AQUELES HOMENS TRISTES

 

Deitou-se ao lado da mulher, como se se preparasse para morrer, sem uma palavra, um gesto de carícia, qualquer menção de repetir cotidianas cenas de brutalidade e desejo. Fechou os olhos e imobilizou-se. Queria apenas pensar, pensar ilimitadamente, desprender-se de todos os laços palpáveis de seu conheci­mento, perder-se por corredores e labirintos, por horizontes e profundezas. Desordenar as coisas, as pessoas, o mundo. Fazer redondos os quadrados, aparar arestas, encrespar as formas pla­nas, reduzir a minúsculos montículos as grandes montanhas, agigantar-se. Como em noites passadas.

Não conseguia compreender como e por que tudo se deformava e nunca teve coragem de contar nenhuma de suas descobertas a ninguém. A não ser as mentiras menos assombrosas: aquela porção de frutas amontoadas, a paulada na cabeça de fulano, a tempestade, os monstros. Umas já se haviam perdido no tempo ou tinham ocorrido com outras pessoas. Às vezes discutiam, se ameaçavam e até se matavam, raivosos, incapazes de ouvir tantos disparates, insultos, desafios.

E a mulher, os filhos, os companheiros de caça, o resto será que não saía, um pouquinho só, além dos limites da mesmice? Ou também sentiam medo de contar novidades?

De noite, depois de fechar os olhos, entregar-se ao invisível, tudo virava de cabeça para baixo, transformava-se, confundia-se. A mulher se fazia outra, os filhos morriam, sumiam, se batiam contra feras. Os bichos se devoravam, violentos, estraçalhavam-se, sangrentos. Muitas águas, muito fogo, ventanias de arrastar homens e animais. E nada era verdade, quando não era mentira. Sua mentira.

Não, talvez não fosse bem assim. De dia, os olhos viam o mundo e o mundo existia. De noite, os olhos de dentro viam o mundo, porém um outro mundo.

Abriu os olhos, levantou-se, suado e trêmulo, e olhou para as estrelas que piscavam no céu  e para o fogo que ardia ao redor das cabanas. A mulher dormia, os filhos dormiam, todos dormiam. Deu dois passos, escutou o grito dos bichos e sentou-se numa pedra. Onde andavam as milhares de pessoas de minutos atrás? Onde estavam aquelas construções enormes, feito cabanas sobre caba­nas? E os objetos que se locomoviam, feito tartarugas de ro­das, a conduzir gente, às carreiras? E os outros que voavam, feito pássaros? O que fazia tanta gente ajoelhada, diante de ima­gens de barro e homens que falavam de “morada do céu”? E por que quase todos não paravam de suar, o dia todo a derrubar árvores, cavar o chão, semear a terra, bater ferros, sob as ordens de uns poucos? Que diabo significavam pedaços de papel colo­ridos e numerados que aqueles recebiam dos chefes e trocavam por comida, roupa, objetos variados de propriedade dos mesmos chefes?

O sol se anunciou vermelho e encantatório por detrás das montanhas. E se lá vivessem aqueles homens tristes?

 
 
 

 

 

 

O FILHO DA SOLITÁRIA

 

 

Quando ele voltou, isto é, quando o trouxeram de volta, não o reconheci. Talvez eu já estivesse ficando cega, caduca, velha demais, como diziam. Não, meu filho parecia mesmo outro. Certamente haviam passado muitos anos desde sua partida, pois ele também não me reconheceu. E nem ainda me reconhece.

Com as quatro patas assentadas no chão frio, vive mudo pelos cantos. Eu o aconselho a cantar, de vez que não quer falar. E a correr, já que não deseja andar. Porém ele apenas coaxa e pula, de quando em quando. Como se tivesse medo de estar livre. Resolvo então espantá-lo com a vassoura. Se assim não fizer, a casa pode virar um monturo, cheia de sapos, ratos, bichos de toda espécie. Paro e vejo: ele me olha com resignada profundidade. Depois dá um pulo, outro, mais outro e foge para o quintal. Se me descuido ou quando é noite, está ele novamente no mesmo cantinho, encolhido, os olhos esbugalhados.

No quintal, mete-se na água suja que escorre da lavanderia, na lama formada ao pé do mamoeiro ou no lixo onde se amontoam os restos de comida reservados ao bacorim desaparecido.

Dia desses, a vizinha da direita, ao ouvir aquele remexido na água, pôs a cabeça sobre o muro e perguntou se me haviam devolvido o porco. Enquanto imaginava a resposta, perguntei-lhe se do lado de lá o muro era baixo. Fui buscar um tamborete, porque julguei ter ouvido roncos de porco, explicou-me. A seguir, arregalou os olhos e perguntou: de quem é este sapão? Você está criando ele para engolir cobras? João olhou para a cabeça que falava e deu uns três pulinhos dentro da água. Tive vontade de dizer um desaforo qualquer. Terminei fazendo graça. Eu o queria para apagar brasas. A safada sorriu e disse: deixe de mentira! Ninguém usa mais fogão a lenha nem fogareiro a carvão. E desapareceu. Fiquei apalermada, a olhar para cima do muro. E ainda ouvi a voz risonha e sumida da vizinha gritar: jogue água salgada nas costas dele.

Dias depois, minha vizinha da esquerda veio me perguntar se, na verdade, eu havia resolvido criar batráquios. Ora, que diabo são batráquios? Quando tiver alguma jia grande me avise. Adoro jias.

Hoje me contaram tudo: meu filho esteve numa solitária, acocorado durante não sei quanto tempo.

 

 
 
 

 

 

 

HOMENS

 

— Isso se deu nos tempos antigos, muito antes de Lampião, muito antes do Imperador, muito antes da seca dos três sete. O dito coronel tinha uma data de terra ali pros lados do Mulungu e já estava meio velho, aí pela casa dos noventa. Pra lhe dizer como ele era rico basta citar as preciosidades que tinha em casa: um baú cheinho de pedras, sete papagaios que falavam francês, seis filhas donzelas que conservava debaixo de sete chaves para casar só com príncipes loiros, e uma porção de coisas outras de valor. Mas porém isso não vem ao caso. A lenda conta é que esse tal sesmeiro, depois que virou o cabo-da-boa esperança, passou a freqüentar as autoridades da província e das vilas: juizes, procuradores, alcaides, tabeliães, escrivães, vereadores, tesoureiros, vigários, militares...

À pequena distância do homem que falava e de outro, que estavam sentados em cadeiras de balanço, um defronte para o outro, uma criança, sentada no chão, tentava acionar o pinguelo de um revólver de plástico. Ao conseguir firmar numa mão o brinquedo, regozijou-se, rodopiou com a bunda assentada no chão de cimento liso e fez menção de atingir primeiro o homem que falava e em seguida o outro, gritando pô-pô-pô, seguidamente, durante quase um minuto. Os homens, entretanto, nem se assustaram nem demonstraram sequer ter percebido a presença do traquino, continuando um a falar, outro a olhar atentamente para uma figura que segurava firmemente com as mãos e que apresentava um soldado montado num cavalo, ambos de perfil. O militar era novo, trajava fardamento antigo e trazia a tiracolo uma espada longa. O animal era baio, muito grande e bonito e parecia cansado.

Sem dar ouvidos à desatenção do homem da figura, o que falava incessantemente dizia que o fazendeiro procurou então o vigário da freguesia, que se encontrava escrevendo uma carta para o vigário da Vila de Aquiraz, e passaram a conversar sobre terras, política e safadezas, até que o ricaço soltou uma frase curta mas que fez o reverendo trancar a cara. A tal frase dizia mais ou menos isto: Este jucá deve ser lá bem possante.

A criança, nesse momento, já de novo de costas para os dois, olhava para o alto da parede, de onde pendia um crucifixo de madeira de cerca de meio metro, ornamentado por um Cristo de prata, possivelmente. Para melhor se equilibrar, pôs as mãos para trás e esticou as canelas, encostando os pés sujos na parede azul.

O homem que falava dizia que o sesmeiro aproximou-se da estrebaria, onde cerca de vinte cavalos assediavam cerca de outro tanto de poldras, e pôs-se a olhar nervoso para a cena. Em seguida, chamou um dos cavalos pelo nome – Mimoso –, que se abeirou da cerca excitado e ergueu as patas, mostrando ao dono o maravilhoso membro enrijecido.

Por seu turno, o homem calado olhava uma segunda figura, do mesmo tamanho da anterior e figurativamente tão perfeita que tanto poderia ser uma fotografia quanto um desenho célebre. No entanto, estava desbotada e apenas dava a perceber um padre ajoelhado diante de uma imagem, possivelmente da Virgem Maria. Movimentando apenas as mãos, como que para não fazer ranger a cadeira, aproximou dos olhos a figura, mais exatamente o ângulo superior direito, onde estava fotografada ou desenhada a santa mãe de Deus, se era esta o que representava a imagem figurada.

Ainda totalmente alheia ao que dizia o homem, que falava quase gritando, como se o outro fosse surdo, a criança agora estava no outro extremo da sala, escanchada em uma sela encostada à parede, como se galopasse um cavalo. A sela rangia e a criança batia os pés no chão, imitando patas de cavalo, ao mesmo tempo que incitava o animal a trotar, fazendo com os lábios um ruído engraçado.

Infenso à zoada que fazia a criança, o homem dizia agora que o barão chamou um índio da Vila para irem ao rio e o índio mostrou-se esquivo. O velho sesmeiro trazia na algibeira um pão e, sorrindo, ofereceu-o ao selvagem. Seguiram em direção ao riacho, o barão apontando acolá, o índio dizendo dehêtsi*, o branco afirmando perto, o vermelho perguntando dedé?, o civilizado tirando a roupa, o selvagem falando croné.

Já chovia quando o homem que nada falava olhou para uma terceira figura, a criança pôs-se a agitar nas mãos uma espécie de brinquedo bizarro e o outro continuou sua história, então dizendo que já era noite escura e chuvosa quando o fazendeiro, como último recurso, dirigiu-se à capela de taipa que se erguia num extremo da vila. Um clarão alumiou toda a sala e o homem viu perfeitamente que na foto ou desenho apareciam duas figuras de gente, enquanto a criança fazia grande algazarra, como se com medo ou alegria, e o outro dizia que o velho saiu correndo em meio aos trovões e ao ladrar dos cães vadios que o não reconheciam. A porta se escancarou à força da ventania e um frio de arrepiar penetrou na sala com fúria. A estampa quase voa da mão do homem, quando ele constatava que uma das figuras apresentava uma cara de incontida ira, enquanto na do outro um pavor de morte próxima reluzia. A criança, ou por temor à tempestade ou por se ver tomada de algum transe peculiar ao ritual que ensaiava, parecia dançar ou pular entre os dois homens, sem com eles se importar, como se não existissem ou não estivessem presentes. Um dos homens dizia que o velho alcançou a capela e divisou, a um relâmpago, as várias imagens sobre altares e mesinhas, inclusive a de um Menino Jesus deitado sobre palhas numa estrebaria. O vento continuou a açoitar as portas, a balançar as cadeiras, a agitar a figura nas mãos do homem, a sacudir a cabeleira da criança. E na estampa trêmula um homem vestido tinha o braço erguido a segurar uma longa espada. A criança agitava no ar o brinquedo. O outro falava do barão apalpando a imagem. Nos olhos do índio o espanto. O maracá rodopiando. O homem nu. A cabeça prestes a rolar. O maracá caindo. O barão assentando-se sobre a imagem de pau.

 

 

*Em língua cariri, dehêtsi significa acolá; dedé, perto e croné, nu.

 

(imagens ©tomas ochoa)

 

 

 

 
 
 

Nilto Maciel (Baturité/CE, 1945). Cursou Direito na UFC. Em 1976, um dos criadores da revista O Saco. Mudou-se para Brasília em 1977, onde deu início, em 1992, à publicação da Literatura: revista do escritor brasileiro, regressando a Fortaleza em 2002. Entre os melhores contistas brasileiros, obteve primeiro lugar em vários concursos literários nacionais e estaduais. Organizou, com Glauco Mattoso, Queda de Braço: uma antologia do conto marginal (Rio de Janeiro/Fortaleza, 1977). Participou de diversas coletâneas e antologias, entre elas: Quartas Histórias: contos baseados em narrativas de Guimarães Rosa e Capitu Mandou Flores, ambas organizadas por Rinaldo de Fernandes, e O Cravo Roxo do Diabo: o conto fantástico no Ceará, organizado por Pedro Salgueiro. O Cabra que Virou Bode foi transposto para a tela pelo cineasta Clébio Viriato Ribeiro, em 1993. Publicou nos mais diversos gêneros literários e em diversas línguas (esperanto, italiano, espanhol e francês): Tempos de Mula Preta, Itinerário, Punhalzinho Cravado de Ódio, Os Guerreiros de Monte-Mor, As Insolentes Patas do Cão, A Guerra da Donzela, Carnavalha, Vasto Abismo, A Rosa Gótica, Pescoço de Girafa na Poeira, A Última Noite de Helena, A Leste da Morte, dentre outros. Como pesquisador do gênero "Conto", é autor de Panorama do Conto Cearense e Contistas do Ceará: d'A Quinzena ao CAOS Portátil. Seu último livro, Sôbolas Manhãs, foi publicado em 2014, pouco antes de sua morte, no dia 29 de abril, em Fortaleza. Mais aqui.

 

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