©marcel snow

Civilidade Selvagem de uma Profunda Unidade

 

A arte sempre foi, de um modo ou de outro, coisa difícil. Os desajustes introduzidos nela como representação de um mundo mentalmente fragmentário e fisicamente reduzido pela tecnologia criaram a falsa impressão de que a desagregação ameaçava sua própria integridade como arte. Obviamente, como jogo de palavras, o proposto tem algum sentido: mas trata-se de uma falha filosófica. Eu vou citar, para informação, um pequeno trecho de "Delight in Disorder", de Robert Herrick (1591-1674):

 

A careless shoestring, in whose tie

I see a wild civility;

Do more bewitch me than when art

Is too precise in every part.1

 

 É claro, por um lado, que Herrick está falando que certa (e aparente) desordem nas roupas de uma bela mulher é mais agradável e denota mais personalidade que a sensaboria do arremate impecável, do zelo burocrático e desapaixonado. Mas ele apresenta seu argumento, nos últimos versos, implicando a arte: uma arte assim também é mais agradável.

 

Mais agradável, para um homem do século dele, é o mais verossímil. Eu diria, com algum respaldo científico, que a tendência natural e verossímil das coisas é para a desordem (aparente). Todo caos revela, de um ponto de vista mais privilegiado que o nosso, um sentido renovado de ordem, como se alguém, perdido numa floresta por ver apenas troncos e galhos num emaranhado, pudesse olhar de cima e perceber o mapa. Mas isso é apenas um lugar-comum.

Então seria possível sugerir, numa quase-charada, o seguinte enigma:

 

Comme des échos qui de loin se confondent

Dans une ténébreuse et profonde unité,

Vaste comme la niut et la clarté,

Les parfums, les couleurs et les sons se répondent.2

 

Tal qual o fez Charles Baudelaire (1821-1867) em "Correspondances", poema bastante famoso, em que se resolve a fajuta desagregação numa "tenebrosa e profunda unidade" onde tudo encontra correspondência.  O adjetivo "tenebrosa"  se deve aos fatos claros e observáveis à luz do dia, segundo os quais: a) suscitar algum espanto era uma regra romântica; b) sua idéia derivava em boa parte do ocultismo; e c) se dá um contorno inusitado ao verso. Eu o excluiria — o adjetivo — não vendo nada de tenebroso na unidade caótica. Contudo, é fundamental não desejar que os nossos ancestrais tenham visto o mundo com os olhos de hoje.

A arte está hoje sob excessiva pressão e com espaço muito pequeno. Se não me engano, foram essas as condições que geraram o universo.

 

 

Começar pelo começo

(ou, "o prazer da primeira linha")

 

Você quase sempre ouvirá dos escritores o seguinte lugar-comum: "O maior medo de um escritor é a folha em branco diante de si". É mortalmente tedioso encontrar a sentença pela quinqüagésima-nona vez em entrevistas — ou abrindo um texto, como este — e, portanto, a tendência de se desprezar qualquer coisa que pareça uma opinião generalizada é também muito freqüente (e freqüentemente, muito saudável), embora ninguém vá discutir se precisamos respirar algum ar para sobreviver, se temos fisiologia capaz de nos fazer voar, etc. A folha em branco nos termos encontrados acima faz algum sentido, e alguns autores terão pavor dela, outros, um curioso fascínio (Mallarmé) e outros ainda, como eu, não temendo nem siderando diante dela, preferirão a arte da escrita depois de certo material bruto já ter sido colecionado de modo mais ou menos caótico.

De qualquer forma, o começo nem sempre é o começo. Edgar Allan Poe, escrevendo sobre o famoso "The Raven", afirmou que para se estruturar um poema é preciso começar pelo fim: há quem diga que ele deve se revirar de rir toda vez que algum iniciante ou fascinado segue as instruções engenhosas deixadas em seus ensaios descritivos. O importante, no caso, talvez seja reter que nem sempre o visto na primeira linha memorável de alguns poemas é por necessidade o primeiro gesto do poeta na composição; e pode mesmo ter sido o último. Certamente, isso é importante para o meu tema imediato, as primeiras linhas dos poemas de Yeats.

Suponho que o gentil leitor, ou a não menos gentil leitora, sabe da arte exigida (ou empenhada) numa primeira linha: no caso de Yeats, ficamos nos perguntando como o vocabulário conseguiu um desenho tão extraordinário, que lei da atração trouxe tais palavras a tal ordem, onde o ouvido foi buscar aqueles sons de feitiçaria. É claro que muitos poemas de Yeats são obras-primas do princípio ao fim, mas há algo em vários de seus primeiros versos que predispõe quem lê a pensar, no ato: estou começando a ler uma obra-prima. Teria aprendido essa arte com Shakespeare? "Full fathom five thy father lies" ou "When I do count the clock that tells the time" são linhas tão importantes quanto um poema inteiro, e imprimem imediatamente sua qualidade encantatória em nossas mentes.

Não é diferente com Yeats.

"I made my song a coat"; "Down by the sally gardens my love and I did meet"; "When you are old and grey and full of sleep"; "I will rise and go now, and go to Innisfree"; "Autumn is over the long leaves that love us"; "I hear the Shadowy Horses, their long manes a-shake", etc. são linhas que lançam a leitura em suspensão e sugerem que entremos no poema como quem entra num mistério, num lugar específico, ao mesmo tempo o mundo e outra coisa, e como se a possível coincidência das nossas emoções com as do poema revelassem intensa estranheza em relação a nós mesmos. De certa forma, há a sensação de que somos novos após a leitura, recém-descobertos, assim como diria a apóstrofe do último verso de "Torso Arcaico de Apolo", de Rilke, como lemos na tradução de Manuel Bandeira: "Força é mudares de vida".

Não deve ser estranho usar palavras que nos dias de hoje soam justamente periclitantes, como "encantatório" ou "feitiçaria"; ao menos não no sentido que o próprio Yeats poderia usá-las, ele que integrava a ordem da Golden Dawn (Aurora Dourada), ou como o próprio Shakespeare poderia tê-lo feito, se lembramos do último discurso de Próspero na Tempestade, que começa: "Now my charms are all o’erthrown/ And what strenght I have is mine own" — segundo se acredita, interpretado por Shakespeare mesmo nas primeiras montagens —, e pode ser compreendido como uma despedida dos poderes da escrita teatral, assim como Próspero se despede de seus poderes mágicos. Não se trata da magia edulcorada dos contos de fada, nem tampouco da charlatanice picareta dos escritores de auto-ajuda, mas daquilo que é panteísmo em alguns, politeísmo em outros, ou experiência mística visionária, como no caso de Juan de la Cruz.

Depois, mais velho, Yeats continuará escrevendo primeiras linhas inesquecíveis, mas de poder diverso, assertivo, pesado do pensamento da maturidade, sem a voracidade musical da juventude, como se vê em "Sayling to Byzantium" ou "The Tower" — que começa, por exemplo, "That is no country for old men", seco, direto ao ponto. É claro que há a possibilidade de se apreciar um dos estilos e se sentir algum desprezo pelo outro: mas eu vejo, de qualquer forma, o mesmo poeta  na experiência então mais densa e menos transbordante dessa arte dificílima — e de poucos mestres — do primeiro verso de um poema.

 

 

Eclipse (real e metafórico)

 

Observa-se em tom de crítica que os brasileiros ignoram a obra literária de seus países vizinhos da América Latina (não só da América do Sul): é verdade, e é lamentável.

Há um ligeiro atenuante, muito embora cretino, que nunca chego a ouvir daqueles que soltam essa crítica: os brasileiros ignoram a obra literária dos próprios brasileiros. Mas há, e acrescento por outro lado, um aspecto ainda mais indecoroso da mesma questão: se ignoramos os estrangeiros quando estão em seus próprios países de origem, o que dizer se os ignoramos quando vivem há trinta anos conosco? É o caso do poeta uruguaio Alfredo Fressia, um dos mais célebres moradores da Rua Aurora, que lançou há pouco, em Montevidéu, Eclipse: cierta poesía (1973-2003), civiles iletrados, 2003, contendo um livro novo (Eclipse) e uma recolha antológica de suas obras anteriores.

Homem culto, generoso e poeta importante, não só porque seja um poeta muito bom, mas porque também não cedeu a nenhuma moda poética, como tantos fazem apenas para verem seus nomes mencionados aqui ou ali por este ou aquele. Por isso, talvez, ainda não seja tão lido quanto merece.

Mas, se sabemos que ele não é um aproveitador, o que ele é?

Certa vez, conversando sobre o seu livro, foi deixando pelo caminho palavras como "penumbrista" e "crepuscular", com um sorriso ligeiramente irônico; se, por um lado, ironizava o hábito recalcitrante de se colar rótulos inócuos em tudo que aparece, por outro, indicava algo sobre sua poesia, que no fundo dizia menos respeito ao que de fato ela é do que a seu, digamos de um modo terrivelmente impressionista, temperamento. O nome de seu último livro, Eclipse, aponta para isso também e não por mero acaso: apegado aos desenvolvimentos das possíveis maneiras de se utilizar a palavra, de aspectos científicos, históricos e ocultos sobre o evento astronômico, ao fim da plenitude, à morte — por ilação —, encontramos um tom elegíaco e meditativo que seria uma das maneiras de se traduzir esse "penumbrista".

 

Sabías que esa noche llegaría, la del sistro de caliza

yaciendo en la caverna, en silencio los lobos

y los hombres de manos artífices, tan diestros

en el arte de morirse.

¿Y tú, ahí afuera, te sorprendiste herido por los astros?

Ya no palpitan, no son almas donde huía fugaz una pasión, esta vez

nacieron opalinos huevos del eclipse, esperando por abrirse

en el derrrumbe. Caerán sobre la tierra que pisaste, planetas huecos

de la primera cuadratura, piedras rotas sobre el cristal que habías historiado

con tus viejas escenas de caza en Nínive.

La hora llegó, ya viste demasiado el pergamino de tu cielo.

Ya sabes que tu pecho en negativo no acusa corazón ni familia ni nada

de sagrado, Fressia irremediable, sólo esa ostra celeste hecha de tiempo,

madreperla menguante (no repitas la mala suerte en el eclipse)

donde volvía a nacer siempre tu padre, indagando inútilmente

por un hijo, su mensaje en el tiempo, huellas digitales contra el vidrio

empañado de futuro y a ti, botella al mar, te tragaba el torbellino,

dorsal, desde los Apeninos a la pampa. (...)3

 

Isto é, não se trata de uma poesia direta e veloz, mas que produz espirais, que contrapõe e vai concentrando argumentos, e que às vezes pode ser, entretanto, o contrário disso, como na primeira parte de "Tres Mesas del Sorocabana"4:

 

Los pensamientos vagabundos

se piensan

como nubes, así

navíos olvidados

o sin rumbo las nubes

no dejan señales en el viento

y erran

sin memoria

como dunas

a voluntad de mar

que nadie piensa.

 

Suavemente aliterativo, com assonâncias e pequenos blocos paronomásticos, que imitam o fluxo irregular das nuvens, enquanto as palavras executam, com espantosa simplicidade, a conexão entre elas, as nuvens, e pensamentos passageiros (que "no dejan señales en el viento") num impacto só.

Há o Fressia que ataca aspectos políticos, mas nunca panfletário, como no comovente "Praga Invadida", por exemplo; o que iconiza a cidade de Montevidéu, a Coquete ("Montevideo, la Coquette", entre outros); o da perspectiva homoerótica que, como escreve Luis Bravo no ótimo estudo introdutório ao livro, "fue pionera en la poesía uruguaya, junto al exultante Evohé (1971) de Cristina Peri Rossi."5 O "Bello Amor", como no título deste poema:
 

Bello amor, bellos amantes,

porque el amor no pasa

de un memorial de hombres que me amaron (...)

bello y estéril, bello

porque estéril, porque destinado

al memorial de hombres que me amaron (...)

 

Mas essa multiplicidade temática revela sempre uma voz coerente, que nunca se fragmenta em cacos, construída com subordinações sintáticas, delicados arranjos de um estilo cultivado e que, portanto, realiza um trabalho muito complexo: é uma poética sem dúvida alguma atual e com forte sentido de tradição também.

Posso ouvir claramente a sutil ironia do meu caro Fressia: "penumbrista".

 

...............Notas