada em cada vidro da parte de trás. Quando os tios e o pai do menino puseram o caixão dentro do carro e fecharam a porta, não se podia ver mais nada.

O caminho até a cidade foi longo. Começou a chover de novo na hora do enterro, então o menino e a irmã ficaram no carro, com um dos velhos amigos do avô, que estava tão gripado quanto a irmã.

O caminho de volta para o sítio foi ainda mais longo, com o cansaço acumulado, a fome e a sensação de desalento que todos tinham no rosto.

Na casa dos avós, as mulheres prepararam o jantar, que foi servido mais tarde do que o costume. Iam todos dormir ali, pois começara a chover mais forte.

— Você vai dormir no mesmo quarto que a gente, meu filho — a mãe disse.

Distribuíram as pessoas como foi possível. No quarto do final do corredor, juntaram à cama de casal uma outra, de solteiro. Ali dormiriam os quatro. A irmã ficou junto à parede, ele no meio e depois a mãe e finalmente o pai.

A irmã ressonava, fungando por causa da gripe. O menino então virou de costas para ela. A mãe estava virada para o lado dele e o acariciou no rosto, enquanto ele dormia.

Foi uma noite agitada. O menino tinha a impressão de ouvir choros e sonhou que estava preso no carro preto, com os vidros pintados de preto. No sonho, ele tentava escapar pelos vidros, que eram moles como massa de modelar. Mas quando ele os forçava até o ponto em que estavam para se romper, tensionados num túnel escuro, a cruz prateada, esticada como uma aranha de quatro braços, se agarrava à carroceria e resistia, forçando-o de novo para dentro do carro.

Acordou, mas não abriu os olhos. Sentia que algo estava acontecendo, um pressentimento lhe dizia para não abrir os olhos.

Como nas brincadeiras de mocinho e bandido, quando o mocinho finge que está morto para atrair o bandido para perto de si e melhor atingi-lo, só os abriu minimamente, para conseguir ver um pouco por entre as pestanas.

A mãe estava na sua frente. A cama toda tremia e ele escutava a respiração do pai, como se estivesse fazendo um grande esforço. O rosto da mãe era a única coisa que podia ver com mais nitidez. O resto do quarto, por conta da chama da vela de S. João que oscilava atrás do aparador, parecia sacudido pelo mesmo tremor que agitava a cama.

Das sombras, percebia uma imagem de pesadelo, como se um grande monstro se agitasse no escuro, contorcido, respirando fundo, fungando, como um eco à respiração que julgara, a princípio, que fosse a do seu pai.

A mãe estendeu a mão e fez um carinho no seu rosto. Terminou por cobrir-lhe os olhos, mas ele viu que, antes, ela se virava, com uma expressão de tristeza, sobre o ombro esquerdo, e olhava para trás.

No dia seguinte, logo depois do café, saiu para o terreiro.

Não havia mais sinal de chuva. O céu, muito azul, estava cheio de luz. Havia muitos pássaros naquela hora e as galinhas ciscavam perto do tanque de roupas, em busca de minhocas.

Foi então que o tio mais novo o chamou e lhe disse que uma coisa horrível tinha acontecido. Nero estava muito machucado. Alguém o havia acertado com uma foice, ele perdera uma orelha e tinha um corte feio na altura do pescoço. O tio estava sentado num banco de madeira e fez sinal para que o menino se sentasse ao seu lado.

— Ele vai morrer? — perguntou o menino.

— Acho que não – respondeu o tio. — É um cachorro muito forte!

O tio tinha só 5 anos a mais do que ele. Eram como irmãos.

— O Nero deve ter mordido o ladrão — disse o tio.

— Que ladrão? — perguntou o menino.

 — Ora, o que deu nele com a foice — respondeu o tio. — Ou você acha que foi alguém conhecido que fez isso com ele?

— Não, disse o menino. Ninguém faria isso com o Nero. Ninguém mesmo!

— Então, só pode ter sido um ladrão. — disse o tio. — O ladrão queria se aproveitar que o meu pai...

Não terminou a frase, começou a chorar e se afastou, com alguma vergonha.

O menino o acompanhou com a vista e esperou que ele voltasse e de novo se sentasse na ponta do banco, meio de costas para ele.

— Onde está o Nero? — perguntou, por fim.

— Está na garagem do trator, perto da debulhadora.

— Ele vai morrer? — perguntou o menino.

— Já disse que não. Você é surdo? — disse o tio e o olhou com muita raiva. — O capataz cuidou dele, passou remédio de cavalo e disse que ele vai ficar bom.

— Posso ir lá e ver o Nero? — perguntou.

— Só se eu for junto, porque o Nero é meu cachorro.

— Desde quando o Nero é de alguém? O Nero não é seu — disse o menino.

O tio se levantou. Estava vermelho de raiva. Deu uma pequena volta, sacudindo os braços e depois parou bem na frente do menino.

— Ele é meu, sim! — disse, quase gritando. — Era do meu pai. Agora, tudo o que era do meu pai é nosso, dos filhos dele. E o Nero é meu e está acabado! Acho que você está querendo apanhar, não é, não?

O menino olhou para baixo. Estava com medo, mas também estava com dó do tio. Sem erguer os olhos, disse apenas:

— Tá bom, eu entendi. Mas posso ver o seu cachorro? Só um pouquinho?

O tio hesitou um pouco, depois se acalmou. Sentou-se de novo no banco e disse:

— Pode ir, mas só um pouco. Ele está muito doente. Não vá ficar lá enchendo o saco dele. Vou esperar você aqui, tá bom?

O menino atravessou o terreiro. Não queria pensar no que teria se o pai morresse. Mas pensou, afinal, que não tinha cachorro, nem cavalo, nem coisa alguma que pudesse dizer que então seria sua.

Quando chegou à garagem, entrou devagar, como se temesse acordar o cão.

Nero estava deitado numa folha de zinco coberta de serragem. Quando o viu, tentou se levantar, mas apenas fez um movimento breve e soltou um ruído doloroso.

Abanou, porém, um pouco o rabo e olhou para o menino com interesse.

O menino, entretanto, não tinha salsicha, nem qualquer outra guloseima.

Nero estava com uma pasta amarela no lugar da orelha decepada. E tinha um pano, também manchado da mesma gosma amarela, que cheirava mal, enrolado no lugar da ferida do pescoço.

Olhou para o menino com os olhos empapuçados de mestiço de buldogue e começou a respirar com a língua para fora, em sinal de amizade.

Apesar do cheiro do remédio, e do medo que lhe dava a possibilidade de o tio chegar de repente, o menino se ajoelhou, abraçou o cachorro e começou a chorar. A princípio baixinho, e depois, em grandes soluços, cada vez mais forte.

 

 

dezembro, 2005
 
 
 
 
Paulo Franchetti. Professor de literatura na Unicamp. Autor de estudos sobre literatura brasileira e portuguesa dos séculos XIX e XX, dedicou-se por vários anos ao estudo do haicai japonês e seu aproveitamento pelas literaturas modernas do Ocidente. É autor do livro de contos O sangue dos dias transparentes (São Paulo: Ateliê Editorial, 2003). Além de ter publicado livros de ensaios, de haicais e de contos, é crítico e colaborador de jornais e periódicos científicos. Desde 2003, dirige a editora da Unicamp. Mais na Germina: Encarte, Contos e Haicais.