Sou o herói das atividades corriqueiras, das realizações monótonas. Por isto até me constrange contar daquela quase noite de sexta-feira, quando tudo começou. De início, a mesmice. Após o trabalho, entrei no supermercado e comprei daquelas coisas que as pessoas simples costumam roer diante da televisão acompanhando algumas latas de cerveja. Faço de tudo para esquecer da insônia, do calor, do desconforto.

 

Tenho amigos que bebem uísque, comem torradas com caviar, pasta de salmão com cerejas. Amigos complicados. Também tenho amigos que imagino simples, como Ismênia, que mora no apartamento do lado e que às vezes expõe idéias semelhantes às minhas, apesar de possuir uma carga poética  incontrolável, o que nos torna muito  diferentes.

 

Porque comigo tudo é prosaico: cerveja e batatas fritas. No mais um filme de cowboy. Fico feliz quando no troca-troca de canal, encontro algum. Porque é deste jeito que sei ficar feliz, lidando com o corriqueiro, me encaixando na rotina. Converso com Ismênia. Ela gosta de ficar se analisando e principalmente, se culpando. Se eu fosse desse ou daquele jeito. Se eu me chamasse Theodora... Ismênia gosta de pensar que se tivesse outro nome teria outra vida. Também gosto de pensar coisas assim. Tudo muito simples. Pura rotina.

 

Mas, daquela vez seria diferente. Eu, ali, sozinho, assistindo o filme, quando no meio do maior duelo, do mais barulhento bang-bang, surgiram encarapitados no telhado do Saloon, aquela mulher com o avestruz. Percebi que eles conversavam e o mais inquietante: que falavam de mim. Pode?

 

Ela com corpete, retendo seios fartos, saias amplas e um toucado de rendas, brincava com a corrente dourada que se prendia no pescoço do avestruz. Tentei decifrar o que falavam. Não consegui. Terminado o filme ainda permaneceram na tela, por vastos segundos. Pensei que seriam tatuagens, quase eternos, mas, muito  repentinamente  sumiram.

 

A partir daquele dia, nunca mais conheci instantes de tranqüilidade. Fosse onde fosse, encontrava os dois. Às vezes na prateleira do supermercado, às vezes entre as estantes das livrarias até que invadiram a minha casa. Estavam na cama, na mesa, sempre espionando cada um de meus gestos e cada uma de minhas direções. Cochichavam e riam. Debochavam de mim. Incomodavam. Porque sou dessas pessoas que se analisam, torna-se mais sólido o meu problema. De que lugar, de que beco, de que esquisitas profundezas fui buscar estes dois? Sabe-se lá. Sabe-se lá de que labirinto os recolhi. Vá alguém entender as confusões de meu lado avesso. Tão envergonhado, nem para a vizinha conto dessas barbaridades que minha cabeça conseguiu criar. Por muito menos sei que ela ia perguntar: — Isso daí depois de quantas cervejas? É que para gente simples como somos, as soluções têm de ser simples.

 

Da janela do vigésimo andar, vejo a mulher e o avestruz calmamente atravessando a rua. Comemoro. Enfim, enfim se foram! Mas, quando penso que estou livre, descubro também que estou vazio. No meu quarto penso em mulheres e em avestruzes. Não posso permitir que eles ganhem ruas e direções sem retorno. Recordo que sempre entendi as mulheres como criaturas encantadas e os avestruzes como seres mágicos e magníficos. Penso que extraí de mim a beleza, a opulência, tudo de bom que existia, pois a verdade é que distante deles me sinto seco, feio. Olho no espelho e vejo um indivíduo sem luz, sem vida.

 

Quase em desespero aguardo que eles voltem. Prometo festas, champanhe, doces. Enfim, eles retornam e retomam seus olhares cúmplices.

 

Respiro sossegado. Enfim, eles estão aqui. A mulher, sentada num cantinho, revira entre os dedos um colar de pedras vermelhas que latejam faíscas. Já o avestruz esconde a cabeça entre as almofadas do sofá. Isto se estou perto. Quando me afasto escuto risos abafados e ruídos estranhos.

 

Do lado de fora, eles, que agora entendo como o que de melhor eu possuía, quase libertos de mim. A nos ligar, um fio tão tênue e frágil que a corrente dourada que impõe direções ao avestruz parece forte e poderosa. Faço o que posso para conquistá-los e esta é uma tarefa capaz de me levar a procedimentos inexplicáveis. Tudo porque eu pressentia que os dois, diferentes de mim, se completavam e se bastavam. Eram astutos e criativos. Quem imaginasse a vida dos dois como monótona, entraria no mais absoluto equívoco. Eles se divertem, trocam coisas, se misturam. Às vezes o avestruz veste-se lá de sua maneira com as estranhas roupas da mulher enquanto ela se enfeita com as penas do avestruz. Ou então, a mulher  aparece com o cordão de ouro do avestruz, enquanto ele ostenta o colar de contas vermelhas da mulher. Outras vezes, exóticos e incompreensíveis trocam  palavras que não entendo.

 

Muitas  vezes entro em pânico. Tudo porque sinto os olhares deles escorregando pela janela. Observo que desejam maiores espaços. Amplidões. Começam a exibir um comportamento de fugitivos. Haverá o dia em que não poderei mantê-los próximos de mim. Faço de tudo para que gostem de ficar por aqui. Compro geléias, bolachas amanteigadas, pãezinhos crocantes. Até Ismênia, quando aparece estranha: — Está se tratando, hein?

 

Estou, é? Pois eu é que sei. Apesar de todos os esforços os dois se entreolham e me encaram com desprezo.

 

Desesperado tento entrar no jogo deles e ofereço ao avestruz o meu paletó, propondo trocas que ele, enfim aceita.

 

Aos poucos o jogo se torna mais interessante. Descubro que podemos barganhar além de objetos. Pois então? Não passou pela sala o avestruz, com os fartos seios da mulher enquanto ela ostentava as asas dele? Importante contar, que nessas trocas, tudo era devolvido em algumas horas e de forma perfeita. E trocamos pernas, corpos, cabeças. Olho meus pés de avestruz e meu rosto de mulher. A campainha toca e eu penso que Ismênia vai levar um bruto susto. Imagino pequenas e inofensivas vinganças: — Afinal, quantas cervejas você tomou? — vou devolver do mesmo jeito displicente que ela usa. Só que a vizinha nem observa as mudanças. Senta toma café e come uma fatia de pão.

 

Olho meus pés de avestruz e na vidraça flagro meu rosto de mulher. Pergunto se ela não vê em mim nenhuma diferença. Diz que não. Insisto e ela se afasta resmungando: — Você tem cada uma. Se eu me chamasse Theodora essas coisas não iam acontecer comigo. Também, se eu me chamasse Theodora ia ser outra pessoa. Talvez morasse em outro país. Sabe-se lá.

 

Ismênia sai batendo a porta e volto a jogar. Recebo de volta a minha cabeça. Os cabelos escovados com esmero mostram o quanto eles são perfeccionistas. Meu paletó, objeto da primeira troca, voltou como novo. São caprichosos e isto me obriga a ser também cuidadoso com os pertences que me são emprestados.

 

Faz tempo que perdi a noção das horas, dos dias. Sempre acordo em pânico, procurando pelos dois. Todo acordar é uma aventura.

 

Hoje, desperto com ruídos na cozinha. Cabeça de avestruz e pés de mulher, com saltos muito altos, procurando o equilíbrio, chego até Ismênia, que entrou pela porta que esqueci de fechar — Achei que você merecia e vim fazer o seu café — informa. Olho a mesa que ela preparou com cuidado e observo a camiseta, enfeitada com penas de avestruz, no pescoço, o colar de contas vermelhas. Imediatamente, percebo que ela entrou no jogo. — Não quero nada de você — explico — Mania de ficar fuçando minhas coisas, se intrometendo. Que droga! — Ela , resmunga, sem nenhuma emoção: — Sabe por quê? Pois é porque você se chama André. Tivesse outro nome e ia querer — e prossegue no desabafo: — Até me ofende. Desaforo! Fiz um café tão bom. Coloquei flores na mesa. Tivesse outro nome... Fosse um Abelardo e ia gostar.

 

Encaro Ismênia com certo rancor — Fico pensando em Abelardos e decido: — Eu devia me chamar Bertoldo. Com este nome jamais que me submetia a certas invasões, a certas inconveniências. — Reclamo: — O cara não pode esquecer de passar a chave e pronto. Entram e se instalam — Ismênia, quando quer, é especialista na arte de fingir que não entendeu nada e fica por ali, mexendo na geladeira, colocando o leite para esquentar. Mais alguns minutos e aparece com o toucado de rendas da mulher e a corrente de ouro do avestruz. Mãos na cintura, olha bem dentro de meus olhos e afirma: A culpa é minha!

 

Com Ismênia entre nós, o jogo se torna mais pesado. Ela tem ímpetos poéticos e quer trocar de nome, de significados, de vida. E o que é pior, tiraniza, impõe normas difíceis de entender, regras impossíveis de seguir. Parte para o abstrato. Quer trocar paixões, emoções. A mulher e o avestruz se submetem a ela, que se revela incansável e decidida, apesar de culpar-se depois.

 

Tenho saudade do tempo em que ficávamos roendo batatas fritas e tomando cerveja. Tudo se complicou muito por aqui. É que ao lidar com abstrações ficamos completamente confusos. Não sabemos ainda como devolver o invisível. Mesmo porque o invisível adere, gruda e escorrega. Meu pavor é que a mulher e o avestruz  desgostosos pensem em fugir, antes que eu aprenda a forma de reabsorvê-los. Por enquanto sinto que se divertem, mas, até quando?

 

Ismênia parece uma louca e pressionados por ela, trocamos de personalidade. Decisão letal. A mulher fica absolutamente confusa e dominadora, mas, tal Ismênia, depois repete que a culpa é sua. O avestruz ri que ri, tal era a mulher. Ismênia sonha com um filme de cowboy e deseja realidades simples. Uma verdadeira heroína de atividades corriqueiras e realizações monótonas e eu, dono de um medo milenar e incontrolável escondo a cabeça entre as almofadas do sofá.

 

 

 
 
junho, 2006
 

 

Regina Benitez (1934-2006, Curitiba-PR). Jornalista, publicou o livro de contos A moça do corpo indiferente. Ganhou vários prêmios literários, participou de inúmeras antologias nacionais e também da Alemanha e de Portugal. Deixou, inédito, o livro Mulher com avestruz.

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