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Vox clamantis in deserto

 

E este é o terceiro ano da Officina Perniciosa.

 

Não saberia dizer se é apenas impressão minha, ou se flagrei de fato um movimento ainda subterrâneo que pode trazer novidades interessantes para a cansada e sem imaginação literatura brasileira, em alguns anos.

 

Há, me parece, um ainda incerto laivo de boa-vontade com obras recentes, de autores que publicaram poesia da metade do último século para cá, em novas edições, e em tentativas de se apreender seu legado; há, também, uma quantidade enorme de gente escrevendo poesia: 90 por cento são águas de aluvião, mas com uma quantidade tão grande como essa, os 10 por cento restantes devem significar água potável; há algumas discussões sérias1 de por que a crítica vai tão mal das pernas e, principalmente, da cabeça, e isso pode vir a significar uma melhora futura; os debates literários de jornal desapareceram (thank God), mas via internet estão vivos, ainda que se ressintam de certa falta de costume, e por vezes estampem alguma inutilidade ou confusão.

 

Portanto, vocês, caros leitores, têm algum direito ao otimismo que não seja imediatamente tachado de pollyannice: talvez em uns dez anos (com a ajuda de alguma vontade política que faça mesmo que um quase insignificante esforço pela educação), tenhamos uma situação muito diversa daquela que eu próprio tenho vivido desde 19972, a de vox clamantis in deserto.

 

Aspectos que precisam de melhora, desde que assumi a Officina, e que não mudaram em substância:

 

a) Educação: alterar profundamente os currículos, que são hoje apenas instrumentais (decoreba), apenas uma vara para se saltar o obstáculo vestibular;

 

b) Mercado Editorial: é preciso diminuir a falta de conhecimento e de coragem das editoras, que impedem que os melhores autores sejam publicados e divulgados como devem;

 

c) Crítica Literária: há pouca crítica bem feita. E críticos não assumem, por outro lado, opinião favorável decidida em relação a autores jovens e importantes, que precisam de leitura qualificada e divulgação inteligente;

 

d) Literatura: por causa de todos os motivos anteriores, a maior parte do que se publica é ruim, mas favorecida pelas estruturas de poder que se congelaram em duas ou três facções literárias nos últimos 40 anos.

 

 

Maneira de dizer

 

A linguagem escrita transforma completamente o mundo, ou traz isso em potencial, ao menos; e o potencial é maior ainda no caso de um tipo de linguagem de altíssima especificidade, como a poesia (nos seus melhores exemplares, bem entendido). Por quê?

 

Subestimamos o quanto devemos das nossas concepções de mundo, realidade e possibilidade ao registro de um pensamento por escrito, que permanece, e que digerimos como sendo parte da nossa experiência.

 

Quando um poeta ou um pensador reelaboram o registro da nossa percepção, estão reelaborando, por assim dizer, o mundo. Leva tempo, mas o próprio mundo se transforma. 

 

Rigor

And art made tongue-tied by authority
                            Shakespeare

O rigor é importante numa composição, e todas as pessoas (críticos e artistas) vão lhe dizer o mesmo. Mas há casos em que ele passa a ser puro rigor mortis, e aí surge uma questão de peculiar suscetibilidade no meio de artistas um pouco mais cultivados.

 

Concisão

 

A concisão em poesia tem sido, por anos, um mal-entendido formado pela aglutinação de preguiçosos em torno do tema. Concisão não significa que o poeta deva escrever duas linhas. A maior parte do poetas contemporâneos chamados pelo nobilitante "conciso" são infinitamente mais tagarelas que Homero, que escreveu dois enormes poemas épicos.

 

É curioso (e muito revelador, também) que a melhor distinção entre uma coisa e outra aconteça não num texto de poeta, ou crítico de poesia, mas no texto de um músico, Willy Corrêa de Oliveira, quando comenta o caso acerca da música de Schumann. Ele escreve:

 

Schumann passou a me interessar como assunto quando tomei consciência de que a brevidade da forma condensada era mais decisiva de que a prática das miniaturas legadas especialmente pela decrepitude do tonalismo no século XIX. Me inquietava a distinção entre brevidade e condensação. Numa extremidade se encontra o pouco alento, na outra a plenitude do ar. Uma peça breve é fruto da exigüidade do material musical e da ausência de desenvolvimento, enquanto o que se dá na condensação é a densidade alta de uma idéia extremamente desenvolvida, sintetizada no mais mínimo espaço de tempo possível. As peças de Schumann se avultam dentro desta última categoria.3

 

"A densidade alta de uma idéia extremamente desenvolvida, sintetizada no mais mínimo espaço de tempo possível".  Aí está, para aqueles que por vezes se esquecem ou para aqueles que voluntariamente ignoram.

 

 

Aprendizado

 

Um artista aprende seu lavoro. A arte, qualquer arte, é uma coisa cultural, o que significa que não nasceu com você, como os seus instintos básicos. A pintura ou a poesia não fazem parte da natureza, como uma maçã ou como nuvens.

 

Dalí dizia para se desconsiderar aqueles que vêm com o papo de sepultar o passado, e dizia: "aprenda tudo o que puder com os mestres". Ele aprendeu com Velásquez, por exemplo. Suponho que é absolutamente desnecessário sublinhar o significado disso.

 

Além de que seria flagrante estupidez soterrar todo o conhecimento acumulado por séculos de experiência, e por mentes tão boas ou melhores que a nossa. Há atalhos, coisas que não é preciso repetir.

 

 

O armazém do conhecimento

 

"Poucos conhecem as propriedades e sutilezas do inglês; é impossível, mesmo para pessoas perspicazes, entendê-las e praticá-las sem a ajuda de uma educação liberal e muita leitura; sem digerir aqueles poucos autores bons que temos entre nós, sem o conhecimento dos homens e seus costumes, sem a liberdade de hábitos e de diálogo com a melhor companhia de ambos os sexos; e, resumidamente, sem se livrar da ferrugem contraída no armazém do conhecimento."

 

Foi o que escreveu John Dryden no prefácio a Sylvae, em 1685. Substituindo-se o "inglês", são requisitos para poetas de todas as línguas, de todos os tempos. 

 

Experiência 

O que pode nos dizer a experiência, no caso da literatura?

 

Por exemplo: razoável experiência musical, seja de ouvido, seja de estudo, pode dizer onde há um problema num verso, ou num trecho em prosa; pode, também, fazer você ouvir sem preconceito algo novo que surge em determinado verso, ou uma combinação de sons particularmente engenhosa com relação a seu efeito.

 

É bom perceber que ninguém está falando especificamente do aspecto melódico, que passa por ser apenas um dos efeitos possíveis de um verso que se chame musical.

 

Isso me lembra que, certa vez, conversando com um amigo prosador, tempos atrás, ainda na faculdade (e isso deve dar alguma perspectiva sobre a nossa inocência), sugeri que uma palavra não estava bem num determinado parágrafo. Ele se queixou, não pela crítica — ele concordava —, mas porque criava um problema rítmico para a frase, isso de ter que achar uma palavra de mesmo ritmo e sentido para pôr no lugar. 

 

Dicção poética 

O conhecimento de dicções serve para utilizar determinada língua e sua linguagem com o mais alto grau de sensibilidade para com a sua índole (a da língua e da linguagem), ou uma flexibilidade de tom, o que dinamiza a linguagem. "Índole" é um negócio indefinível, e é mesmo melhor que o seja, ou estaríamos obrigados a ler tratados de 300 páginas de muito jargão abstrato para nenhum efeito.

 

A dicção é algo muito específico e mesmo sutil, e de início exige um pouco de esforço para se perceber suas nuances. É raro que alguém considere abertamente sua importância (que não é pequena), ou discuta a natureza do seu emprego.

 

O uso de várias dicções, num poeta que saiba fazê-lo, é normalmente indício de que ele não vai fazer parte de grupos monomaníacos, isto é, como Groucho Marx, ele não entraria num clube que o aceitasse como sócio. E é indício de que tem talento dramático, além de — é quase certo — bom ouvido.

 

O contrário disso é a sensibilidade nenhuma que demonstraram, por exemplo, os parnasianos, porque achavam que faziam uma coisa e fizeram outra: estavam hipnotizados por uma estúpida idéia de língua castiça, que acabou sendo uma língua castrada, e a robótica de seu verso oco não ajudou, também. Eram robôs de um único modo asséptico de escrever. Isso não desapareceu de todo, se é que me entendem.

 

PS: o controle da dicção é um aspecto que, em geral, se encontra na obra dos chamados "nefelibatas", dos estilistas, ou daqueles que se preocupam estilisticamente com aplicações muito pontuais de linguagem, como, na prosa brasileira, Machado de Assis e Graciliano Ramos, ou, estrangeiros, Huysmans, Joyce. 

 

Novo 

O novo em arte foi muito superestimado por pessoas não tão educadas quanto os predecessores que lançaram a moda.

 

Sim, moda. Afinal, de uma exigência ética para que a arte sobrevivesse à passagem do século XIX e tivesse algum poder de prospecção, o "novo" se tornou mais uma dessas palavras de ordem que possuem a mesma substância de seus correlatos em campanhas políticas.

 

Não obstante, continua sendo repetida, agora sobretudo porque é um evidente sinal de status. Um poeta que se chame "inventor" (ou que assim seja chamado por seus colegas) possui como que o equivalente a uma TV de plasma. Todo mundo quer ir à casa dele para ver a maravilha.

 

Vão-se alguns anos e aquela invenção passa imediatamente a peça obsoleta de um tempo coberto de pó, e parece um troço desajeitado, grosseiro, quase nem sabemos como é que as pessoas se viravam com aquilo.

  

Novo 2 

A idéia de vanguarda percorreu o seguinte caminho: artigo de revolta, insubordinação, renovação e irreverência (1870–1930, no máximo)4; tornou-se uma instituição (entre 1930–1940)5, regrando o gosto; foi sendo incorporada à universidade e aos espaços públicos (1950–1980)6; finalmente, amarga o incrível tédio e o malogro completo no sem-sal da repetição infinita de uma mesma pose, cada vez mais abstrata, sem técnica, sem forma, apenas mais um filão teórico-universitário, mesmo dentro dos poemas, que são quase todos metalinguagem. É a norma nos soporíferos encontros de Teoria de Arte e Literária (1990–2006)7, e se misturou ao pesado jargão de teses da universidade.

 

Precisa acabar. Como os Rolling Stones, sobreviveu às próprias criações.

 

 

Ponto e vírgula

 

Não importa por que lado você olhe, a poesia visual do catalão Joan Brossa é a melhor poesia visual já feita. Falamos dele algumas vezes por aqui.

 

Poesia visual.

 

Há sempre pessoas antiquadas que vão reclamar do fato de que a expressão "poesia visual" parece um arranjo afetadíssimo desses tipos meio analfabetos, sempre loucos atrás de uns louros de poeta8: mesmo que esse nome (poeta) não ajude ninguém a comer melhor, ou a se vestir melhor, ainda parece um nobilitante como o daquelas velhas famílias de sangue azul que mantêm os títulos, mas estão depenadas como peru de Natal. Isso me lembra aquele verso esperto de "Candidats à l’Immortalité", de Laurent Tailhade:

 

Tous veulent sur leur front le diadème esthète

 

A incapacidade de olhar para fora do conhecido não permite, é evidente, que essas pessoas desconfiadas aproveitem o que é de fato novo. Mas a poesia visual de Brossa é justamente o melhor ponto de encontro entre as artes plásticas e a arte da palavra.

 

Em sua arte, uma rara e brilhante inteligência retórica, capaz de grandes sutilezas, se mescla à sagacidade de encontrar na combinação de objetos o veículo para a exposição dessa mesma inteligência retórica. Resumindo: ele transforma objetos em figuras de linguagem. E faz isso sob o signo do mágico de circo. 

 

Enfim, o poeta 

Os poetas de todas as épocas reclamaram da dificuldade da vida. Atenção, agora: não houve, não há e não haverá uma época propícia ou ao menos decente para o trabalho artístico, ou intelectual. Houve períodos e lugares que possibilitaram aos poetas algum conforto: na época de Augusto, os anos anteriores ao exílio de Ovídio; as cortes na Provença medieval dos séculos XI e XII; a Renascença italiana; ou, nos anos 20 do século XX, a cidade de Paris, que não lhes cobrava imposto de renda e aglutinava gente de tudo que é canto.

 

Qual é o problema, afinal?

 

As outras pessoas, as que sobrevivem, estão ocupadas exclusivamente com isso: sobreviver. Sem tempo para pensar, querem, ao chegar em casa, relaxar um pouco e esvaziar a cabeça, e não ocupá-la de novo (mesmo porque, em muitos casos, o espaço a ser ocupado é exíguo).

 

Assim, embora alguns poetas mantenham a inteligência sensória e intelectual da língua funcionando e por vezes até inventem coisas novas, é muito preferível, para a maioria, a facilidade balbuciante de um programa de TV, ou acreditar, quando algum milagre as leve a um livro, no que o influente mas inútil crítico disse que presta, ou mesmo adotar a opinião de algum jornalista bastante convencido de seu próprio gosto, mas facilmente impressionável.

 

Era mais justo e divertido um mundo onde poeticamente se pudesse condenar uma época inteira a feder no enxofre do Inferno: mas qualquer esforço do gênero hoje é nitidamente de apelo farsesco, na farta comédia (genus humile, aut mediocre dicimus) dos dias atuais.

 

O grande poeta, hoje, escreve sua obra contra todas as hipóteses de sua época. Sua inevitável divisa é o nadi contra suberna (nado contra a maré), de Arnaut Daniel; de um modo muito delicado e amistoso, é evidente.

 

 

Mas?

 

O que fazia Rilke num castelo, numa específica semana do ano de 1922? Compunha uma porção de poemas importantes de uma só vez. E Rimbaud até os 21 anos? Vagabundeava e compunha alguns dos mais importantes poemas de todos os tempos. E Pound, depois de defender Mussolini e ir para a cadeia (e quase acabar sendo executado por alta traição)? Compunha uma das obras mais importantes da poesia.

 

Walk in the mystery, disse (creio eu) um físico.

 

Ele estava nos dando a chave de um enigma, envolvida num lenço de mistério.

 

Nossas certezas são sociais, e nos defendem dos atritos com a sociedade; ao abraçarmos o mistério — isto é, a dúvida enfeitiçada — esse casal tem a tendência de produzir uma de duas crias (ou mesmo as duas crias, às vezes gêmeas): os monstros do sono da razão; ou a beleza, cuja força ainda não foi domada, nem transformada pela temerosa aplicação dos nossos defeitos sociais.

 

Não mentirei dizendo coisas amenas, ou fingindo que isso não tem seu preço. Tem um preço alto para a vida de qualquer um que se meta nessa.

 

 

Inspiração

 

O que não quer dizer que isso se traduza por inspiração. A inspiração retira a responsabilidade e dá falsos ares de paranormalidade ao artista que, na maior parte dos casos, não a tem.

 

O poeta afinou sua percepção das coisas e seu instinto de linguagem a um grau que as pessoas comuns ignoram; sua experiência das formas e de sua elocução introjetaram nele essa segunda natureza, através da qual as idéias se reúnem induzindo a própria forma com que devem ser representadas.

 

O desconhecimento de um mecanismo tão simples põe as pessoas boquiabertas com esse poder inato, a inspiração: bela, romântica, frenética, imprevisível como uma incontinência urinária.

 

junho, 2006