........ ©alfred gockel
........Com o nascimento de Amanda, a mãe abandonou a faculdade de filosofia, que tanto detestava, e aprendeu a ver o mundo pelos olhos da filha. Pessoas, objetos, paisagens. Deslumbrou-se com o novo aspecto das coisas, da poeira às estrelas, quando intermediadas por uma criança. Com a partida de Amanda, trinta anos depois, o novo mundo desapareceu para sempre.
........As pessoas, os objetos, as paisagens. Onde?
........Onde, o mundo povoado de coerência, a sublime realidade? Deitada no sofá de gobelin, a mãe se pergunta se o que desapareceu, de fato, foi a realidade em si ou se apenas a realidade de Amanda — a sucessão de eventos, obscura, que os olhos da filha tornavam clara e aceitável.
........Deitada no sofá de gobelin, nos braços de Johnnie Walker, a mãe adormece. A boca seca, cheia de areia, as pálpebras em brasa, sonha com desertos e despenhadeiros de fogo. Reentrâncias e labaredas. Pedra, muita pedra, no fundo da garrafa. Ninguém, em parte alguma. Nenhum pássaro, nenhuma planta. Apenas Wagner, no topo de um morro, regendo um grupo de demônios sem asas.
........Desperta com os primeiros acordes de Tristão e Isolda, os olhos úmidos de uma sensação insossa, uma sensação… Logo reconhece, é tristeza. Não. É raiva. E o sonho, um chamado para a luta.
........A mãe aprendeu a interpretar sonhos na PUC, na faculdade de psicologia. Reaprendeu, para ser mais exato, pois dez anos antes já havia tomado as primeiras aulas com a filha. Com os olhos da filha. As mensagens cifradas do cotidiano reorganizadas por Amanda, que na época mal sabia andar. Os desejos velados da mãe tornados públicos, desnudados ante os olhos de todos.
........Muito tempo depois, durante a recepção a um embaixador qualquer, o confronto. Foi a mãe quem, quebrando copos e taças, exigiu:
........— Pára de me envergonhar na frente dos meus amigos!
Amanda não se fez de santa, apesar dos olhos luminosos, angelicais:
........— Você não é uma mulher. É um enfeite sem graça, de mau gosto. Um navio numa garrafa. Numa garrafa de uísque. Não se enxerga, não? — e arrastando-a para perto do espelho que tomava quase toda a parede da sala: — Tudo o que faço é mostrar aos outros quem você é de verdade. Do que você realmente gosta.
........O pai tentou intervir. O embaixador, desconcertado — seria ele um amigo de infância do pai? —, também tentou intervir. Todos, na festa, bêbados como o embaixador, o pai e a mãe de Amanda, tentaram intervir. Mas a filha, não houve diplomacia que a fizesse ficar. Disse adeus e se foi, fechando a única fresta que restava entre ela e a mãe.
........Ah! A festa…
........Que belo vestido a mãe usava, creme como os melhores cremes que já provara na França e fora dela. Que belo colar, finamente combinando com os brincos e as pulseiras. Que belos olhos, tão celestes quanto os da filha. Que belos peitos. Que belas curvas. Sem dúvida alguma, a mãe era a mulher mais fascinante de todas as recepções. Não só aos seus próprios olhos, mas aos olhos das centenas de convidados. Por isso Amanda tinha tanto prazer em debochar da sua cara, da sua mal-disfarçada arrogância:
........— Tenha dó, mãe! Você insiste em ser amiga das minhas amigas. Quer estar sempre com a gente, falar o que a gente fala, ler o que a gente lê, freqüentar nossos pontos de encontro. Não se enxerga, não? Abandonou o consultório e agora quer voltar pra faculdade. Quer fazer letras, só porque resolvi fazer letras. Assim você me sufoca!
........A filha longe, o mundo reduzia-se mais uma vez à asfixia.
........Como explicar a Amanda que não podia viver sem seus olhos? Que toda a sua fascinação de mãe — de seu corpo, de seu bom humor, de seu vestido creme, de seus brincos, pulseiras e colar — dependia totalmente da filha? Da forma como a filha organizava os sonhos e os elementos desconexos da realidade? Como lhe dizer isso se, sem as palavras de ordem que aprendera com a filha, era-lhe impossível até mesmo falar?
........Sufoco. Asfixia. Na garganta, um nó que nem mesmo Wagner consegue desfazer.
........Wagner.
........Seu compositor predileto.
........Tristão e Isolda. Todas as tardes, desde que Amanda foi embora. Desde que o marido também a abandonou. Desde que todos lhe deram as costas.
........A mãe reaprendeu a interpretar sonhos na PUC, na faculdade de psicologia. Isso, diante dos novos acontecimentos, mostrou-se mais do que suficiente. Letras? Apesar de aprovada no vestibular, reprovou-se a si mesma e não se matriculou no curso que a faria colega da filha.
........— Apenas colega de classe. Mas inimiga íntima — Tristão lhe disse, em sonho, as pernas amputadas pela espada de um soberano traído. As pernas destacadas do corpo pela ira de Marcos, rei da Cornualha. De seu tio Marcos, o corno. Num sonho regado a Château de Fieuzal, que a mãe não soube interpretar. Ou não quis. Num sonho de matéria fermentada, com alto teor alcoólico. Num pesadelo recorrente, que a fez suar frio três noites seguidas.
........Prestou vestibular para artes plásticas, no Mackenzie, bem longe da filha. Não passou. Tentou medicina, na USP.
........Mas isso já foi há muito tempo. O que importa, agora, é que a mãe está finalmente pronta para a luta. Pronta para recuperar tudo o que é seu: o antigo mundo, a realidade organizada que Amanda e seus malditos olhos se recusam a devolver-lhe. Pessoas, objetos e paisagens no devido lugar, mais uma vez.
........Os olhos de Amanda, a mãe os quer para uso exclusivo seu.
........Como um presente, digamos.
........Com o nascimento da filha, a mãe não só abandonou a faculdade de filosofia e passou a enxergar o mundo com novos olhos, como, de quebra, veio morar na cobertura que o próprio marido, engenheiro civil, calculou e mandou construir para sua família.
........Os olhos de Amanda eram, transplantados na mãe, as asas que a levavam ao topo do planeta. À cobertura das mil e uma noites, sua casa.
........Para a mãe, o marido é alguém que sabe lidar com o concreto e os vergalhões de aço. Um homem acostumado ao cálculo diferencial e integral, à geometria analítica e descritiva. A projetar, planejar, impor ordem. Familiarizado com as curvas e as saliências dos edifícios, com a pressão sofrida pelas estruturas de material variado. Talvez por isso, sempre tão ignorante das curvas e saliências dela, mãe, da pressão que vem sofrendo esses anos todos.
........O pai sabe, por exemplo, como depositar uma cúpula no topo de um shopping center: a tampa numa panela de pressão. Mas não conhece a impressionante força capaz de expelir um filho de dentro de um organismo vivo. Porque jamais viu o mundo, a realidade, pelos olhos de Amanda.
........O pai.
........Terminado o colegial, quis fazer o curso de botânica. A família não aprovou.
........A mãe o conheceu quando tinham, os dois, sete anos. Idade em que todos os pais são filhos. Conheceu-o num dos jardins suspensos do horto florestal. Lindos. Babilônicos. Inaugurados pelo próprio Imperador. Ela, a cara amarrada, a vontade de fugir dali. Preferia ter ido ao zoológico. Ele, feliz, enfiando numa sacola as folhas que haviam caído na trilha de pedras. Folhas para sua infinita coleção.
........Conheceram-se e se amaram até que Amanda os separou.
........Os olhos de Amanda. Asas.
........— A vida só me parece possível quando filtrada por eles — a mãe confessou a Tristão, em sonho. O herói aborreceu-se. Estava pouco se lixando para Amanda, os olhos, as asas, a angústia da mãe, as folhas do pai. Agulha numa mão, linha na outra, queria era as pernas de volta. As pernas decepadas por uma espada furiosa.
........— Que espada? — a mãe quis saber, sonolenta de vinho.
........— A que o teu amigo Wagner fez descer sobre mim! Não se lembra?! Só porque roubei a prometida do meu tio.
........No fundo da garrafa, não se lembrava.
........Com a partida de Amanda, a mãe se desinteressou totalmente pela lógica dos sonhos. Agora, tudo o que a atrai são as aves. A geometria de canários, faisões e cacatuas. Sua geografia. Suas asas.
........Os empregados da casa — principalmente o motorista — estranharam quando a viram chegar da rua, a pé, com uma gaiola. Estranharam, mas ninguém disse nada. Na gaiola, um casal de periquitos australianos. A mãe, depois de se certificar de que portas e janelas estavam fechadas, libertou os periquitos na sala de estar.
........Os pesadelos com heróis aleijados pararam, desde então, de incomodá-la. Mas o desejo de ter os olhos da filha, custe o que custar, ainda não. Este está longe de se aquietar no fundo de uma gaiola invisível.
........— Ele fará de tudo pra me impedir — resmunga, referindo-se ao pai de Amanda. De marido à arquiinimigo. — Não deixará que eu pegue os olhos dela, as asas dela.
........Nas semanas seguintes, a mãe trouxe para perto de si uma infinidade de aves domésticas. Pintassilgos, mainás, corvos, marrecos, araras, pavões, rouxinóis, cardeais, pombos e frangos. A cobertura foi convertida, sem grande esforço, num aviário de seiscentos metros quadrados.
........Hoje não há mais empregados para servir as refeições, tirar o pó dos móveis, atender ao telefone. Não há quem traga para dentro os jornais e as revistas.
........Patos afogam o estresse na banheira de hidromassagem. Gansos guardam o vestíbulo contra a entrada de visitas indesejadas. Beija-flores vão e vêm pelo corredor perfumado que liga a sala à cozinha. Pingüins mergulham na máquina de lavar roupa atrás de sardinhas de sabão em pó. Falcões assassinam melros nos lustres e no topo das estantes. Pombas saltam de pombais em forma de barril, posicionados na ponta de uma estaca que desponta para fora da janela dos quartos.
........Asas e mais asas.
........Avestruzes mordiscam as penas e miçangas — mordiscam com fúria! — dos artefatos indígenas que o decorador, amigo da mãe, distribuiu pelas paredes. Corujas bicam o controle remoto da tevê, do aparelho de som, inundando os aposentos com o onipotente Wagner.
........Tristão e Isolda.
........A mãe das aves, pronta para a luta com o pai que a abandonou, pisa uma superfície fofa e fedorenta. Um tapete de folhas de alface e repolho misturadas com alpiste, grãos de milho, farelo de trigo e uma massa escura, envelhecida, difícil de dizer o que é.
........— Ele não deixará que eu pegue os olhos dela, as asas dela. Não deixará — resmunga. — Eu sei que fará de tudo pra me impedir.
........O pai não sabe o que é gestar durante meses. Não sabe o que é engordar e inchar. Até quase explodir. E quando a gente acha que vai finalmente explodir, não explode. Incha mais um pouco. E se desdobra em dores e náuseas. A mesma ânsia do início. E vomita. E pede arrego. Até que o que está dentro abre passagem e sai. E chora. E ri. E baba. E engatinha pela casa. E nos faz ver o mundo de modo diferente: do alto.
........Os empregados não abandonaram a mãe das aves só porque ela deixou que o instinto materno transformasse a cobertura num ninho. Foram embora porque o abdome dessa mulher fascinada por asas certo dia começou a inchar e não parou mais.
........Não foi preciso nenhum teste de gravidez. Uma mãe sabe quando não está mais só, dentro de si. Sem ter dormido com ninguém, a mãe das aves agora carrega novo par de olhos, de asas, que em breve se abrirão para o mundo. Mesmo assim, o susto. Diante do espelho borrado de titica de tentilhão, a idéia de que de seu útero possa sair não uma criança, mas um ovo, a faz dançar feito demente:
........— Amanda vai perder a fala quando souber… Um irmão! Um belo ser emplumado. Alado. Olhudo.
........O pai das plantas, que, desde que se separou da mãe das aves, vive no apartamento de baixo, irrita-se com a gravidez da ex-mulher. Gravidez bizarra, fora de hora. A mãe das aves já passou dos sessenta. Não tem o direito de desfrutar desse tipo de reflexo uterino. Devia ter dito adeus à fertilidade.
........Irrita-se, o pai das plantas, no apartamento transformado em estufa. Raízes, ramos, folhas e flores fedendo a esterco. O apartamento dos seus sonhos. Dos sonhos do botânico que a família abortou.
........Para fazer com que mude de idéia, a mãe das aves terá de pôr a abertura de Tristão e Isolda no volume máximo, descer até o andar de baixo, invadir o apartamento do pai das plantas, abrir caminho por entre trepadeiras, samambaias, avencas, arbustos, parreiras, bromeliáceas, ciclamens e cactos, por entre suportes para vasos, tesouras de jardineiro e xaxins, e beijá-lo ternamente. Um beijo que só as mulheres prenhes sabem proporcionar. O mesmo beijo que inaugurou a história do casal, num dos jardins suspensos abençoados por Pedro II. Um beijo de sete léguas, de sete anos de idade. Época em que todos os pais não passam de filhos.
........Apenas um beijo, longo e rejuvenescido. Um beijo, apenas. Boca na boca, língua na língua, e mais de sessenta anos voando, velozes, diante dos olhos.
........Os olhos de Amanda, as asas. A interpretação dos sonhos. A traição de Tristão, de Isolda. Wagner. Os pássaros e as plantas. Tudo será, enfim, lembranças de velhos amantes que se suportaram até o último minuto de vida.
........Dos olhos de Amanda, nem sinal.
........Porque Amanda não telefona mais. Não dá notícias. Não quer que lhe digam o que fazer, o que vestir, como se comportar.
........Porque Amanda casou-se, abandonou a faculdade de letras e deu à luz trigêmeos. Um ninho só seu. Porque com os filhos, aprendeu a ver o mundo e a realidade com filtros renovados. Pessoas, objetos, paisagens. Aprendeu a ver tudo de novo. Com asas, com olhos idênticos aos que um dia emprestara, a contragosto, para a mãe das aves.

Nelson de Oliveira nasceu em 1966, em Guaíra, SP. Escritor e mestre em Letras pela USP, publicou Naquela época tínhamos um gato (contos, Cia. das Letras, 1998), Subsolo infinito (romance, Cia. das Letras, 2000),  O filho do Crucificado (contos, Ateliê, 2001, também lançado no México), A maldição do macho (romance, Record, 2002, publicado também em Portugal), Verdades provisórias (ensaios, Escrituras, 2003) e O oitavo dia da semana (romance, Travessa dos Editores, 2005), entre outros. Em 2001 organizou a antologia Geração 90: manuscritos de computador e em  2003,  Geração 90: os transgressores, com os melhores prosadores brasileiros surgidos no final do século XX, ambos para a editora Boitempo. Ainda em 2003 editou com Marcelino Freire o número único da revista PS:SP. Colabora regularmente com o jornal Rascunho (PR) e com o caderno Idéias & Livros, do Jornal do Brasil (RJ). Dos prêmios que recebeu destacam-se o Casa de las Américas  (1995), o da  Fundação Cultural da Bahia  (1996) e  duas vezes o da APCA (2001 e 2003).
A Mãe das Aves